O homem, o mar, o tempo
À visão
da capa da revista Vu, na qual a face feminina,
de frente, olhos abertos e fixos, tem em primeiro plano
mãos masculinas algemadas, Mário Peixoto
associa outra, "um mar de fogo, uma tábua,
uma mulher agarrada". Escrito em apenas uma noite
e influenciado pela grave e dolorosa discussão
do cineasta com o pai, o scenario de Limite
se desenvolve a partir desta "proto-imagem",
como a classifica Saulo Pereira de Mello – responsável,
com Plínio Süssekind Rocha, por sua restauração
–, não-narrativa e fora da diegese do filme,
na medida em que todos os demais planos são metamorfoses
dela. Alegoria do tema que perpassa Limite, a
imagem protéica articula os olhos da mulher (Olga
Breno), as mãos algemadas e o mar de fogo para
mostrar o desespero e a angústia humana diante
da descoberta de sua limitação, bem como
a impotência e perplexidade do homem quando confrontado
à infinitude da natureza.
Assim, Mário Peixoto
estabelece em Limite a dialética entre
os olhos e o mar: o dentro e o fora, o eu e o mundo,
o aqui e o ali. Os olhos, que observam para além
do enquadramento, em direção à
câmera de Edgar Brazil, representam a alma que
ainda se crê ilimitada. O mar de fogo – reflexos
da luz do sol sobre a massa de água, cuja beleza
cintilante é também alcançada por
Jean-Luc Godard em Je Vous Salue Marie (1984)
– aponta para a natureza infinita, para o indiferenciado
do universo, amorfo e imenso. Entre os olhos e o mar,
encontram-se as algemas, símbolo da limitação
que, em conjunto com o plano inicial dos abutres na
paisagem desolada (a morte, a decadência), expressam
a tragédia daqueles três náufragos
à deriva em pleno oceano, por fim engolidos pela
tempestade que encerra o filme.
Três personagens,
duas mulheres (Olga Breno e Taciana Reis) e um homem
(Raul Schnoor) que relembram os acontecimentos que os
levaram ao barco perdido na imensidão do mar.
Inconformidade, desespero, fuga: Taciana Reis abandona
o casamento opressor, o marido bêbado e pianista
fracassado; Olga Breno escapa da prisão, com
ajuda do carcereiro, para se ver novamente enjaulada
pelo trabalho monótono à máquina
de costura; Raul Schnoor envolve-se com mulher casada
e leprosa e, frente à possibilidade da castração,
cai ao solo, aflito, enquanto a câmera descreve
lenta panorâmica pelo meridiano celeste sem fim,
pelo arco do mundo. De forma que os planos de Limite,
em geral longos (impressão reforçada pelas
demoradas fusões e pelos acordes cheios da Gymnopédie
no.3, de Erik Satie), de enquadramentos precisos
e asfixiantemente belos, reiteram as diversas prisões
pelas quais os personagens atravessam, multiplicando,
pela paisagem de Mangaratiba, signos limítrofes
análogos em forma: as bordas dos barcos, as cercas,
as grades do presídio e do cemitério,
as cruzes, as estradas intermináveis, o mar,
o horizonte. Cárceres dentro de cárceres,
exasperantes – pois mesmo o infinito se revela outro
limite –, dos quais não há escapatória,
a despeito das constantes fugas.
A paisagem de Mangaratiba,
fundamental em Limite, complexifica as representações
do amorfo anteriormente configuradas no mar de fogo.
Tragédia, morte, e Brasil: o brejo, o lodo, a
praia, a mata, as árvores retorcidas, as ruínas
de vegetação pendente, os muros manchados,
as fachadas, as janelas, as portas, a estrada, o cemitério,
as pessoas no cinema, as pessoas que passam, tudo é
Brasil. Filme de poesia, Limite constrói
o espaço com extremo realismo, mas a fim de ultrapassá-lo,
até mesmo nas citações ao contexto
local, absolutamente corretas – o presídio de
Ilha Grande, vislumbrado nas grades que aprisionam Olga
Breno, ou o leprosário de Mangaratiba, cujo índice
está presente na mulher "morphética"
com que Raul Schnoor se envolve.
Como o ambiente, as figuram
humanas se caracterizam igualmente pela verossimilhança,
seja na falta de maquiagem ou nos cabelos dos atores
desgrenhados pelo vento (vento que anuncia a chegada
da tempestade, da destruição), seja nas
interpretações contidas, sóbrias,
tensas, pois Mário Peixoto, seguindo Griffith,
acredita na significação máxima
dos menores gestos, na expressividade que se cristaliza
sobretudo nos olhos e na face. Porém, ao contrário
dos melodramas griffithianos, não há aprofundamentos
psicológicos nos personagens de Limite,
já que eles representam a Humanidade – prostrada
diante da inutilidade de qualquer ação
contra os desmandos da natureza – antes de tipos específicos.
E se no cinema de Griffith a montagem concatena as imagens
em relações transparentes de causa e efeito
para mover a narrativa à frente, no filme de
Mário Peixoto ela se torna mais um meio para
exprimir o tema central (a angústia do homem
esmagado pelo universo), através da associação
morfológica, musical e poética entre os
planos.
Fala-se, devido à
ruptura de Mário Peixoto com o cinema clássico-narrativo
(do qual Humberto Mauro poderia ser considerado o principal
cineasta brasileiro da época), sobre o alinhamento
de Limite com as vanguardas européias.
Contudo, enquanto os projetos vanguardistas exaltam
a vida moderna, urbana e industrial (como demonstrado
em L’Inhumaine, de Marcel L’Herbier, feito em
1924) – no culto à máquina, à energia,
à velocidade, ao automatismo – contraposta à
destruição do passado, ou seja, dos valores
sociais, morais e espirituais arcaicos herdados do século
XIX, Limite opera a identificação
de elementos próprios à modernidade com
formas de cerceamento que afetam os personagens: a máquina
de costura, assim como todos os objetos a ela ligados
(destacados em planos detalhes), que oprimem Olga Breno,
ou o cinema miserável, onde o marido de Taciana
Reis toca piano.
No final perdido de Limite,
em que um relógio sem mostrador afunda no mar
– antecipando-se
a Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman,
e a Agonia e Glória (1980), de Samuel
Füller –, a intenção do cineasta
torna-se clara: dizer que o Tempo não passa de
mera invenção humana, que o desespero
do homem se faz inútil, posto que a natureza,
por ser infinita, é também atemporal,
pouco se importando com a impotência que suscita
em seres tão ínfimos. Dessa forma, Limite,
mesmo que utilize técnicas de montagem características,
por exemplo, ao cinema soviético – e há
semelhanças formais entre o filme de Mário
Peixoto e Terra (1930), de Aleksandr Dozhvenko
–, significa a anti-vanguarda, uma vez que sugere não
o rompimento definitivo entre o homem e a natureza,
mas sim a reaproximação entre ambos (como
indica o plano em que Olga Breno, agarrada à
tábua após a tempestade, desaparece em
meio ao mar cintilante), a aceitação humana
de seu papel dentro da ordem universal.
Em Limite, portanto,
o homem é responsável por suas próprias
algemas, visto que, a fim de suportar o fardo de que
o mundo existe independente dele, cria o Tempo, que
se revela através das memórias dos personagens
à deriva na imensidão inescapável,
tanto do mar quanto do horizonte.
Paulo
Ricardo de Almeida
Citações
"Cinemagia, cineutopia: cinema/sonho. Abel
Gance nos deu a mais bela definição de
Cinema: A Música da Luz. Mário Peixoto
nos deu seu mais belo filme. Limite: a estética
cintilantemente iluminada". (Jairo Ferreira).
"A mensagem do cinema,
da América do Sul, daqui a vinte anos, eu estou
certo, será tão nova, tão cheia
de poesia e cinema estrutural, como o que assisti hoje.
Jamais segui a um fio tão próximo ao genial
como o dessa narrativa de câmera sul-americana..."
(Mário Peixoto, assinando como Sergei Eisenstein).
"Kynema itz Sonimage/MONTAGE:
Mário Peixoto aos 19-20 anos realiza tudaquilo
que os Kyneastas desejam: Fluz-Imag-AZÃ – criar
Emoção (comunication...) através
da montagem de células vizuays (o filme é
do tempo mudo e se faz mal acompanhar por arranjos de
Saty, Debôzy, Extravynk e Betove)". (Glauber
Rocha).
"A tradição
francesa e americana empalidece com o desprendimento
de Limite. Sua nervura e sua fervura, made in
Mangaratiba, transforma o panorama: extrai do quase
nada, quase tudo! Sombras, Telhados, Algemas, Barcos
do Sonho, Limite...". (Júlio Bressane).
|