Com De Passagem, o diretor
Ricardo Elias e o roteirista Cláudio Yosida afirmam
uma parceria feliz: a preocupação do primeiro
em abordar temas políticos e sociais encontrou
abrigo na sensibilidade intimista de Yosida. O resultado,
se por um lado apresenta as vacilações
comuns a um longa de estréia, por outro aposta
em um cinema de personagens consistentes, construídos
a partir de vivências que não são
estranhas aos próprios realizadores.
Para tanto, Ricardo Elias e Cláudio Yosida trabalharam
eficientemente com a costura de diversos gêneros
clássicos de narrativa. A começar pela
idéia de travessia, tão bem representada
pelos trilhos do trem, que cortam a cidade de São
Paulo e conduzem a trajetória dos dois amigos
Jéferson e Kennedy. Linhas retas ou curvas, atalhos,
túneis, baldeações: toda esta coreografia
espacial urbana é incorporada harmonicamente
dentro de uma construção poética
impregnada por uma atmosfera trágica. Vale ressaltar,
aqui, as contribuições preciosas de Carlos
Jay Yamashita (fotógrafo) e de Reinaldo Volpato
(montador) na articulação do espaço
e do tempo como elementos intimamente ligados aos personagens.
A travessia implica em uma lógica narrativa estruturada
a partir de grandes deslocamentos. E é através
destes deslocamentos que De Passagem se organiza
diante dos olhos do espectador: os personagens percorrem
não só a geografia paulistana, como também
a própria memória. Através de uma
série de flash-backs, acompanhamos a história
de Kennedy, de Jéferson e de seu irmão
Washington, amigos inseparáveis na infância
vivida na periferia.
De Passagem é uma espécie de road-movie
no interior de uma megalópole, mas que se filia
também a um sentimento de origem remotamente
neo-realista. Aliás, se é possível
apontar uma influência de certa forma inusitada
na concepção dramática de Elias
e Yosida, ela se dá exatamente nesta tradição
de um neo-realismo brasileiro (e penso aqui no
Roberto Santos e no Nelson Pereira dos Santos do final
dos anos 50, ou seja, Rio 40 Graus, Rio Zona
Norte e O Grande Momento). A busca pela emotividade,
o carinho com o qual os personagens centrais são
filmados, a sutil e expressiva direção
de arte (de Cristiano Amaral) e a assimilação
delicada dos próprios figurantes no interior
da mise-en-scène, são alguns pontos
de contato entre De Passagem e os primeiros filmes
de Roberto e Nelson Pereira. O retorno a este "neo-realismo",
porém, não parece depender de nenhuma
retomada ou homenagem consciente; nasce, antes, das
condições de produção e
do próprio argumento, ou seja, de uma equação
entre a busca pela comunicabilidade com o público
e as intenções críticas e estéticas
de seus autores.
Está claro que, em De Passagem, Ricardo
Elias e Cláudio Yosida optaram por um tipo de
cinema narrativo clássico, e não será
estranho que surjam, aqui e ali, comentários
ocupados em condenar um classicismo excessivo ou a utilização
de "clichês". Não é absolutamente
o que parece mais importante neste filme. No fundo desta
proposta clássica, há uma certa contenção,
um certo rigor de estilo que pulsa além de suas
limitações. O que mais agrada em De
Passagem é, justamente, esta contenção
extremamente saudável num contexto cinematográfico
que, cada vez mais, privilegia o choramingo e a pieguice
(pensamos em Walter Salles, por exemplo). Há
emoção em De Passagem, e muita,
mas ela surge de uma necessidade interna, de uma adequação
entre o roteiro (a construção das ações
e dos personagens) e a direção de atores.
Há contenção, também, -
quase mesmo um pudor - na recusa ao espetáculo
da miséria, como se Elias e Yosida nos dissessem
que, assim como um rio de lágrimas não
faz um filme, o banho de sangue, por si só, também
não redime os pecados. De Passagem recusa
a violência, embora ela esteja presente como o
entorno dos personagens.
Mesmo evitando o risco de uma proposta estética
mais ousada, De Passagem consegue fugir do tipo
de abordagem comum do cinema brasileiro quando o assunto
é a pobreza ou a exclusão social. É
preciso ressaltar que os personagens Jéferson
e Kennedy não são tipicamente favelados,
pelo menos no sentido que esta expressão adquiriu
no cinema brasileiro atual, isto é, algo entre
a dupla Laranjinha e Acerola e Cidade de Deus
- pelo menos no imaginário classe-média
global. Os personagens de De Passagem são
pobres, mas não moram em condições
sub-humanas, isto é, não são miseráveis.
De Passagem é, sim, um filme sobre a periferia,
mas que procura fugir de uma caracterização
excessivamente maniqueísta. Lembra, num certo
sentido, a proposta de um O Homem Que Copiava,
de Jorge Furtado, que lida com um personagem negro de
classe média baixa absolutamente deslocado de
um universo, vamos dizer assim, "folclórico".
Não faz sentido, portanto, procurar em De
Passagem simplesmente um "drama de favelados". O
que parece interessar a Elias e a Yosida é a
forma como as relações humanas vão
sendo desintegradas e rompidas por um contexto no qual
impera a violência e a exclusão. Não
é por acaso que os personagens centrais são
jovens que até poderiam nutrir esperanças
de um salto social (caso de Jéferson, que vai
ao Rio para estudar no Colégio Militar).
Mas há algumas falhas nesta abordagem, e a principal
delas me parece ser o fato de que a própria relação
entre os dois amigos Kennedy e Jéferson não
chega a ecoar o drama vivido pelos personagens quando
ainda eram crianças. Há uma certa leveza
que, num dado momento, destoa do que é visto
por nós espectadores, em especial nos episódios
mais violentos vividos pelo trio de amigos na infância.
Se Sílvio Guindane consegue dar veracidade ao
papel de Jéferson - e, mais do que veracidade,
consegue dar a ele um passado - o mesmo não ocorre
com Fabio Nepomuceno, que interpreta Kennedy.
Isso é particularmente prejudicial porque, num
contexto mais geral, podemos dizer que De Passagem
assume o olhar da periferia - portanto, o olhar de Kennedy,
que permaneceu na região em que nasceu e se criou,
e ainda teve uma passagem pela Febem. O filme abre e
fecha com enquadramentos similares, que privilegiam
a figura de Kennedy - no plano inicial, quando, ainda
garoto, ele canta Primavera (Vai Chuva), de Cassiano
e Sílvio Rochael; e no plano final, quando, já
adulto, ele parte, de costas para a câmera. De
certa maneira, Kennedy é o elo que une os irmãos
Jéferson e Washington, que seguiram caminhos
opostos, o primeiro ingressando no Colégio Militar,
e o segundo, no tráfico.
Por outro lado, nos momentos em que Jéferson
e Kennedy simplesmente conversam (no ônibus, de
trem ou a pé, enquanto procuram pelo corpo de
Washigton) o filme se sustenta sem nenhum favor - basta
lembrarmos da cena em que Jéferson é paquerado
por uma bela moça, ou o momento em que os dois
estão num boteco comendo uma coxinha e Kennedy
suspeita de que estão sendo seguidos. Há
ali uma "respiração" perfeita entre os
atores e o tempo de observação da câmera.
Contudo, o jogo que aí se estabelece entre o
filme e o espectador é o da contemplação
de pequenos gestos, dos detalhes com certeza reveladores
de cada personagem, mas que não são essenciais
para a condução narrativa.
Os momentos de maior violência e intensidade são
os vividos pelas crianças. Muito embora o elenco
infantil não consiga manter o grau de tensão
necessário a estas cenas, o tratamento dado a
elas pelo roteiro e pela câmera oferecem alguns
momentos de extrema sutileza. A começar pelo
ponto de vista assumido por cada flash-back.
O filme oscila o tempo inteiro entre o ponto de vista
de Jéferson e de Kennedy, e a câmera ora
se posiciona como o olhar de Jéferson (como na
cena da estação abandonada de trem), ora
se posiciona como o olhar de Kennedy (como na cena em
que Jéferson se recusa a entrar na casa do traficante
Márcio e, com os olhos de Kennedy, vemos a porta
se fechar, deixando Jéferson para trás).
Se Kennedy é o "ponto de apoio" do filme, figura
unificadora que organiza o rumo da narrativa, Jéferson
possui algo da tragicidade dos personagens de filmes
de cowboys, que voltam à antiga cidade
ou ao seio familiar e encontram tudo destruído,
dilacerado. Tem, portanto, o caráter transitório
e obscuro destes personagens - e, de fato, no filme
é ele quem realmente se encontra "de passagem".
Embora recuse manter-se ali, na região em que
se criou, não consegue desvincular-se do passado.
E é Kennedy quem traz esse passado de volta,
tal como um fantasma que o assombra.
Kennedy tem todo este peso, mas não é
sobre ele que recaem as nossas atenções.
Jéferson é de fato o personagem mais "forte",
pois possui uma carga bem maior de ambigüidade.
Jéferson é o que poderíamos chamar
de um "pequeno militar" e se é com ele que os
espectadores tendem a se identificar desde os primeiros
momentos, tal identificação não
deixa de ser problemática - afinal, a figura
do militar nunca foi simpática no cinema brasileiro.
Mas Jéferson vê a carreira militar como
uma forma de fugir do destino comum à grande
parte dos jovens de periferia - o desemprego ou o tráfico.
E, nesta escolha, adota a disciplina militar para também
conduzir sua própria vida, procurando manter-se
numa pretensa linha de legalidade. Novamente, é
o contato com Kennedy - e com a realidade da periferia
- que fará com que Jéferson se desequilibre
nesta corda bamba. Ao fim, quando será necessário
optar pela ilegalidade, ele não terá escolhas.
Resta o personagem de Washington, irmão de Jéferson,
figura que será ao mesmo tempo presente e ausente
na narrativa. São poucas as referências
que temos de Washington, entre elas as cenas em que
ele aparece ainda criança e as informações
que Jéferson recebe de Kennedy. De Passagem
é um filme que se constrói a partir desta
lacuna, desta "presença ausente", que força
Jéferson e Kennedy a retomarem os laços
de amizade, ainda que de forma efêmera. O que
há de mais interessante em De Passagem
é justamente esta construção dramática
que nasce do sentimento de "perda". Ela envolve os personagens,
mas exprime um desejo maior de representação
- no caso, a dos jovens que mantêm como herança
comum a experiência da marginalidade.
Luis Alberto Rocha Melo
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