A maior deficiência de Espelho
D Água – Uma Viagem no Rio São Francisco
é a transparência de suas intenções.
Elas são tão explícitas, tão
explicitadas, que berram nas imagens. Passamos a ver
a proposta anterior ao filme, com todos os seus artifícios
dramáticos, com todos os moldes preparados para
a confecção, sem vermos o tecido resultante
da costura. Vemos sobretudo, portanto, o projeto e as
metas. O estreante em longa-metragem Marcus Vinicius
César assume o olhar urbano, por meio de um fotógrafo
e de sua namorada, na aproximação com
um universo sócio-cultural de rincões
profundos, que na tradição intelectual
brasileira é vinculado à uma brasilidade
genuína, pura, sem o contaminado cosmopolitismo
da urbanidade. Por meio desses dois personagens "de
fora", estrangeiros em ambientes não decifráveis
ao primeiro contato, César propõe um confronto
e uma conciliação, justamente entre esses
dois segmentos do Brasil, o urbano e o arcaico.
No entanto, quando passa do projeto para as imagens,
surgem paradoxos, e neles estão o interesse involuntário
do filme. Se o personagem do fotógrafo entra
em crise quando é acusado por uma ribeirinha
de só registrar a beleza, desconectando-a dos
problemas diversos a afligir a região, o filme
toma o mesmo caminho aparentemente criticado por ele
ao seguir o percurso da namorada do protagonista. A
jornada dela em busca do parceiro, motivada por um episódio
visivelmente colocado apenas para se gerar a viagem
pelas entrenhas do ambiente "franciscano", tem forte
conotação de turismo pseudo-antropológico.
O deslumbramento dela em conhecer uma nova civilização,
como se estivesse em um parque temático ou em
um sítio arqueológico, é transportado
sem filtros para as imagens. E assim vemos uma coleção
de situações tratadas na chave do exótico
e do folclórico - como a figura de uma canoa
falante e de uma mística com dons proféticos.
A diluição do Cinema Novo encontra o Sítio
do Pica Pau Amarelo.
Essa infiltração dos tipos urbanos em
mundos pré-modernos é sempre espinhosa.
Mas tomemos um exemplo bem sucedido: A Aventura,
de Michelangelo Antonioni, no qual gente da cidade tromba,
também durante uma busca por uma desaparecida,
com gente de outro contexto. Embora se perceba os contrastes
nas episódicas convivências, o enfoque
toma como centro os personagens, deixando o ambiente
como contexto com o qual interagem. Potencializa-se
humanos e ambientes. Em Espelho D´ Água,
inverte-se essa relação, com o ambiente
à frente dos personagens - afoga-se tudo. Não
se enxerga por trás de rituais e dos cenários
típicos qualquer vestígio de ambiência
e de sintonia entre o espaço geográfico
e a dramatização dos acontecimentos. Na
maior parte das cenas, esse espaço é só
cenário. Outra questão nevrálgica
é a falta de autonomia dos personagens. Eles
representam o elemento urbano, simbolizam isso, mas
não alçam vôo para, nas imagens,
nos levar a crer em suas existências. Os diálogos
e as interpretações não são
atenuantes. E, sendo assim, sobre água para todo
o lado.
Cléber Eduardo
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