UMA CONVERSA COM ROMÁN CHALBAUD

Mais uma vez o Cinesul tenta reparar um grave problema que ainda persiste – a grandiosa falta de comunicação entre os países da América Latina – homenageando Román Chalbaud, o mais importante cineasta venezuelano, complemente desconhecido por aqui. Dono de uma vasta e indiscutivelmente pessoal filmografia, conseguimos reconhecer sua assinatura em até seus filmes mais comerciais como Manon e Cangrejo. Mas é em sua obra-prima O Peixe que Fuma que podemos enxergar mais nitidamente as bases de sua sensibilidade cinematográfica: seus vínculos afetivos com o melodrama, sua incisiva critica político-social, sua aproximação com a marginalidade e com a cultura popular. Foi em um clima de total descontração que Chalbaud com sua simpatia característica concedeu essa entrevista a Fabian Nuñez, Mauricio de Bragança e Estevão Garcia (E.G)

Contracampo: O público brasileiro não conhece muita coisa de cinema venezuelano e, infelizmente, também de sua obra. Então nós vamos fazer uma entrevista mais relacionada com outras cinematografias, de outros cineastas que nós conhecemos. Em seu trabalho, o que mais me chamou a atenção foi o diálogo que você estabelece com a tradição, sobretudo com a tradição do melodrama. Como é fazer este tipo de cinema, que não é uma coisa tão militante, como em geral é o cinema latino-americano, mas que também não propõe um corte tão abrupto com a tradição do melodrama?

Román Chalbaud: Bem, eu nunca temi o melodrama. Há diretores que tem muito medo, o evitam. Eu acho que nós nascemos, minha geração um pouco, com o melodrama do cinema mexicano dos anos 40, o cinema argentino, e o cinema espanhol também.. O que acontece é que quando eu comecei a ir ao cinema, ia para me divertir, ia ao cinema para me entreter, para escapar da realidade. E um dia, lá pelos anos 50, vi Os Esquecidos, de Buñuel, e vi Roma Cidade Aberta, de Rosselini e percebi que o cinema também servia para enfrentar a realidade, não somente para se escapar dela. E inconscientemente, fiz uma mistura desse melodrama que eu respeitava muito quando via um filme de Chaplin, e Chaplin se apropriava do melodrama. E também os problemas sociais não somente da Venezuela mas também de toda a América Latina e do terceiro mundo e também do primeiro mundo, onde há problemas sociais terríveis, não é? Então, eu acho que desta conjunção surgiu um pouco fazer um cinema que se ocupasse de criticar as injustiças sociais sem perder os valores melodramáticos que nós temos internamente em nossa cultura.

Cc:: Complementando, em alguns artigos se faz a comparação de O Peixe que Fuma, do bordel como uma metáfora do país, da Venezuela ou de qualquer outro país latino-americano, mas eu li em uma entrevista sua, que você não gosta muito desta leitura demasiado sociologizante, que a coisa não é assim, a Garça não é o poder político e os homens o poder econômico, ou vice-versa, uma coisa tão simples assim, que você gosta mais da questão da magia do bordel, uma coisa de que os personagens também não são pura metáforas.

RC: Claro, bem, às vezes os críticos descobrem coisas que a gente não quis dizer mas também as obras às vezes se transformam e querem dizer algo que a gente não sabia que queriam dizer. Eu acho que são válidas todas as leituras, cada espectador vê um filme diferente, não é? Ou reage de diferentes maneiras diante de determinadas cenas do filme e o que de verdade me importa muito é que meu cinema seja reflexo das pessoas, que seja pessoas autênticas, que seja seres humanos, não importa se marginais ou não, não importa se maus ou bons, todos são humanos, e então acho que o valor do meu personagem é esse: que realmente exista, as pessoas quando começaram a assistir aos filmes venezuelanos nos anos 70, em 74, se viram refletidas na tela como se a tela fosse um espelho onde a sociedade estivesse se olhando. Logo, nós, sem combinarmos nada, a maioria dos cineastas que começamos a fazer cinema depois dos anos 70, com o boom do cinema venezuelano, em um momento em que o país aparentemente progredia enormemente, que o petróleo estava em 30 dólares, que se falava da Venezuela Saudita, de que todo o mundo se achava milionário, muitos escritores e muitos cineastas nos demos conta de que tudo aquilo era falso, de que havia por dentro uma grande corrupção e que efetivamente trinta anos depois se vem comprovar que era assim. E nós, em nossos filmes, estávamos denunciando o que estava passando, mas as pessoas tinham uma venda nos olhos e não percebiam que esta grande aparente festa, este festival de dinheiro, econômico...

Cc:: Alguém ia pagar isso.

RC: Exato. Então isso foi o que aconteceu. E é curioso que muita gente não se deu conta do que diziam nossos filmes e hoje em dia, com o que passou, com a presença de Chávez por exemplo, que muita gente abriu os olhos, então já se está vendo os filmes de uma maneira diferente. Alfonso Molina, o mais conhecido crítico de cinema venezuelano, escreveu um livro sobre meu cinema, se chama Cine, melodrama y política, algo assim, e então ele escolhe, dentre meus dezessete filmes, uns seis ou sete sobre os quais diz que através deles se pode estudar desde Pérez Gimenez, o ditador que saiu no ano 58, até Chávez, pode-se estudar nestes filmes todo o processo político e econômico da Venezuela.

Cc:: Eu gosto muito que, embora seu cinema faça este diálogo com esta produção do melodrama clássico latino-americano, recuperando este imaginário e esta iconografia com todos os, por vezes, clichês deste melodrama, e também herdeiro deste cinema comprometido e de uma certa maneira, um cinema como instrumento político, de contestação ao apontar as fissuras sociais que existem, também há muito humor em seus filmes, há uma carga muito forte de humor nos filmes quase como uma tragédia humorada, uma tragicomédia, ou algo assim e que por vezes se apropria muito de uma linguagem um tanto quanto grotesca. No sentido positivo do grotesco, como algo que está em formação, que não está totalmente acabado, como se o corpo popular fosse um corpo de resistência e por isto não é algo concluído, como se o popular fosse algo que está em formação e que resiste. Como você vê a inclusão do humor e deste aspecto do grotesco em sua obra?

RC: Bem, o humor é absolutamente necessário porque todos nós na América Latina estamos sempre próximos ao humor. Nos momentos mais trágicos recorremos ao humor. Vocês brasileiros também, tanto como nós. Então o humor é uma parte vital de nossa maneira de ser, de nossa maneira de pensar e também acho que através do humor pode-se dizer muito mais coisas que através do trágico, que sempre ser absolutamente trágico e melodramático todo dia chega um momento em que incomoda, ao contrário se você pode dizer as coisas através do humor são muito mais digeridas, mas é claro que não busquei o humor para convencer as pessoas mas porque é algo que está latente e é uma verdade, não?

Cc:: Você é considerado um diretor popular, inclusive pela temática e pela aproximação às classes mais populares e à margem desta sociedade de Caracas. Como é a recepção de seus filmes na Venezuela, a distribuição das películas, quem é seu público ali?

RC: Bom, no ano de 74, houve dois filmes, Cuando quiero llorar no lloro e o meu La quema de Judas, onde o público demonstrou que queria ver cinema venezuelano e então o estado começou a dar ajuda e começou o regulamento a favor do cinema venezuelano e começou a dar créditos. Desde 1974 até 86 estes créditos nos permitiram fazer de sete a dez filmes por ano. Sempre houve três ou quatro filmes que estavam dentro das dez maiores bilheterias do ano. Inclusive muitas vezes em primeiro lugar, ao invés das norte-americanas. No ano de 86, das dez maiores bilheterias, sete foram venezuelanas e foi terrível para nós ter este grande sucesso porque nos retiraram os 6,6% da bilheteria que nos davam os distribuidores e exibidores porque já estávamos tirando horas de tela do cinema norte-americano. Nos permitiram até certo ponto. No momento em que começamos a fazer uma concorrência grande com os filmes norte-americanos, nos cortaram a cabeça, como fizeram a vocês com a Embrafilme e como em outros países. Os americanos são donos de todas as telas do mundo. Quando aqui está estreando Harry Potter, também está estreando na Venezuela, no Japão, na Itália, em todas as telas do mundo, nós temos que tratar de implorar para que nos ponham na estante de venda de filmes neste grande mercado para que nos dêem um pequeno espaço. É uma situação muito difícil, não somente vive a América Latina e o terceiro mundo, também os espanhóis, os italianos, os franceses vivem preocupados com o tema também. Eu acho que isto deve terminar, entendo que deve haver uma integração da América Latina, uma integração do terceiro mundo porque os filmes latino-americanos quando eu vejo nos festivais, quando eu vejo um filme brasileiro ou cubano ou argentino ou mexicano, percebo que tem muito mais a ver com nossa idiossincrasia, com nossa maneira de pensar, com nossa maneira de viver, nossa maneira de rir que um filme norte-americano, mas claro, o cinema norte-americano impôs esta cultura, nos impôs e é muito difícil lutar contra este grande império. Tanto que tem gente em nossos países que prefere a cultura norte-americana que a nossa. Há pessoas que dizem "eu não vou ao teatro, se não na Broadway, eu não vou ao teatro aqui no Rio ou em Caracas, eu vou a Broadway para ver os espetáculos de teatro ou a ópera", isto é, até a esse ponto chegamos e isto se passou através dos anos e é uma situação muito triste da qual eu penso que devemos nos livrar. Eu gosto muito do cinema norte-americano, eu gosto de Judy Garland, eu adoro assistir Judy Garland mas eu acho que o problema está mais além de Judy Garland, isto é, o problema é que não podemos estar todo o tempo vendo esta cultura e a gente sabe o tamanho da ponte do Brooklin e desconhece o tamanho da ponte Rio-Niterói. Isso não pode ser, não tem sentido. Estão destruindo nossa cultura, nosso jeito de ser e temos que lutar contra isso porque se você pode não querer ser político, mas se você não se mete com a política, a política se mete com você, me entende? Então, a situação já chegou a um extremo em que acho que devemos tomar o assunto e nos unir muito mais.

Cc:: Bom, agora voltando à questão do melodrama. Você falou que estão apagando nossas origens e que alguns diretores ainda têm medo do melodrama ou algo que o remeta. E o melodrama é geralmente um gênero dramático-narrativo em que as coisas são mais simples, geralmente há o bom e o mal. Isto está bem claro. Evidente que nós sabemos que a coisa não é tão simples assim. Você falou do cinema italiano, o neo-realismo italiano, fazendo uma brincadeira, talvez não seja tão realista assim. Há alguns filmes de Rosselini, de Visconti, que vão mais para o trágico que para o realismo propriamente dito.

RC: Sim, é claro. Eu acho que o melodrama é um gênero interminável, que não termina nunca, porque o melodrama não é só o que nós consideramos melodrama, ele vai muito mais além e são inesgotáveis todas as metas. Veja o melodrama de Chaplin: é absolutamente diferente ao de Fassbinder. São mundos absolutamente distintos, assim como as notas musicais são sete e destas sete notas pode sair tanta variedade demelodias, certo? Então eu acho que não devemos temê-lo. Há diretores que têm medo porque eles pensam que não é elegante falar, fazer um melodrama mas depende de como o melodrama é feito porque pode haver o melodrama terrível como pode haver filmes de Antonioni, ou ao estilo de Antonioni, imitando Antonioni, que podem ser terríveis porque não são Antonioni.

Cc:: Porque o melodrama se converte mais que um gênero, é uma linguagem, não? Não é somente um gênero cinematográfico mas uma maneira de aproximar-se a uma determinada situação e revolver isto de um jeito que saiam dali as contradições, enfim.

RC: Sim. No Festival de Havana, dezembro, vi um filme brasileiro que me encantou, que se chama Amarelo Manga. Gostei muitíssimo. Gostei muito mais que de Carandiru. Na verdade encontrei muitos pontos de contato com meu cinema.... toda esta pensão onde se sucede... esta pensão, este pequeno hotel, toda esta coisa sórdida dos personagens e a fotografia de Walter Carvalho, que achei extraordinária, é um grande fotógrafo, mas este filme me fez... gostei muito de vê-lo porque eu não o conheço [Claudio Assis], o conheci ali de vista e acho que tem muito talento e que está neste caminho do cinema que se pode fazer... grandes atores... eu gostei muitíssimo da atuação das pessoas... a verdade daqueles personagens. E me emocionou muito ver que ainda existe um cinema, que há novos realizadores que seguem um caminho que alguém traçou em algum momento.

Cc:: E também está presente este grotesco em Amarelo Manga que está em seu cinema também.

RC: Claro. O grotesco, sim. Gostaria muito, por exemplo, que ele... Porque me propuseram várias vezes fazer O Peixe que Fuma, me propuseram na Espanha fazê-lo, mas que passasse todo na Espanha e eu ainda não digeri a idéia de fazer um remake de O Peixe que Fuma, sobretudo com atores espanhóis e que se passa nos bairros de Barcelona ou entre os ciganos de Sevilla. Também me ofereceram no México fazer O Peixe que Fuma em treze horas para a HBO e eu também não aceitei porque não quero trair o que eu fiz mas, por exemplo, este garoto, Claudio Assis poderia perfeitamente, não me importaria, que ele fizesse um remake de O Peixe que Fuma porque me parece que ele tem uma visão de cinema que se assemelha muito com a minha e claro, com a fotografia de Walter Carvalho.

Cc:: Você começou no teatro, não? Como foi esta trajetória?

RC: Bem, curiosamente, o primeiro que fiz foi cinema porque ao final dos anos 40, 49, o dono da Bolivar Filmes, um senhor louco venezuelano quis fazer filme na Venezuela e trouxe de Buenos Aires Carlos Hugo Christensen com toda sua equipe porque haviam fechado a Lumington, uma companhia argentina, e trouxeram Carlos Hugo Christensen, o assistente, o chefe de som, o fotógrafo, o montador, os maquiadores, e fizeram vários filmes na Venezuela. E La Balandra Isabel foi a mais famosa que ganhou o prêmio de fotografia em Cannes, então esta época eu, bem, era jovem e vivia metido nos estúdios vendo as filmagens. Depois que trouxe os argentinos, a Bolivar Filmes trouxe os diretores mexicanos e no ano 50 levou Victor Urruchua, que havia feito o melodrama Murallas dePasión, con Elvira Rios e Toña la Negra e outras atrizes e eu me empenhei em converter-me em seu assistente de direção e aprendi muito com ele o abc, onde se põe a câmera, e porque salta o eixo, estas coisas, não? E então no ano 50 fui assistente de direção de Urruchua de dois filmes venezuelanos e eu ainda não havia escrito teatro, ou seja, o primeiro que fiz foi cinema, o cinema era algo que realmente me importava. Mas quando fui para a Universidade, estudei teatro e quando começou a televisão em 1953, nos chamaram aos que havíamos sido, havíamos trabalhado nos filmes e eu era muito jovem e então fui fazer televisão e neste ano de 1953 comecei na televisão, estreei minha primeira obra de teatro e já havia feito dois filmes como assistente. Então tudo se uniu e eu pensei que se não pudesse fazer cinema, já que era impossível porque havia parado esta produção de Villegas Blanco, que fez doze filmes e não foi muito bem porque não havia distribuição. Deu a distribuição aos mexicanos e os mexicanos tomavam os filmes e não os lançavam nunca porque era concorrência venezuelana contra eles mesmos. Então estreei minha primeira obra de teatro e como disse Lope de Vega, "o teatro é um palco com atores e paixão", e é teatro, não existem as câmeras, não existem os negativos Kodak, não existem os cinqüenta técnicos e comecei a escrever no teatro tudo o que eu pensava. E felizmente comecei a ter sucesso no teatro, o que eu queria dizer no cinema, disse primeiro no teatro. Tive um professor, Alberto de Paz y Mateos, que era um republicano espanhol que adorava Garcia Lorca , O’Neill, Arthur Miller e Cervantes, e então me metia neste mundo do teatro mas sempre guardava dentro de mim a necessidade de fazer cinema. Assim fiz meus dois primeiros filmes em preto e branco, no ano de 1957 fiz Cain adolescente e em 63, fizemos em cooperativa um filme chamado Cuento para mayores. Esperei até 1974 quando começou este outro ciclo com La quema de Judas, e então, comecei a filmar todos os anos.

Cc:: E estes são adaptações de suas obras de teatro?

RC: Sim. Caín foi uma versão de uma peça de teatro minha, El pez que fuma também, Sagrado y Obsceno, Carmen não, Carmen é a obra de Mérimée, Manón é do Abade Prévost. Fiz Ratón en Ferretería, uma comédia que também foi uma peça de teatro minha e Pandemonium, uma peça de teatro que se chamava o Teatro Recícula de Nácar, ou seja, não fiz todas minhas obras de teatro no cinema e sim algumas. Em A Ovelha Negra tomei algumas idéias de Los Ángeles terribles, que é uma peça de teatro que eu tenho, que a crítica diz que é a melhor, que é uma obra poética que é muito difícil de levar para o cinema tal como está escrita porque é teatro, é literatura, mas alguma idéia de Los Ángeles terribles eu pus em A Ovelha Negra.

Cc:: Como é a adaptação de suas peças para o cinema, são os mesmos atores que trabalham no teatro e depois fazem os mesmos personagens no cinema?

RC: Não, não são os mesmos. Quando adaptamos a minha primeira peça de teatro, La quema de Judas, meu companheiro de trabalho era José Ignacio Cabrujas, que infelizmente já morreu. Ele também era dramaturgo e nos anos 60 havíamos escrito muitos roteiros que nunca foram filmados, nós só os escrevíamos porque não tínhamos trabalho e sonhávamos fazer cinema e escrevíamos muitos roteiros. Mas no ano de 1974, quando tínhamos certeza que podíamos fazer o filme, ele me disse: Por que não fazemos La quema de Judas? Ele havia trabalhado como ator, e fez tanto sucesso, a peça ficou um ano em cartaz, em Caracas e por todo o país, havia uma coisa política nos anos 60 muito importante e havia uma efervescência no país neste sentido. Então quando fomos adaptar a obra, ele, José Ignacio, me disse: Vamos adaptar uma obra de teatro, tínhamos o livro da peça e o jogamos fora e ele me disse: me conte como é a peça, me faça uma sinopse e então eu lhe disse: bem, La quema de Judas trata de... ele sabia, não? Mas era um jogo... se trata disso... Para escrever um roteiro de cinema sobre este argumento e com estes personagens. Ou seja, reescrevemos para o cinema, não usamos. Os diálogos de La quema de Judas no teatro são totalmente diferentes. A obra de teatro era mágica, era como realismo mágico, e o filme era realista e policial. Transformamos a estrutura porque estávamos começando a fazer cinema, queríamos ao mesmo tempo fazer um cinema de qualidade mas que chegasse a todas as pessoas e achávamos que a nossa responsabilidade era chegar a todo mundo e que não podíamos começar por um filme muito pessoal, muito de autor, mas que a história permitisse ser narrada. Fizemos em flashbacks, um filme compreensível para todo o público e assim fizemos. O mesmo fizemos com Sagrado y Obsceno e com O Peixe que Fuma. Em O Peixe que Fuma só deixamos um diálogo, quando ela diz: "autopista de homens, kilômetros de homens", isto é da obra de teatro e o ensaio do tango Uno quando La Garza canta essa música. Esta cena está na peça de teatro. O resto reescrevemos totalmente para o cinema. Além disso O Peixe que Fuma no teatro se passava em apenas um dia. Começava pela manhã e terminava de madrugada. E o filme O Peixe que Fuma passa meses desde que o rapaz chega até que se tornam amantes. Estes tempos foram absolutamente... Acho que é o melhor para se adaptar uma obra de teatro e há pessoas que não vêem, não pensam que isso era uma obra de teatro antes porque não se parece em nada com a estrutura teatral.

Cc:: Em O Peixe que Fuma grande parte da história se passa no bordel, então talvez aí tenha algo de teatro.

RC: Sim, sim.

Cc:: A mesma locação. E eu acho que o mais interessante é que são os homens que saem de casa, são os homens que vão por o dinheiro no banco, então eu acho que no contraste volta a questão melodramática, o contraste entre os exteriores de Caracas, quando eles vão fazer compras ou coisas assim e o bordel, o bairro....

RC: Exato. Bem, o filme me deu muita satisfação. Filmei em 1975 e quando esteve no festival de Tolouse me levaram a um cinema que ficava fora do centro da cidade. O cinema estava cheio e começou o filme, era O Peixe que Fuma com legendas em francês. Eles têm uma cópia e a exibem todos os anos. E já se converteu em um cult movie de verdade e as pessoas me fizeram perguntas, se eram prostitutas de verdade, e eu, bem, eram atrizes, não sei se eram prostitutas de verdade (risos...) Sim, mas foi emocionante fazer este filme e realmente é meu filme mais querido entre os 17 que fiz, 15, não me lembro quantos.

M: Você falou de Amarelo Manga, há alguma preferência no cinema brasileiro, com quem tenha algum diálogo, ou que você goste, enfim...

RC: Bem, gosto muito do passado, não é? O cinema de Glauber Rocha me interessou muitíssimo e depois Nelson Pereira dos Santos, menos o que fez sobre o melodrama: Cinema de Lágrimas. Não gostei nada. Acho que ele não conseguiu o que queria. Ou o que todos queremos é pegar todas as cenas dos filmes mexicanos e eu acho que as melhores cenas não pôs e acho que Nelson não conseguiu o resultado desejado, mas em outro filme Memórias do Cárcere, por exemplo, eu gosto muito. Este me marcou muito. E depois alguns filmes de Babenco. Não exatamente Carandiru, não acho seu melhor filme. O cinema brasileiro é muito vigoroso em geral. Até um filme ruim, e eu vi filmes brasileiros ruins, comerciais, mas sempre têm um vigor, uma beleza, uma autenticidade dos personagens. E mesmo que você não goste do filme, os atores são muito bons, eu vi vários em Havana. Um que eu não gostei foi o que havia uma canção de Roberto Carlos, O Caminho das Nuvens. Me parece um filme comercial, esta coisa nova de que os bancos e as empresas privadas estão dando dinheiro para os filmes converte muitas vezes os filmes nisso, como um programa de televisão. Mais que um filme, são como programas de televisão. Não são filmes autenticamente de autor, mas o que eu digo, é que em qualquer filme brasileiro você encontra algo. Por isso gostei tanto de Amarelo Manga. Realmente é tão maravilhosa, tão autêntica a atmosfera criada, os diálogos muito inteligentes, as atuações, a fotografia, era tudo tão absurdo e tão verossímil ao mesmo tempo. E com uma poesia que me encantou muito. Fazia tempo que não via um filme que eu gostasse tanto como esse.

Cc:: E uma aproximação a esta camada popular desde o interior, parece que se filma o que está na cara, ao redor.

RC: Exato. Esta sordidez, os primeiros planos de sexo são belíssimos, não é? E esta coisa da cor porque se chama amarelo manga quando termina o filme: "Me pinta com a cor de amarelo manga" isto me deixou... Me encantou... E a fotografia de Carvalho. Não vi Diarios de Motocicleta. Soube que está em cartaz aqui, não é? Vocês viram? O que opinam?

Cc:: Não gosto de seu discurso. Eu acho muito monotônica. Afasta-se bastante da diversidade cultural latino-americana em função de um projeto que.... Acho que os projetos latino-americanos são múltiplos, da diversidade. Acho que o filme sempre tem um mesmo tom... Não há esta profundidade da diversidade na exposição da América Latina.

Cc:: Tudo é muito bem encadeado.

RC: Muito bem encadeado.

Cc:: Muito bem encadeado, mas isso é uma crítica. Eu acho que é uma coisa certa aqui, e depois vai acontecer isso. É arrumadinha demais, eu acho. Eu acho que se pusesse uma situação aqui e outra mais além seria uma opção mais interessante. Parece mais preocupado em um concurso de roteiros que no filme.

RC: E vocês que acham de Central do Brasil?

Cc:: Acho uma boa apropriação do melodrama, desta fórmula do melodrama mas não aponta as transgressões que a linguagem pode oferecer porque se apropria de uma fórmula muito bem conhecida, não sei, acho que o melodrama pode ser mais subversivo, como o que você faz, por exemplo, acho muito mais interessante e rico do que este melodrama aceitável, mais reconhecível.

RC: Mais aceitado sim. Acho que os filmes de Walter Salles, que é um ótimo realizador, são sempre uma coisa distante...

Cc:: Cômodos. Não incomodam o público.

RC: Exato. Sempre. Podem passar as coisas mais terríveis que ele conta de uma maneira um pouco distante, não sei, se exclui, não sei...

Cc:: O que acha da obra de Almodóvar, que se converteu quase como um paradigma do melodrama contemporâneo, que tem muitas referências neste cinema mexicano também?

RC: Sim., eu gostava muito do Almodóvar do começo. Seu melhor filme, para mim, é Que fiz para merecer isso?, por exemplo, é a que eu mais gosto, e Labirinto de paixão . Todos estes, os primeiros filmes de Almodóvar, eram excelentes... E a medida que foi tendo sucesso, foi-se depurando, se internacionalizando, está mais preocupado com a técnica e está arrependido de ter andado de chinelo pelas ruas (risos...). Sim, agora quer andar de saltos altos. Porque agora, ele, usando os mesmos recursos de seus filmes anteriores quer ser mais internacional, mais elegante e não gosto disso porque acho que se afasta. Eu não vi seu último filme, La mala educación, mas tem gente que viu e me contou em Cannes...

É um tema que é ele mesmo. Acontece que ele quer agora ver-se nessa coisa afastada. Ele antes era sórdido, era como era seu filme dentro da obra. E vê de forma afastada, se refinou. Eu não gosto que as pessoas se refinam porque o melodrama de Almodóvar era este que não era refinado. Claro, tem um talento enorme, ninguém pode negar, mas esta coisa de ser internacional... Eu acho que o cinema em um certo sentido tem que ser localista, que quando nós vimos Maria Candelaria, O cangaceiro, Rashomon, eram filmes localistas, Allá en el rancho grande, do México. Era um cinema localista que se fez universal porque era localista, como dizia Tchécov, descreve sua paróquia e serás universal. Quando eu assisto um filme brasileiro eu quero que seja brasileiro, quando eu vejo um filme argentino, quero ver os argentinos, me toca mais que eu esteja descobrindo uma cultura, a maneira de pensar, de falar, estas co-produções por exemplo, da espanha com França, não é espanhola e não é francesa. Ítalo-alemã, não é italiana, é uma coisa internacional, que não tem sal, que não sai nada, por isto digo que não me assusta que os filmes sejam locais, ao contrário. E como que alguém faz turismo e não conhece os países, porque chega a um hotel que pode estar em qualquer parte do mundo. O Hilton do Rio é igual ao Hilton de Buenos Aires, que o Hilton do México ou o Hilton de Caracas e você não sabe em que país está. Ou se entra em um shopping center. Barra Shopping é igual ao de Caracas, isto não é conhecer um país. Você está conhecendo uma fórmula geralmente americana que é globalista e o mundo todo é maravilhoso e você é uma Cinderela que chega a um shopping center e pensa que pode comprar tudo que está ali e não pode comprar nada, me entende?

Cc:: Falando disto que o cinema deve ser localista, fale um pouco da mostra competitiva do festival. Notamos que há muitos filmes que falam da sua realidade, como Paloma de papel, que fala do Sendero Luminoso, Marasmo, que fala da guerrilha colombiana, Amor en concreto, da Venezuela, Pyme da Argentina.Queria que você falasse um pouco disso, de como esses filmes se relacionam com seus países e sua realidade.

RC: Sim, bem, como sou jurado não posso falar muito (risos...), vão descobrir em quem votei. Bom, eu acho que isso é válido. Todo mundo na sala entendeu, embora não seja peruano entende o que quer dizer Paloma de papel ou a outra ou a outra. E justamente o cinema serve para isso. Para a gente conhecer os problemas da inquietude, do riso, dos prantos, das canções de cada um de nossos países. Por isso digo que eu gosto, que não me assusta que seja localista, o que me assusta é que seja um filme ruim, porque pode ser localista e horrível. Que seja localista me refiro que trate realmente dos problemas de cada país. Por exemplo, Berlanga não pode ser mais localista e é universal, como Dom Quixote, que é espanholíssimo e é o mais universal que há. Jorge Amado escreve sobre a Bahia e teve um sucesso universal, não é? Sobre o que você diz, sim, eu vi os nove filmes que tinha que ver e são diferentes um do outro e tocam diversos temas e o bom é que estes cineastas latino-americanos se preocuparam cada um em contar coisas reais, factíveis, que estão passando em cada um de seus países e isso me parece uma virtude. Claro, às vezes conseguem e às vezes não, às vezes contam mal, às vezes são tendenciosos, não é? Às vezes não são objetivos mas isso já é outra história. Mas eu acho que isso é o maravilhoso do cinema latino-americano, ter essa variedade.

Cc:: Sobre a questão do melodrama de Almodóvar, eu acho que um outro caminho do melodrama vejo em Arturo Ripstein. Dos anos 90 para cá ele já está fazendo, por exemplo, os três últimos filmes dele não entraram em cartaz aqui. Que são coisas, a meu ver, muito experimentais: La perdición de los hombres, Así es la vida e La virgen de la lujuria. Qual é sua opinião sobre desde El principio y fin, que é de 90, e como ele vai trabalhando com a questão do melodrama, que é muito diferente que, no mesmo México, de um O crime do Padre Amaro.

RC: Sim, é outra coisa.

Cc:: E somente acrescentando, eu percebo que nos anos 90 houve um resgate, ou uma maior aproximação ao melodrama sem tanto preconceito como nos anos 60 ou parte dos anos 70. Ainda acho que há muito medo de definir-se como melodramático.

Mas acho que se pode observar estratégias de melodrama bastante interessantes em alguns diretores não somente em Almodóvar ou Walter Salles, mas também em Lars Von Triers. Acho que é uma característica interessante dos anos 90.

RC: O caso de Ripstein é muito interessante porque realmente ele, depois de haver feito Princípio e Fim, antes de Princípio e Fim eu não gostava muito do cinema de Ripstein e quando vi Princípio e Fim eu era jurado em Porto Rico e era jurado também Humberto Solás, o diretor cubano de Lucía, e decidimos dar o prêmio, porque o terceiro jurado, o portorriquenho também concordava, em dar o prêmio a Ripstein por Princípio e Fim. Ali, Ripstein me conquistou, ali vi um filme, eu não gostava muito do cinema dele, mas era uma coisa pessoal minha. Parece que estava procurando e neste filme, que é baseada na obra de Naguib Mahfouz, o egípcio...

O mesmo autor que Callejón de los milagros, de um romancista árabe, egípcio, e eu gostei muito. Depois, nos outros filmes fez coisas experimentais, que é admirável porque é um homem já com essa carreira e começa realmente a experimentar no cinema e com o melodrama, acho maravilhoso, merece um grande elogio. O que eu não gosto em Ripstein é a crueldade que ele tem com os personagens. Me dava a impressão que ele não gosta das pessoas, mas que gosta muito de si mesmo (risos...). Sim, tudo é terrível. Eu tenho um amigo que, em Chicago, foi comigo ao Festival e quando iam matar aquela menina de 4 anos...

Cc:: Em Profundo Carmesí. (Vermelho Sangue)

RC: Sim. Profundo Carmesí. Disse: "Vou embora" (risos...) A impressão que tenho é que ele não ama os personagens dele mas que ele os usa, mas tem um talento cinematográfico, só que é um pouco sádico (risos...)

Cc:: Bem, agora indo para a comédia. Que tipo de comédia te formou? A comédia americana, Lubitsch, Capra, ou Cantinflas, uma coisa latina...

RC: Lubitsch me encanta e Billy Wilder muitíssimo, gosto muito. Mas também gosto muito de Woody Allen. Eu me surpreendo muito porque na televisão, e eu tenho muitos canais, este Directv e tal, e eu passo muito, me enfadonho, em geral estão disparando tiros, em geral: "assassino!"ou sai alguém com um punhal, explodem um carro, passa e explodem mais dez carros e logo aparece Woody Allen e mesmo que eu tenha visto o filme há muito tempo, fico vendo e sempre acontece que eu veja o filme até o final, mesmo que já o tenha assistido. Por isso eu digo que alguma coisa tem este homem que eu gosto muito. O mesmo que Robert Altman, por exemplo, que também me interessa muito. Outro que me interessa muito é Tim Robbins e Susan Sarandon, o casal. Aqui vocês viram este filme dele que é sobre o teatro de Orson Welles...

Cc:: Cradle will rock.

RC: Esta. Eu comprei em video, em DVD , tenho e me interessa muito. É um tipo de diretor que faz um cinema totalmente diferente e realmente mexe com outros chips da minha cabeça. Já estou cansado desta violência ou dos efeitos especiais. Detesto os filmes que têm efeitos especiais porque se reduzem a isto. Fui ver Troia e oh... era a Iliada vista por Seleção de Reader’s Digest (risos...) Era espantosa, espantosa...

Que coisa tão ruim... Ao contrário, fui assistir a uma de efeitos especiais que se chama O dia depois de amanhã e, bem, gostei, os efeitos especiais estavam a serviço da ecologia e havia algumas piadas, o público morreu de rir quando os americanos não puderam passar para o lado do México, então o presidente disse que ia perdoar a dívida para que os deixassem passar, eu morri de rir, era uma ironia, não? E algo contra Bush pela questão ecológica. Deste eu gostei mais ou menos, mas geralmente evito assistir este tipo de filme. Em Caracas temos várias salas, como umas sete salas de cinema alternativo e a pessoa pode recorrer a estas salas e entre elas está a Cinemateca Nacional mas há outras salas privadas que se formaram, e você encontra alternativas de festival de cinema espanhol, festival de cinema francês, italiano, filmes do Irã, isso é outra linguagem, é algo diferente, tantos filmes maravilhosos que há no mundo e as pessoas se reduzem a ver nada mais que o mesmo produto todo o tempo e ultimamente... o último de Woody Allen, por exemplo, eu não assisti. Alguém me disse que já está se repetindo, não vi, mas ele é um caso aparte. Scorcese, por exemplo, que opinam vocês de Scorcese? Eu acho que ultimamente o melhor que Scorcese fez são uns documentários. Há um documentário que Scorcese fez que assisti na televisão sobre a história do cinema italiano que é maravilhoso porque te conta toda a história do cinema italiano e saem pedaços grandes de cinco, de dez minutos de De Sica, Visconti, Pasolini, tudo, Sophia Loren. Então, gosto mais dos documentários que Scorcese está fazendo do que de seus filmes.

Cc:: Bom, você trabalha com televisão, trabalhou muitos anos, como é trabalhar em teatro, trabalhar em cinema e nesta outra linguagem que é a televisão?

RC: Bom, trabalhar em televisão é um pesadelo, porque você tem que trabalhar muito. É terrível, principalmente quando você tem um salário do canal e eles te obrigam a fazer as telenovelas ou os programas que eles querem fazer. Isto é um pesadelo terrível e eu o vivi no final dos anos 60. Nos anos 70, nós nos rebelamos e um grupo de trabalhadores, de escritores, de diretores do canal de televisão nos convencemos que devíamos fazer bons programas e que estes programas poderiam ter sucesso e conseguimos durante dois, três anos adaptar muitas obras da literatura venezuelana. Por exemplo, Doña Bárbara em telenovela, Cabrujas escreveu La Señora de Cárdenas, que mudou a história da telenovela porque não era um melodrama mas um problema matrimonial com uma linguagem do dia a dia e fez um enorme sucesso. Eu fiz Boves el Urogallo, que era baseado em um livro de Herrera Luque, fiz também La hija de Juana Crespo, fizemos La trepadora de Rómulo Gallegos, se fez La balandra Isabel em telenovela, o conto de Menezes e esta foi uma televisão bem feita. As pessoas chamavam televisão cultural. Era cultural mas era amena ao mesmo tempo porque a cultura não tem que ser cansativa. E esta etapa dos anos 70 foi maravilhosa e infelizmente depois a televisão voltou a cair em mãos erradas e voltaram as telenovelas de tipo mexicanas ou cubanas dos anos de rádio. Eu fui fazer cinema e fazer teatro e em 1981 renunciei à televisão e decidi viver com menos dinheiro, porém mais feliz e além disso os filmes me permitiam ganhar alguma coisa e investir em outro, ou seja, eu gostava muito mais do cinema que da televisão. Ultimamente o que tenho feito nos anos passados foi aceitar fazer uma telenovela nos primeiros trinta capítulos e assino um contrato que aceito fazer os primeiros trinta capítulos e continuam depois outros diretores. Faz dois anos fiz uma telenovela completa chamada Guerra de Mujeres porque eu gostei muito de como era escrita, era divertidíssima, era cômica, tinha um elenco feminino com as melhores atrizes da televisão venezuelana, você se partia de dar risada e tinha um riso inteligente e eu a fiz completa e foi muito bem e ganhou a audiência todo o tempo. Atualmente estou fazendo uma telessérie que se chama Amores de barrio adentro. Dura um ano, é uma hora por semana, já filmei nove capítulos, estréia na terça que vem, eu chego na segunda e na terça é a estréia mas é uma coisa que eu gosto, é uma coisa de qualidade. Então essa coisa com a televisão já não posso como quando era jovem que tinha que trabalhar para poder viver, mas era terrível porque isso realmente é um pesadelo, fazer um capítulo diário. A última vez que trabalhei, eu tinha três diretores. Eu dirigia em um estúdio, outros diretores em outros estúdios e as equipes em externas. E eu e os diretores combinávamos porque tínhamos um mesmo estilo, vamos imitar Lubitsch ou vamos imitar Billy Wilder este é o caminho para que um faça uma coisa e o outro outra, seguramente havia que se fazer o mesmo porque se não era impossível. É impossível que uma só pessoa faça tudo. Claro que entre eles havia reunião de direção, de produção e, mas no geral a diferença de fazer um filme onde você chega a fazer uma cena ou no máximo duas e na televisão você tem que fazer trinta e cinco cenas diárias, dezoito cenas diárias. Chega um momento em que você tem dois meses dirigindo, e você se converte em uma máquina: entra por aqui, sai por ali, se aproxima da janela, fuma, senta, deita, me entende? Já não. Ao contrário, num filme, é uma coisa pura porque é uma só câmera, não são três câmeras, é uma coisa que é planejada perfeitamente. Na televisão, por vezes, os capítulos te chegam um dia antes e você não sabe o que vai ser, que é o que vai dirigir. Logo você encontra com atrizes e atores que não conhece e sai um personagem novo que você não conhece... é um disparate fazer desta maneira como nós fazemos, como se faz ali me entendem? Porque também a televisão poderia ser maravilhosa. Disseram-me que no Brasil até que a telenovela esteja toda gravada não a lançam, é verdade?

Cc:: Não. No geral, não.

RC: Não?

Cc:: Vai-se gravando.

RC: Ah, me disseram que aqui era assim antes, no início. As novelas brasileiras são muito bem consideradas.

Cc:: Acho que algumas telenovelas do SBT são assim.

RC: Quais?

Cc:: As novelas que são de outra emissora, que não a Globo. Algumas gravam toda, acho.

RC: Gravam toda. Claro, É um investimento muito grande. Os custos de uma telenovela são enormes. Cada capítulo tem... também vendem em todas as partes do mundo. Na Venezuela se vê muita televisão brasileira. As telenovelas da Rede Globo, Esperança está passando agora. Eu não vi, às vezes vejo, são muito boas as realizações, estão muito boas. Eu não vejo telenovela, nem as minhas porque não estou todas as noites sentado...(risos...) Mas me disseram que são muito bem escritas, que os escritores dizem coisas um pouco mais inteligentes, não sei se isto é verdade.

Cc:: Acho que tentam incluir questões mais polêmicas...Tem uma novela que o autor é co-roteirista de Central do Brasil.

RC: Ah sim?

Cc:: A Cor do pecado. Em uma entrevista eu li que é uma coisa de louco. Ele acorda pela manhã e escreve até à noite, não tem tempo para mais nada, para ler, pra nada...

RC: Não, não, é uma coisa terrível. Um pesadelo. Quando eu trabalhava, que tinha meu salário eu chegava as oito da manhã e saía a uma da madrugada, ou as onze da noite. Não existe vida pessoal.


Entrevista realizada por Fabián Nuñez, Maurício de Bragança e Estevão Garcia, dia 17 de junho de 2004, CCBB. Transcrição e tradução: Maurício de Bragança. Revisão: Estevão Garcia e Ruy Gardnier.