Estamos relativamente acostumados a ver cineastas que
filmam com o coração, com o cérebro,
com a libido, com a musculatura estriada. Mas e um cineasta
que, a isso tudo, acrescenta os intestinos, os humores
mais vulgares e menos comedidos? Esse realizador certamente
causa repulsa a alguns, que estremecem de asco ao assistirem
à cena de Louca Paixão em que Erik
(Rutger Hauer) apanha na privada as fezes de Olga (a
linda ruivinha com quem ele casa) com a mão e
as estuda, para depois acalmá-la dizendo que
o vermelho vem da beterraba que ela comeu no jantar,
não é sangue. Escatologia – que me perdoem
os mais (ou menos?) sensíveis – é um termo
demasiado empobrecedor para essa cena. Em Louca Paixão
Verhoeven filmou muito mais do que relações
que adicionam ao sentimental o escatológico;
trata-se de um amor que extrapola a intimidade mais
usual e instaura uma forma ímpar de aproximação
humana: o amor mergulhado em todos os produtos do corpo
(desde o cheiro e os hormônios até o suor
e as fezes). O filme devolve tudo que colhe ao corpo
e à condição biológica,
o que Erik afirma de duas formas: primeiro com um ramo
de flores – por ele mesmo colhidas – que coloca sobre
o peito de Olga, e que depois de retiradas deixam só
as larvas passeando sobre a pele branca. No segundo
momento, através de uma sentença bastante
clara: "Quando morrer, seu corpo será doado
à ciência, querida", ele diz a Olga.
Se desde Welles e Rossellini houve cineastas do corpo,
poucos foram (e têm sido) os cineastas das vísceras.
A câmera clínica que Sganzerla identificava
em seus diretores prediletos, capaz de tatear os corpos
e estabelecer uma extraordinária anatomia de
superfície, é substituída em Louca
Paixão por uma verdadeira câmera cirúrgica,
cortante e invasiva.
Entre as flores e as larvas, definem-se a relação
de Erik e Olga e o trabalho de direção
de Paul Verhoeven. O casal se conhece de forma extravagante
(ela lhe dá uma carona e logo param o carro e
transam) e atravessa uma montanha russa pontuada, ao
início e ao fim, por felicidade (a lua de mel,
os momentos de celebração da vida, o leitmotiv
com assovios alegrinhos deles passeando de bicicleta
pelas ruas) e cólera (o ciúme de Erik,
a falta de dinheiro, as brigas, a desavença dele
com a sogra). O frenético trajeto é filmado
por uma câmera situada dentro do vagão
onde o casal se colocou e decidiu ver o mundo passar
de cabeça para baixo e pernas para o ar. Uma
relação sem centro de gravidade, e um
cinema sem sentido de privacidade – o método
invasivo de Verhoeven nada mais é que a povoação
de uma imagem completamente inocente na sua tendência
pornográfica. A imagem filmada por Verhoeven
é uma Poliana que tira a roupa em público
(a protagonista de Showgirls recebe essa provocação
durante o filme), e é também o lúdico
de um pôr do sol na praia seguido da exploração
escancarada da nudez da atriz em cena. Chamem de machismo,
chamem de puberdade durável (do cineasta e do
público que ele cativa): o fato é que
não há como desaprovar a constante nudez
das maravilhosas atrizes com que o diretor trabalha,
assim como o filme nos induz a tomar as dores de Erik
quando ele pega Olga com outro num restaurante (ou terá
sido viagem dele?) e fantasia a morte dela e do amante
de forma absolutamente cruel e ressentida. Mas, engana-se
o espectador precipitado (principalmente se ele já
tiver um histórico de implicância com Verhoeven),
é o mesmo Erik quem ficará ao lado de
Olga quando um tumor no cérebro dela iniciar
uma triste contagem regressiva.
Essa virada de tabuleiro no final é um dos grandes
trunfos do filme, pois sua primeira cena havia sido
a do assassinato de Olga, sonhado pela mente enraivecida
de Erik, e depois tinha acontecido um retorno no tempo
para mostrar como eles haviam se conhecido. Podia-se
pensar, portanto, caso o filme terminasse exatamente
onde começara, que tratava-se apenas da arqueologia
de um ódio. Ele, por mais tresloucado que fosse,
havia feito de tudo para ficar com Olga e havia a amado
incondicionalmente, mas ela optou por abandoná-lo,
casar com um americano, morar alguns anos nos EUA, usufruir
o conforto de uma vida abastada, ao invés da
eterna aventura existencial que era o casamento com
Erik. Mas não, o filme não quer julgar
e punir sua personagem com uma doença fatal;
fazê-la pagar, com uma loucura patológica,
pela semiloucura passageira que impingiu a Erik. A cena
de reencontro dos dois, quando ele descobre, a um só
tempo, que ela está completamente mudada (vestida
tal qual uma perua americana, e sem falar coisa com
coisa) e que está doente, desmonta qualquer crença
de que Erik alimentou um espírito meramente vingativo
enquanto esteve longe de Olga. Sua reação
ao revê-la é a mais sincera e verossímil
possível: um sorriso de estranhamento e ambígua
satisfação, a melancolia de quem quer
muito reviver uma paixão antiga, mas sabe que
está lidando com outra pessoa.
Contrastando com o andamento acelerado e repleto de
cenas cômicas da maior parcela do filme, a fase
final de Louca Paixão ganha tonalidades
tétricas: ela com o cabelo raspado, sendo submetida
a tratamento de choque, sem conseguir sair da cama do
hospital, recebendo as visitas de Erik. A última
cena evolui para uma composição aterradora:
após Olga morrer, Erik joga num caminhão
de lixo a peruca ruiva com que a presenteara no hospital.
O plano final do filme consiste na peruca sendo triturada
junto ao monte de lixo (mostrado nojenta e explicitamente,
em plano fechado). Olga retorna à condição
biológica de uma forma ainda mais crua do que
a pressagiada por Erik; seu corpo passa pelas mãos
da ciência, e o apetrecho que de alguma forma
simboliza sua fase anterior, cheia de beleza e vida,
termina no lixo – de objeto de desejo à pura
degradação material. Transformar paixão
em compaixão? Fiquemos com o que o filme mostra
de imediato: um amor louco filmado pelo diretor ideal.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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