Dies Irae, do Réquiem
em Ré Menor, K. 626, de Wolfgang Amadeus
Mozart. A Ira de Deus. Ou seria a ira de João
de Deus, prenúncio do personagem criado por João
César Monteiro em Recordações
da Casa Amarela dezessete anos após este
Fragmentos de Um Filme Esmola, petardo contra
a família, uma vez que a identifica como célula
fascista na qual se concentram todas as instâncias
sociais de repressão?
João César Monteiro parte para o ataque
já nos créditos de abertura, ao realizar
gesto obsceno diretamente para a câmera. Relação
de repulsa com o espectador, mas também de manipulação
– já que é o cineasta quem determina o
que colocar em cena para ser visto pelo público
–, que se confirma ao longo de Fragmentos de Um Filme
Esmola através de planos-seqüências
que, distintos do encadeamento coerente da narrativa
clássica, desafiam e questionam tanto a fruição
quanto o entendimento necessários à identificação
da platéia com o espetáculo cinematográfico.
Filme esmola, pois feito com cerca de duzentos contos,
e fragmentos de filme, visto que cada plano-seqüência
não se subordina, mas antes se coordena aos demais:
independentes entre si, dotados de sentidos autônomos,
é a partir do acúmulo de informações
em aparência desconexas que João César
Monteiro constrói a unidade de significação
em torno da narrativa estilhaçada que caracteriza
este primeiro longa-metragem.
Assim, trata-se da crítica niilista à
instituição familiar, cuja morte, decretada
ao final do filme, é seguida por imagens de arquivo
de cidade em chamas durante a Segunda Guerra Mundial,
ao som do Dies Irae de Mozart. Apocalíptico,
Fragmentos de Um Filme Esmola começa com
uma procissão de tanques de batalha: realizado
antes da Revolução dos Cravos, em plena
vigência do Salazarismo, a associação
entre família e regime fascista procede, na medida
em que toda e qualquer ditadura política se estrutura
sobre a célula fundamental da sociedade, a qual
reproduz na escala microscópica das relações
afetivas as forças repressoras que organizam
e que mantêm a paz social.
No caso de Portugal – e Fragmentos de Um Filme Esmola,
mesmo que aconteça quase inteiramente dentro
do apartamento familiar, é uma reflexão
sobre o país –, a ditadura salazarista, de extrema
direita, está calcada na defesa dos valores burgueses,
ou seja, da propriedade e da religião. De modo
que João César Monteiro volta-se com violência
contra eles: na impagável seqüência
em que o pai, completamente vagabundo, empoleira-se,
com máscara de porco, enquanto o sogro lhe cobra
responsabilidade (isto é, que trabalhe para ganhar
dinheiro e sustentar a família); no desespero
da esposa, que não pode escapar do único
foco de luz que ilumina a tela, ao mesmo tempo em que
a ladainha (em seu sentido religioso) irônica
de Stokhausen é executada; nas cenas de sexo,
terno porém aflito, entre o casal protagonista,
ou mecânico e exasperante com o homem e a mulher
quaisquer (cenas que evidenciam a castração
do prazer e do amor perpetrada pela conservadora sociedade
portuguesa).
O amor. A privação dele leva ao desenlace
trágico da família, com a morte do pai,
o qual, no entanto, possui a consciência de que,
caso vivesse, perpetuaria, na filha, o mesmo ciclo opressivo
que o educou e que o moldou, e do qual não conseguiu
fugir. Dessa forma, se há alguma esperança
em Fragmentos de Um Filme Esmola, ela se concentra
em Catarina, a criança, livre da família
capaz de desvirtuá-la, mas ainda atada à
imprevisibilidade e às infinitas possibilidades
do futuro, como sugere o aterrador apagar e acender
da luz no plano em que a voz paterna, no gravador, deseja-lhe
todo o amor do mundo. Que fará ela com esta espada,
seguirá as trevas ou a luz? Crescerá para
integrar a força de trabalho produtiva ao país,
em consonância aos ideais de seu avô, ou
abarcará a fantasia, presente nos jogos de linguagem
que brincava com o pai?
Na destruição da família e do meio
social fascista que a engendra, nada resume melhor as
intenções de João César
Monteiro em Fragmentos de Um Filme Esmola que
seu comentário sobre a laranja, cuja casca perfeita
e belamente arredondada serve apenas para manter os
gomos sob controle.
Paulo Ricardo de Almeida
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