É
curioso que Fahrenheit 11 de Setembro seja um
filme que tem no título uma data. Porque ele
foi sim concebido e realizado tendo em mente uma data,
mas não exatamente aquela que diz o filme, e
sim uma data vindoura: a do dia das próximas
eleições presidenciais americanas. Depois
desse dia, o filme parece não fazer mais sentido
de existir. Um filme... datado. É a triste sina
daqueles papeizinhos desagradáveis que transformam
as ruas da cidade num chiqueiro em dia eleitoral.
E é também o mesmo nome: panfleto. Até
aí, nenhum problema. Grandes artistas, entre
eles cineastas, souberam usar o formato para imprimir
beleza, veemência ou algum valor artístico
que ultrapassava o simples valor factual. Podemos falar
de Maiacóvski, Vertov, Leni Riefenstahl ou Santiago
Álvarez: a obra desses artistas sobreviveu a
seu tempo, não porque elas estavam defendendo
"os valores certos", mas porque havia nelas
algum tipo de criação formal que levava
a imagem cinematográfica para algo adiante. Da
mesma forma, o cinema só obteve estatuto autêntico
de arte independente das outras quando se argumentou
que não era necessariamente um "grande tema"
que fazia um grande filme.
Pois bem, Fahrenheit 11 de
Setembro é sobre um grande tema e, provavelmente
até para o maior fã de seu realizador,
não propõe nenhuma criação
formal. Antes faz o contrário: reduz todo vocabulário
possível de cinema documental e investigativo
ao repertório espetaculoso e de gosto duvidoso
dos programas dominicais de televisão. Há
pegadinhas (como sr. Moore convocando os congressistas
a mandar seus filhos para a guerra), há videocassetadas
(a reportagem sobre a cidadezinha com "riscos de
ataque terrorista" por erro administrativo), há
cenas de bastidores (sr. Bush tendo seu cabelo ajeitado
para entrar ao ar), reportagens com voz over que determinam
o sentido das imagens (passim) e montagens de
efeito cômico. Até aí nada de novo,
ou nada que Michael Moore não tenha feito em
Tiros em Columbine de forma muito mais perniciosa
e abjeta. Mas, continua sendo surpreendente que o herói
cinematográfico dos movimentos de alterglobalização
seja um diretor que restringe seu método a reproduzir
para o cinema, em chave esquerdista, uma série
de procedimentos do chamado entretenimento de constrangimento
ou do sensacionalismo telejornalístico. Numa
determinada época, parecia que contestar a política,
em qualquer nível, era simplesmente uma questão
de trabalhar duro (para desancar o discurso oficial),
ser sério (para pesar seu material de forma que
ele seja o mais esclarecedor possível) e expor
seus resultados. Michael Moore é um grande workaholic
e expõe seus filmes para o maior público
possível, mas jamais será sério.
Ele perde o filme, mas não perde a piada.
À guisa de exemplo, vejamos
a cena em que George W. Bush, já sabendo do ataque
a uma torre do World Trade Center, decide manter sua
programação e entra na escola maternal
para ler com as crianças o livrinho "Minha
ovelha de estimação". Quando é
informado sobre o ataque à segunda torre, fica
por sete minutos apenas folheando as páginas
do livro, sem qualquer reação, diante
das crianças e da professora. Moore trabalha
bem (conseguiu as imagens), mas o que ele faz com elas
é patético: ele retira a duração
(só sabemos da passagem do tempo através
de um reloginho) e retira o áudio (substitui
por comentários dele próprio sobre quais
deveriam ser os pensamentos do presidente). Sete minutos
sem ação por parte do estadista do país
mais rico do mundo num momento de crise, isso já
é por si só um material cinematográfico
inestimável, com peso e dramaticidade próprias.
Bastava colocar uns dois minutinhos intocados da cena
que o argumento da estupidez de Bush estaria comprovado
ele lá, lendo sua ovelhinha enquanto o
país todo queima em pânico. Mas nesse momento
de cinema Bush não poderia ficar como protagonista,
não num filme de Moore: é preciso picotar
a duração pra montagem ficar "ágil",
é preciso cortar o áudio para o filme
não perder o "ritmo". Agilidade e ritmo
que, claro, não são padrões de
sensibilidade e expressão próprios dele,
Michael Moore, mas do fluxo televisual informativo que
o filme reativamente emula (já não se
dizia que não há arte revolucionária
sem forma revolucionária? já não
se dizia qua uma crítica espetacularizada do
espetáculo não é nada de crítica,
mas simplesmente espetáculo?).
Passemos a outra cena muito
comentada, a da ligação de negócios
entre a família Bin Laden e a família
Bush. Fica muito claro que a única coisa que
nos conduz diretamente ao fio Osama-Bush é o
discurso em off, mas não as "provas":
estas no máximo aventa a possibilidade da presença
em uma festa de família, mas jamais monta ligação
entre os parentes empresários da família
Bin Laden e o patinho feio terrorista Osama. Numa exposição
clara e atenta, o elo jamais seria feito. Mas o que
seria matéria cortada em uma reunião séria
de pauta (convenhamos também que não deve
haver muitas no mundo) transforma-se no filme de Michael
Moore em um espetáculo de teoria conspiratória
difícil de engolir para qualquer um que não
seja militante profissional (ou que queira se deslumbrar
pelas "descobertas" do grande profeta Moore).
Pode-se contra-argumentar, e com alguma razão,
que um panfleto não se propõe ser uma
análise acurada e tampouco um veículo
não-tendencioso do tema abordado. Mas a questão
é menos essa do que outra: para se provar uma
tese qualquer (qual seja, a de que a Guerra do Iraque
é uma ficção e que Bush não
deve ser reeleito, algo com o que o autor dessas linhas
subscreve), vale a pena recorrer a todos os expedientes,
mesmo que isso signifique certas derrapagens éticas?
Isso não deve ser um problema para quem critica
pose ao mesmo tempo em que faz pose, para quem utiliza
pessoas de forma melodramática para causar adesão
"lógica" através de sentimentalismos,
ou para quem tenta passar pela montagem de cenas o que
não se conseguiu documentalmente.
Resta que, afora todo o espetáculo
popolítico (tanto pop quanto popô)
ao qual já estamos acostumados desde o bem pior
Tiros em Columbine, Fahrenheit 11 de Setembro
não se reduz a uma série de gags sobre
os Estados Unidos depois da destruição
do World Trade Center. Não que seja um "grande
avanço", em termos temáticos e metodológicos,
longe disso. Michael Moore não tem talento como
homem de imagem, não pode ser considerado um
bom documentarista e tampouco tem inteligência
para além da concatenação publicitária/propagandística
de retóricas visuais. Assim, não há
verdadeiramente uma evolução metodológica
ou estilística de Columbine para este
Fahrenheit 9/11, mas simplesmente o fato de que
um tema mais concreto se presta melhor ao formato do
panfleto (sobre o qual, admitamos, Moore tem o domínio...
mesmo que o panfleto enquanto modelo não se preste
a muita coisa na maior parte das vezes) do que um amálgama
de impressões abstratas que não rima lé
com cré. O que faz de Fahrenheit 11 de Setembro
um filme mais interessante do que os filmes anteriores
de Moore é a captação e instalação
de um mal estar incrível no seio da sociedade
americana a partir dos ataques sofridos pelo país
na data que dá título ao filme.
Um mal que até a maquiagem
antenada e cheia de afetações irônicas
de Moore deixa transparecer: por alguns instantes, Moore
assemelha-se aos deputados que, sem sequer um senador
para apoiá-los em suas petições,
insistem em discursar, quase chorando de tristeza e
raiva, para que haja recontagem nas eleições.
Mesmo a aparição de personagens que estão
no filme para cativar o choro do espectador parece mais
aceitável, uma vez que parece ser a sociedade
americana inteira que está engajada nessa espécie
de psicoterapia pós-Iraque (mais aceitável,
no entanto, não significa "aceitável"):
dos soldados que ouvem bandas de metal para destroçar
iraquianos à mãe republicana que perdeu
o filho na guerra, do ex-combatente ao congressista
que revela que nenhum deputado lê tudo que aprova,
o filme por raros momentos atinge a qualidade de um
divã. Momentos que até parecem aparecer
por acaso no filme - até que eles desapareçam
no efeito de sensação seguinte.
A evidência de Fahrenheit
11 de Setembro é muito mais importante do
que o próprio filme. O filme revela imagens às
quais qualquer jornalista/rede televisiva poderia ter
acesso mediante simples pesquisa e um pouco de dinheiro
para compra de direitos, algo que nos faz supor que
há um regime de omissão de informações
altamente preocupante para um país que se diz
democrático (essa evidência, mas não
o filme, questiona profundamente o conceito de democracia
numa época mediada por meios massivos de comunicação),
mas cujo fluxo de informações em tempos
de guerra mais se assemelha a um modelo fascista. Outro
dado que aparece graças ao evento-Fahrenheit
é que as pessoas simplesmente não
lêem ou acompanham nem por alto o que acontece
no cenário político. Se assim fosse, o
filme de Moore teria certamente menos da metade do impacto
que vem tendo (curiosamente, essa evidência faz
crer que Michael Moore faz seu filme ser tão
frívolo quanto os programas que essas pessoas
não-leitoras assistem em seus aparelhos de televisão).
Por fim, e mais tristemente,
Fahrenheit 9/11 parece fazer valer a idéia
de que um filme de contestação precisa
ser moldado da mesma forma que um filme "do sistema"
para funcionar na bilheteria e nas cabeças das
pessoas, uma espécie de sunday-show cívico
com âncoras como Jô Soares ou João
Kléber fazendo comentários irônicos
sobre questões políticas. O que significa
não uma nova partilha dos lugares artísticos,
mas apenas uma realocação de lugares(-comuns)
preexistentes e já devidamente instalados (tudo
em Fahrenheit 11 de Setembro é reacionário,
do comentário xenófobo sobre os 7% de
participação da Arábia Saudita
na economia americana à idéia de que uma
vez reinstalado o partido democrata no poder os Estados
Unidos poderão ser um país justo novamente).
Filme de contestação,
de propaganda política explícita (e louvável),
Fahrenheit 11 de Setembro passa longe, no entanto,
de ser um filme de resistência. A resistência
implica incertezas, implica fugir do campo costumeiro
de percepção, implica outras formas de
sensibilidade. A resistência engaja a expressão,
ao passo que a contestação pura e simples
só faz assentar o mesmo sobre o mesmo (como ironia
complacente, vamos rir de Bush porque Bush é
burro, ho ho ho). Filme de um americano típico
feito para americanos típicos (passar esse filme
no Brasil com tanto estardalhaço parece tão
ridículo quanto a transmissão do Oscar
ser o evento cinematográfico mais noticiado de
todo ano), Fahrenheit 11 de Setembro tem como
propósito principal um fim prático (e
desejado por virtualmente o mundo inteiro) ao qual nunca
se saberá se serviu (ou na cédula eleitoral
constará a pergunta: "O seu voto foi mudado
depois de ter assistido ao filme de Michael Moore?"?),
mas que deveria ser seu verdadeiro julgamento. Como
um filme e apenas um filme, e especialmente um filme
visto fora da "área de alcance" do
propósito do filme, ainda cremos que o melhor
filme político-mas-babaca do ano ainda
é O Dia Depois de Amanhã. Será
que o futuro presidente Kerry assinará o Protocolo
de Kyoto?
Ruy Gardnier
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