Limite
de Mario Peixoto, Brasil, 1930 (P/B)

O homem, o mar, o tempo

À visão da capa da revista Vu, na qual a face feminina, de frente, olhos abertos e fixos, tem em primeiro plano mãos masculinas algemadas, Mário Peixoto associa outra, "um mar de fogo, uma tábua, uma mulher agarrada". Escrito em apenas uma noite e influenciado pela grave e dolorosa discussão do cineasta com o pai, o scenario de Limite se desenvolve a partir desta "proto-imagem", como a classifica Saulo Pereira de Mello – responsável, com Plínio Süssekind Rocha, por sua restauração –, não-narrativa e fora da diegese do filme, na medida em que todos os demais planos são metamorfoses dela. Alegoria do tema que perpassa Limite, a imagem protéica articula os olhos da mulher (Olga Breno), as mãos algemadas e o mar de fogo para mostrar o desespero e a angústia humana diante da descoberta de sua limitação, bem como a impotência e perplexidade do homem quando confrontado à infinitude da natureza.

Assim, Mário Peixoto estabelece em Limite a dialética entre os olhos e o mar: o dentro e o fora, o eu e o mundo, o aqui e o ali. Os olhos, que observam para além do enquadramento, em direção à câmera de Edgar Brazil, representam a alma que ainda se crê ilimitada. O mar de fogo – reflexos da luz do sol sobre a massa de água, cuja beleza cintilante é também alcançada por Jean-Luc Godard em Je Vous Salue Marie (1984) – aponta para a natureza infinita, para o indiferenciado do universo, amorfo e imenso. Entre os olhos e o mar, encontram-se as algemas, símbolo da limitação que, em conjunto com o plano inicial dos abutres na paisagem desolada (a morte, a decadência), expressam a tragédia daqueles três náufragos à deriva em pleno oceano, por fim engolidos pela tempestade que encerra o filme.

Três personagens, duas mulheres (Olga Breno e Taciana Reis) e um homem (Raul Schnoor) que relembram os acontecimentos que os levaram ao barco perdido na imensidão do mar. Inconformidade, desespero, fuga: Taciana Reis abandona o casamento opressor, o marido bêbado e pianista fracassado; Olga Breno escapa da prisão, com ajuda do carcereiro, para se ver novamente enjaulada pelo trabalho monótono à máquina de costura; Raul Schnoor envolve-se com mulher casada e leprosa e, frente à possibilidade da castração, cai ao solo, aflito, enquanto a câmera descreve lenta panorâmica pelo meridiano celeste sem fim, pelo arco do mundo. De forma que os planos de Limite, em geral longos (impressão reforçada pelas demoradas fusões e pelos acordes cheios da Gymnopédie no.3, de Erik Satie), de enquadramentos precisos e asfixiantemente belos, reiteram as diversas prisões pelas quais os personagens atravessam, multiplicando, pela paisagem de Mangaratiba, signos limítrofes análogos em forma: as bordas dos barcos, as cercas, as grades do presídio e do cemitério, as cruzes, as estradas intermináveis, o mar, o horizonte. Cárceres dentro de cárceres, exasperantes – pois mesmo o infinito se revela outro limite –, dos quais não há escapatória, a despeito das constantes fugas.

A paisagem de Mangaratiba, fundamental em Limite, complexifica as representações do amorfo anteriormente configuradas no mar de fogo. Tragédia, morte, e Brasil: o brejo, o lodo, a praia, a mata, as árvores retorcidas, as ruínas de vegetação pendente, os muros manchados, as fachadas, as janelas, as portas, a estrada, o cemitério, as pessoas no cinema, as pessoas que passam, tudo é Brasil. Filme de poesia, Limite constrói o espaço com extremo realismo, mas a fim de ultrapassá-lo, até mesmo nas citações ao contexto local, absolutamente corretas – o presídio de Ilha Grande, vislumbrado nas grades que aprisionam Olga Breno, ou o leprosário de Mangaratiba, cujo índice está presente na mulher "morphética" com que Raul Schnoor se envolve.

Como o ambiente, as figuram humanas se caracterizam igualmente pela verossimilhança, seja na falta de maquiagem ou nos cabelos dos atores desgrenhados pelo vento (vento que anuncia a chegada da tempestade, da destruição), seja nas interpretações contidas, sóbrias, tensas, pois Mário Peixoto, seguindo Griffith, acredita na significação máxima dos menores gestos, na expressividade que se cristaliza sobretudo nos olhos e na face. Porém, ao contrário dos melodramas griffithianos, não há aprofundamentos psicológicos nos personagens de Limite, já que eles representam a Humanidade – prostrada diante da inutilidade de qualquer ação contra os desmandos da natureza – antes de tipos específicos. E se no cinema de Griffith a montagem concatena as imagens em relações transparentes de causa e efeito para mover a narrativa à frente, no filme de Mário Peixoto ela se torna mais um meio para exprimir o tema central (a angústia do homem esmagado pelo universo), através da associação morfológica, musical e poética entre os planos.

Fala-se, devido à ruptura de Mário Peixoto com o cinema clássico-narrativo (do qual Humberto Mauro poderia ser considerado o principal cineasta brasileiro da época), sobre o alinhamento de Limite com as vanguardas européias. Contudo, enquanto os projetos vanguardistas exaltam a vida moderna, urbana e industrial (como demonstrado em L’Inhumaine, de Marcel L’Herbier, feito em 1924) – no culto à máquina, à energia, à velocidade, ao automatismo – contraposta à destruição do passado, ou seja, dos valores sociais, morais e espirituais arcaicos herdados do século XIX, Limite opera a identificação de elementos próprios à modernidade com formas de cerceamento que afetam os personagens: a máquina de costura, assim como todos os objetos a ela ligados (destacados em planos detalhes), que oprimem Olga Breno, ou o cinema miserável, onde o marido de Taciana Reis toca piano.

No final perdido de Limite, em que um relógio sem mostrador afunda no mar – antecipando-se a Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman, e a Agonia e Glória (1980), de Samuel Füller –, a intenção do cineasta torna-se clara: dizer que o Tempo não passa de mera invenção humana, que o desespero do homem se faz inútil, posto que a natureza, por ser infinita, é também atemporal, pouco se importando com a impotência que suscita em seres tão ínfimos. Dessa forma, Limite, mesmo que utilize técnicas de montagem características, por exemplo, ao cinema soviético – e há semelhanças formais entre o filme de Mário Peixoto e Terra (1930), de Aleksandr Dozhvenko –, significa a anti-vanguarda, uma vez que sugere não o rompimento definitivo entre o homem e a natureza, mas sim a reaproximação entre ambos (como indica o plano em que Olga Breno, agarrada à tábua após a tempestade, desaparece em meio ao mar cintilante), a aceitação humana de seu papel dentro da ordem universal.

Em Limite, portanto, o homem é responsável por suas próprias algemas, visto que, a fim de suportar o fardo de que o mundo existe independente dele, cria o Tempo, que se revela através das memórias dos personagens à deriva na imensidão inescapável, tanto do mar quanto do horizonte.

Paulo Ricardo de Almeida


Citações


"Cinemagia, cineutopia: cinema/sonho. Abel Gance nos deu a mais bela definição de Cinema: A Música da Luz. Mário Peixoto nos deu seu mais belo filme. Limite: a estética cintilantemente iluminada". (Jairo Ferreira).

"A mensagem do cinema, da América do Sul, daqui a vinte anos, eu estou certo, será tão nova, tão cheia de poesia e cinema estrutural, como o que assisti hoje. Jamais segui a um fio tão próximo ao genial como o dessa narrativa de câmera sul-americana..." (Mário Peixoto, assinando como Sergei Eisenstein).

"Kynema itz Sonimage/MONTAGE: Mário Peixoto aos 19-20 anos realiza tudaquilo que os Kyneastas desejam: Fluz-Imag-AZÃ – criar Emoção (comunication...) através da montagem de células vizuays (o filme é do tempo mudo e se faz mal acompanhar por arranjos de Saty, Debôzy, Extravynk e Betove)". (Glauber Rocha).

"A tradição francesa e americana empalidece com o desprendimento de Limite. Sua nervura e sua fervura, made in Mangaratiba, transforma o panorama: extrai do quase nada, quase tudo! Sombras, Telhados, Algemas, Barcos do Sonho, Limite...". (Júlio Bressane).