Recomeçando
Galhos da Árvore,
penúltimo filme de Satyajit Ray, é verdadeiro
libelo pela ética e pela moral, abaladas pela
corrupção da sociedade moderna. A partir
do microcosmo das relações familiares,
o cineasta indiano, através de movimentos de
câmera complexos, rigorosos e elegantes, mergulha
tanto na História de seu país, quanto
nas alterações globais trazidas pelo fim
do socialismo e da Guerra Fria.
Filho de eminente escritor
bengali, de família abastada, Satyajit Ray, formado
em economia pela Universidade de Calcutá e estudante,
por dois anos, de pintura e história da arte
na universidade alternativa do poeta hindu Rabindranath
Tagore, começa no cinema como assistente de direção
de Jean Renoir em O Rio Sagrado (1950). Seu primeiro
longa-metragem, A Canção da Estrada
(1955), ao ganhar o prêmio especial do júri
no Festival de Cannes, projeta a cinematografia indiana
no Ocidente, o qual considera Satyajit Ray – junto a
Mrinal Sen e Ritwik Ghatak – o maior cineasta do país.
Porém, salvo as
retrospectivas da Mostra Rio em 1998 e da Mostra SP
em 2000 e a recente exibição de sete de
seus filmes na televisão paga, Satyajit Ray permanece
desconhecido no Brasil. Infelizmente, já que
a trilogia de Apu – A Canção da Estrada,
O Invencível (1957) e O Mundo de Apu
(1959) – guarda, em virtude do diálogo que estabelece
com o neo-realismo italiano, semelhanças a Rio
40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, marco
inicial do Cinema Novo, da mesma forma que a Couro
de Gato, episódio de Joaquim Pedro de Andrade
para Cinco Vezes Favela (1962), e a Fábula
(1965), de Arne Sucksdorf: tanto na trilogia de Satyajit
Ray quanto nos filmes brasileiros citados, a tentativa
de revelar a realidade social do país, para além
do cartão-postal, seja, na Índia, com
a vida miserável de Apu e sua família,
seja, no Brasil, com as desventuras dos vendedores de
amendoim em Rio 40 Graus, com a necessidade do
menino favelado em vender o gato de que gosta para sustentar
a família em Couro de Gato, ou com as
crianças de rua que, aplicando trambiques e engraxando
sapatos, perambulam por Copacabana em Fábula.
Mesmo que integre a explosão
dos cinemas novos que ocorre na década de 50
ao redor do mundo, e cujo maior expoente é a
Nouvelle Vague francesa, Satyajit Ray pauta-se sobre
as estratégicas clássico-narrativas: contador
de histórias, o cineasta indiano trabalha basicamente
com os gêneros estabelecidos do cinema. Assim,
A Canção da Estrada deve ao drama
social herdado da Hollywood pós-Depressão
– filmes como Beco Sem Saída (1937), de
William Wyler, e Anjos de Cara Suja (1938), de
Michael Curtiz, estrelados pelos Dead End Kids –, mas
filtrado pelas práticas neo-realistas (atores
não-profissionais, uso de externas, produções
independentes, fora do sistema de estúdios),
em especial dos melodramáticos Vítimas
da Tormenta (1946) e Ladrões de Bicicleta
(1948), ambos de Vittorio De Sica. Todavia, se Ray
reaproveita os gêneros, é porque possui
a capacidade de alterná-los dentro de um mesmo
filme, o que acontece no episódico Três
Mulheres (1961), baseado em contos de Tagore: enquanto
a primeira história se desenvolve a partir do
melodrama social neo-realista, a segunda é influenciada
pelo cinema fantástico de Akira Kurosawa e pelo
imaginário gótico ocidental, e a terceira
se mostra típica "screwball comedy"
(comédia maluca), a la Howard Hawks.
Em Galhos da Árvore,
Satyajit Ray relê o gênero "drama familiar",
que no cinema japonês, por exemplo, é chamado
de shomin-gueki, e no qual se situa a fase final da
carreira de Yasujiro Ozu, de Pai e Filha (1949)
a A Rotina Tem Seu Encanto (1962). No penúltimo
filme de Satyajit Ray, realizado quase exclusivamente
em interiores (à exceção da seqüência
na floresta), o ataque cardíaco do patriarca
Ananda Majumdar, benfeitor da cidade que carrega seu
nome, reaproxima os quatro filhos: Probodh, diretor-geral
de uma companhia; Prasahnto, o qual vive com o pai depois
de acidente que o deixou com problemas mentais; Probir,
financista e jogador inveterado; e Protap, irmão
caçula que não se relaciona com os demais.
Completam o quadro Uma, que acredita cegamente no marido
Probodh, Tapati – esposa de Probir que, na verdade,
ama Protap – e seu filho e, por fim, o avô senil,
cujas aparições fantasmagóricas
incomodam e desconcertam a todos.
Apesar da predominância
absoluta do contexto familiar e, por conseguinte, da
filmagem em interiores, Galhos da Árvore
reflete como poucos acerca da história da sociedade
em que se passa e, mais notável ainda, sobre
o mundo que nasce com o término da Guerra Fria.
Satyajit Ray, contudo, o faz com estonteante sutileza:
nos diálogos que misturam bengali e inglês,
e que remetem às conseqüências da
colonização britânica na Índia;
na ascensão social do patriarca, de operário
à acionista de multinacional, demonstrando o
impacto do capitalismo na arcaica hierarquia indiana
das castas; nas constantes alusões ao fim do
socialismo, sobretudo no questionamento de Probir a
Protap durante o piquenique na floresta; ou nos projetos
assistencialistas implantados por Ananda em sua cidade,
que lembram o Estado de Bem-Estar Social, emblemático
do pós-Segunda Guerra Mundial.
A característica
fundamental da modernidade que se impõem, no
entanto, vem a ser o "dinheiro negro", ou
seja, aquele fruto da corrupção. De modo
que Satyajit Ray opõe personagens "úteis"
a "inúteis", de acordo com a participação
econômica que exercem no meio social. De um lado,
Probodh e Probir, membros ativos da economia, mas que
mantêm o elevado padrão de vida que levam
através do desvio ilícito de recursos
financeiros, e, de outro, o enfermo Ananda (cuja integridade
nos negócios suscita admiração),
Prasahnto – que vive em realidade à parte, mergulhado
na música de Bach e Beethoven –, e Protap, que
larga o emprego bem remunerado para se tornar ator.
Em Galhos da Árvore, verifica-se a dialética
entre o mundo atual, ambicioso e desonesto como Probodh
e Probir, mas também impotente como Prasahnto
e atormentado por dúvidas como Protap, e a sociedade
que o antecedeu, representada tanto pela ética
inabalável do patriarca, quanto pela senilidade
assustadora do avô.
Trata-se, assim, de viver
o presente, e não de relembrar o passado, conforme
diz Prasahnto ao pai. Não há nostalgia
em Galhos da Árvore, tanto que Satyajit
Ray recusa sistematicamente o flash-back. As informações,
a respeito dos acontecimentos que precedem à
ação vista na tela, ocorrem nos diálogos,
de sorte que o cineasta, embora não abandone
o campo/contracampo, utiliza-se de intensa movimentação
de câmera para, de apenas um, enquadrar, no mesmo
plano, dois ou mais personagens que conversam. Calcado
em reenquadramentos constantes, de precisão milimétrica,
Galhos da Árvore supera o teatro filmado,
no qual poderia cair, ao operar a passagem contínua,
por intermédio dos travellings e das panorâmicas
onipresentes no decorrer do filme, do espaço-fora-da-tela
para o espaço-da-tela, e deste novamente para
o espaço em off. No único momento em que
Satyajit Ray usa o flash-back, é menos pela importância
narrativa do que pelo impacto dramático: refere-se
à descoberta que Protap faz das falcatruas de
seu melhor amigo na empresa em que trabalham, quando
o irmão caçula se distancia da corrupção
para abraçar o teatro.
A arte, ao invés
de mero escapismo ou ilusionismo, enquanto força
de transformação, de renovação
social, pois se do tronco íntegro, o pai, surgem
galhos apodrecidos pelo contato com os novos tempos,
Probodh e Probir, dele nascem igualmente Prasahnto,
cuja inocência o torna único membro feliz
da família, e Protap, capaz de distinguir entre
o certo e o errado, ou seja, de ter atitude moral. No
final de Galhos de Árvore, o patriarca,
em desespero ao descobrir a verdade sobre seus descendentes
corruptos, é socorrido pelo filho doente: são
as mãos dadas, os dedos entrelaçados que
se assemelham a uma raiz, que apontam de volta ao início,
quando há apenas esperança, quando resta
somente o porvir. Para recomeçar.
Paulo Ricardo de Almeida
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