Antes de ser rotulado como uma
adaptação dos quadrinhos, ou como mais
um filme de super-heróis, Hellboy deve
ser visto, mais do que tudo, como um filme de amor.
O leitor já deve estar se perguntando: "Como
é que é? Um filme daqueles, cheio de pancadaria
e gosmas, cheio de alusões ao demônio e
ao apocalipse, agora é filme de amor? Esse pessoal
da Contracampo..." Além de nos livrarmos (nós,
os espectadores) da leitura pura e simples, sem percepção
dos planos e de todo um trabalho de mise-en-scène
voltado para deixar a paixão dos personagens
prevalecer em relação à ação,
devemos atentar para o que move cada personagem, o que
faz com que cada um lute e mate impiedosamente, o que
transforma e transcende o simples uso da força
física. E aí fica claro: como num filme
de Renoir, todo movimento em Hellboy é realizado
por amor.
É por amor à ciência que o professor,
aos 28 anos, arrisca-se numa perigosa missão
em território nazista para acompanhar a tentativa
de abertura de um portal do inferno. Também por
amor se dá a relação, já
explicitada desde o início como de dominação,
entre o vilão Rasputin e Ilsa, a ponto de esta
ter um verdadeiro orgasmo (encenado brilhantemente,
apenas com sua expressão facial) quando ele renasce.
Sem contar que Rasputin, renascido, carrega consigo
ainda mais do diabo (em suas próprias palavras),
por isso ele ama Hellboy (filho do Diabo), e nutre o
maior respeito pelo professor, pai de criação
do nosso herói, provendo-lhe uma morte rápida.
Não podemos esquecer a relação
paternal entre o professor (John Hurt em um de seus
melhores papéis) e seus filhos "freaks". Uma
relação que ultrapassa o amor pela ciência.
Existe ainda uma rede de subtextos amorosos, colocados
para tornar o filme ainda mais ambíguo. Sammael,
por exemplo, a besta da ressurreição,
quando é abatido, renasce duplamente, como um
casal. Sem contar o depósito, por Sammael, de
três ovos no braço de Hellboy, o que é
tomado por este como uma relação de amor
efêmera ("ele nem me pagou um drink"), o que para
além de uma simples piadinha enaltece, sim, o
curioso clima amoroso adotado por Del Toro. Somemos
a isso a constatação de que mesmo o diabão
final, um monstrengo parecido com Sammael, mas dez vezes
maior, não consegue matar o filho. Seus tentáculos
agarram-no, arremessam-no em paredes e rochas, mas não
desferem sequer um golpe fatal. O amor entre semelhantes
impede que isso aconteça. Os diabões também
amam, diria Del Toro. Ele engole, mas não tritura,
como os diversos Sammaels faziam. Mesmo renegado pelo
filho, o diabo mantém com ele uma relação
de respeito e esperança de que um dia ele volte
a trilhar o caminho do mal. Uma opção
corajosa, pois subverte todos os cânones da luta
entre o bem e o mal, com maniqueísmos sobressaindo-se
às ambigüidades.
Mas o mais notável é que o filme gira
em torno do triângulo formado por Hellboy (Ron
Perlman); Liz Sherman (a cativante Selma Blair), mulher
que, quando contrariada, tem o poder de incendiar as
coisas e John Mayers (Rupert Evans), o jovem agente
do FBI. A ponto de deter-se longamente num passeio entre
o agente e a "monstrinha", observados de longe por um
Hellboy adolescente ("Ela tirou fotos dele...droga").
A relação anteriormente fraternal entre
o herói e Liz torna-se confusa, pois carregada
de sentimentos sexuais enrustidos por parte dos dois,
só que mais dela, já que ele já
admitia que a ausência dela era a única
coisa que poderia matá-lo. A maior fala do filme
surge após a ameaça do terceiro vértice
do triângulo, quando Hellboy se lamenta por não
ter uma aparência que não a deixasse constrangida
em público (como a aparência de Mayers),
mas encerra prometendo duas coisas: 1) Que continuaria
sempre bonito e 2) que nunca a abandonaria, jamais.
Alguém ainda duvida que se trata de um belo filme
de amor?
Ainda no prólogo, temos uma narração
do personagem do professor, já com mais idade
mas numa época incerta, dizendo que o que estava
para acontecer negaria o que estava contido em todos
os livros de histórias e, ainda, "mudaria MINHA
vida para sempre" (com ênfase dele no "minha").
Para além de ser uma brincadeira muito elucidativa
com os "cientistas do bem" no cinema (que sempre pensam
nos caminhos da humanidade, nunca em seus desejos) revela
ainda que veríamos mesmo um mergulho nas paixões
dos personagens. Da mesma forma, é com uma narração
que o filme se encerra, desta vez do discípulo
do professor, John Mayers, com uma fala sobre a importância
das escolhas, mas novamente tendo como referência
um dado pessoal ("Um amigo meu certa vez me perguntou
o que nos fazia humanos. São as escolhas que
fazemos").
Em paralelo a este mergulho no amor e nas paixões
pessoais, há no filme uma agradável brincadeira
do diretor com os diversos clichês de filmes de
gênero, a começar pela já mencionada
imortalidade do herói de ação,
que aqui se explica justamente pelo amor que seus inimigos
tinham por ele. Em várias passagens, a direção
de Del Toro (no seu filme mais inspirado) nos fornece
piscadelas, como se quisesse nos fazer adentrar num
jogo de referências típicas de um cinema
feito por amantes de cinema, e não por roteiristas
da escola Syd Field, nem por meros paus mandados. Uma
das mais deliciosas é a aparição
do professor para o jovem agente John Mayers, por trás
dele, em silêncio, como um espírito. Vemos
Rasputin surgindo dessa mesma maneira em vários
momentos, mas aqui as aparições fantasmagóricas
não são exclusividade dos personagens
maus. A comédia romântica obviamente não
poderia ficar de fora, e é homenageada em todas
as cenas sem ação em que o triângulo
está reunido, mas é parodiada inusitadamente
na fala de Liz para Myers ("vermelhos, brancos, vocês
homens são todos iguais"). Finalmente, temos
o personagem Hellboy, que cinematograficamente parece
um amálgama de Clint Eastwood (o herói
solitário e resmungão, carrancudo), Burt
Lancaster ("You did it, buddy, you did it", com um cerrar
dos dentes) e, o mais óbvio, Arnold Schwarzeneger
(o que ele sussurra no ouvido de Liz - "ei, você
do outro lado, deixe-a ir, pois por ela irei até
aí, e você vai se arrepender" – poderia
ser ouvido em qualquer filme protagonizado pelo governador
grandalhão).
Del Toro brinca também com os burocratas, como
quando o figurão do FBI nos é apresentado,
dando uma entrevista para um canal de TV. Ele diz que
esse tal de Bureau of Paranormal Research and Defense
não existe. O corte da sua cara de tacho para
a fachada do Bureau em New Jersey deve ser encarada
como um ato político muito mais esperto que os
de Michael Moore, além de flertar com as piadas
de montagem típicas das comédias satíricas
dos anos 70 e 80, e que derivam do gênio de Ernst
Lubitsch. Assim como a cena entre os créditos
finais, com o mesmo figurão sendo esquecido num
subterrâneo da Rússia, com a sombra de
um Sammael passando por trás dele: o governo
participa, mas é mero coadjuvante. A burocracia
deve ser destruída. Ou podemos pensar que uma
provável continuação poderia estar
sendo sugerida: "À procura do chefe"- na verdade,
as leituras desse esquecimento podem ser tão
diversas, que dá pra imaginar o sorriso no canto
da boca do bonachão Del Toro, quando perguntado
sobre a cena.
Hellboy, segundo o filme, veio antes do quadrinho que
o homenageia, criado por Mike Mignola. Del Toro sugere
a trapaça para tomá-lo como sua criação.
Basta ver que, em uma lápide no cemitério
russo, está justamente o nome de Mignola, acrescido
do tradicional "Aqui Jaz" (em russo): é a vez
do cinema homenageá-lo. O personagem adquire,
então, vida independente do gibi, e especialmente
ligada à imagem em movimento, o que torna obrigatória
uma enormidade de continuações. Uma das
quais, aliás, já é mais do que
promessa: está acertada para provável
lançamento em 2006.
Sérgio Alpendre
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