Galhos da Árvore
de Satyajit Ray, Shakha Prashakha, Índia/ França/ Inglaterra, 1990

Recomeçando

Galhos da Árvore, penúltimo filme de Satyajit Ray, é verdadeiro libelo pela ética e pela moral, abaladas pela corrupção da sociedade moderna. A partir do microcosmo das relações familiares, o cineasta indiano, através de movimentos de câmera complexos, rigorosos e elegantes, mergulha tanto na História de seu país, quanto nas alterações globais trazidas pelo fim do socialismo e da Guerra Fria.

Filho de eminente escritor bengali, de família abastada, Satyajit Ray, formado em economia pela Universidade de Calcutá e estudante, por dois anos, de pintura e história da arte na universidade alternativa do poeta hindu Rabindranath Tagore, começa no cinema como assistente de direção de Jean Renoir em O Rio Sagrado (1950). Seu primeiro longa-metragem, A Canção da Estrada (1955), ao ganhar o prêmio especial do júri no Festival de Cannes, projeta a cinematografia indiana no Ocidente, o qual considera Satyajit Ray – junto a Mrinal Sen e Ritwik Ghatak – o maior cineasta do país.

Porém, salvo as retrospectivas da Mostra Rio em 1998 e da Mostra SP em 2000 e a recente exibição de sete de seus filmes na televisão paga, Satyajit Ray permanece desconhecido no Brasil. Infelizmente, já que a trilogia de Apu – A Canção da Estrada, O Invencível (1957) e O Mundo de Apu (1959) – guarda, em virtude do diálogo que estabelece com o neo-realismo italiano, semelhanças a Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, marco inicial do Cinema Novo, da mesma forma que a Couro de Gato, episódio de Joaquim Pedro de Andrade para Cinco Vezes Favela (1962), e a Fábula (1965), de Arne Sucksdorf: tanto na trilogia de Satyajit Ray quanto nos filmes brasileiros citados, a tentativa de revelar a realidade social do país, para além do cartão-postal, seja, na Índia, com a vida miserável de Apu e sua família, seja, no Brasil, com as desventuras dos vendedores de amendoim em Rio 40 Graus, com a necessidade do menino favelado em vender o gato de que gosta para sustentar a família em Couro de Gato, ou com as crianças de rua que, aplicando trambiques e engraxando sapatos, perambulam por Copacabana em Fábula.

Mesmo que integre a explosão dos cinemas novos que ocorre na década de 50 ao redor do mundo, e cujo maior expoente é a Nouvelle Vague francesa, Satyajit Ray pauta-se sobre as estratégicas clássico-narrativas: contador de histórias, o cineasta indiano trabalha basicamente com os gêneros estabelecidos do cinema. Assim, A Canção da Estrada deve ao drama social herdado da Hollywood pós-Depressão – filmes como Beco Sem Saída (1937), de William Wyler, e Anjos de Cara Suja (1938), de Michael Curtiz, estrelados pelos Dead End Kids –, mas filtrado pelas práticas neo-realistas (atores não-profissionais, uso de externas, produções independentes, fora do sistema de estúdios), em especial dos melodramáticos Vítimas da Tormenta (1946) e Ladrões de Bicicleta (1948), ambos de Vittorio De Sica. Todavia, se Ray reaproveita os gêneros, é porque possui a capacidade de alterná-los dentro de um mesmo filme, o que acontece no episódico Três Mulheres (1961), baseado em contos de Tagore: enquanto a primeira história se desenvolve a partir do melodrama social neo-realista, a segunda é influenciada pelo cinema fantástico de Akira Kurosawa e pelo imaginário gótico ocidental, e a terceira se mostra típica "screwball comedy" (comédia maluca), a la Howard Hawks.

Em Galhos da Árvore, Satyajit Ray relê o gênero "drama familiar", que no cinema japonês, por exemplo, é chamado de shomin-gueki, e no qual se situa a fase final da carreira de Yasujiro Ozu, de Pai e Filha (1949) a A Rotina Tem Seu Encanto (1962). No penúltimo filme de Satyajit Ray, realizado quase exclusivamente em interiores (à exceção da seqüência na floresta), o ataque cardíaco do patriarca Ananda Majumdar, benfeitor da cidade que carrega seu nome, reaproxima os quatro filhos: Probodh, diretor-geral de uma companhia; Prasahnto, o qual vive com o pai depois de acidente que o deixou com problemas mentais; Probir, financista e jogador inveterado; e Protap, irmão caçula que não se relaciona com os demais. Completam o quadro Uma, que acredita cegamente no marido Probodh, Tapati – esposa de Probir que, na verdade, ama Protap – e seu filho e, por fim, o avô senil, cujas aparições fantasmagóricas incomodam e desconcertam a todos.

Apesar da predominância absoluta do contexto familiar e, por conseguinte, da filmagem em interiores, Galhos da Árvore reflete como poucos acerca da história da sociedade em que se passa e, mais notável ainda, sobre o mundo que nasce com o término da Guerra Fria. Satyajit Ray, contudo, o faz com estonteante sutileza: nos diálogos que misturam bengali e inglês, e que remetem às conseqüências da colonização britânica na Índia; na ascensão social do patriarca, de operário à acionista de multinacional, demonstrando o impacto do capitalismo na arcaica hierarquia indiana das castas; nas constantes alusões ao fim do socialismo, sobretudo no questionamento de Probir a Protap durante o piquenique na floresta; ou nos projetos assistencialistas implantados por Ananda em sua cidade, que lembram o Estado de Bem-Estar Social, emblemático do pós-Segunda Guerra Mundial.

A característica fundamental da modernidade que se impõem, no entanto, vem a ser o "dinheiro negro", ou seja, aquele fruto da corrupção. De modo que Satyajit Ray opõe personagens "úteis" a "inúteis", de acordo com a participação econômica que exercem no meio social. De um lado, Probodh e Probir, membros ativos da economia, mas que mantêm o elevado padrão de vida que levam através do desvio ilícito de recursos financeiros, e, de outro, o enfermo Ananda (cuja integridade nos negócios suscita admiração), Prasahnto – que vive em realidade à parte, mergulhado na música de Bach e Beethoven –, e Protap, que larga o emprego bem remunerado para se tornar ator. Em Galhos da Árvore, verifica-se a dialética entre o mundo atual, ambicioso e desonesto como Probodh e Probir, mas também impotente como Prasahnto e atormentado por dúvidas como Protap, e a sociedade que o antecedeu, representada tanto pela ética inabalável do patriarca, quanto pela senilidade assustadora do avô.

Trata-se, assim, de viver o presente, e não de relembrar o passado, conforme diz Prasahnto ao pai. Não há nostalgia em Galhos da Árvore, tanto que Satyajit Ray recusa sistematicamente o flash-back. As informações, a respeito dos acontecimentos que precedem à ação vista na tela, ocorrem nos diálogos, de sorte que o cineasta, embora não abandone o campo/contracampo, utiliza-se de intensa movimentação de câmera para, de apenas um, enquadrar, no mesmo plano, dois ou mais personagens que conversam. Calcado em reenquadramentos constantes, de precisão milimétrica, Galhos da Árvore supera o teatro filmado, no qual poderia cair, ao operar a passagem contínua, por intermédio dos travellings e das panorâmicas onipresentes no decorrer do filme, do espaço-fora-da-tela para o espaço-da-tela, e deste novamente para o espaço em off. No único momento em que Satyajit Ray usa o flash-back, é menos pela importância narrativa do que pelo impacto dramático: refere-se à descoberta que Protap faz das falcatruas de seu melhor amigo na empresa em que trabalham, quando o irmão caçula se distancia da corrupção para abraçar o teatro.

A arte, ao invés de mero escapismo ou ilusionismo, enquanto força de transformação, de renovação social, pois se do tronco íntegro, o pai, surgem galhos apodrecidos pelo contato com os novos tempos, Probodh e Probir, dele nascem igualmente Prasahnto, cuja inocência o torna único membro feliz da família, e Protap, capaz de distinguir entre o certo e o errado, ou seja, de ter atitude moral. No final de Galhos de Árvore, o patriarca, em desespero ao descobrir a verdade sobre seus descendentes corruptos, é socorrido pelo filho doente: são as mãos dadas, os dedos entrelaçados que se assemelham a uma raiz, que apontam de volta ao início, quando há apenas esperança, quando resta somente o porvir. Para recomeçar.

Paulo Ricardo de Almeida