DE PASSAGEM
Ricardo Elias, Brasil, 2003

Com De Passagem, o diretor Ricardo Elias e o roteirista Cláudio Yosida afirmam uma parceria feliz: a preocupação do primeiro em abordar temas políticos e sociais encontrou abrigo na sensibilidade intimista de Yosida. O resultado, se por um lado apresenta as vacilações comuns a um longa de estréia, por outro aposta em um cinema de personagens consistentes, construídos a partir de vivências que não são estranhas aos próprios realizadores.

Para tanto, Ricardo Elias e Cláudio Yosida trabalharam eficientemente com a costura de diversos gêneros clássicos de narrativa. A começar pela idéia de travessia, tão bem representada pelos trilhos do trem, que cortam a cidade de São Paulo e conduzem a trajetória dos dois amigos Jéferson e Kennedy. Linhas retas ou curvas, atalhos, túneis, baldeações: toda esta coreografia espacial urbana é incorporada harmonicamente dentro de uma construção poética impregnada por uma atmosfera trágica. Vale ressaltar, aqui, as contribuições preciosas de Carlos Jay Yamashita (fotógrafo) e de Reinaldo Volpato (montador) na articulação do espaço e do tempo como elementos intimamente ligados aos personagens.

A travessia implica em uma lógica narrativa estruturada a partir de grandes deslocamentos. E é através destes deslocamentos que De Passagem se organiza diante dos olhos do espectador: os personagens percorrem não só a geografia paulistana, como também a própria memória. Através de uma série de flash-backs, acompanhamos a história de Kennedy, de Jéferson e de seu irmão Washington, amigos inseparáveis na infância vivida na periferia.

De Passagem é uma espécie de road-movie no interior de uma megalópole, mas que se filia também a um sentimento de origem remotamente neo-realista. Aliás, se é possível apontar uma influência de certa forma inusitada na concepção dramática de Elias e Yosida, ela se dá exatamente nesta tradição de um neo-realismo brasileiro (e penso aqui no Roberto Santos e no Nelson Pereira dos Santos do final dos anos 50, ou seja, Rio 40 Graus, Rio Zona Norte e O Grande Momento). A busca pela emotividade, o carinho com o qual os personagens centrais são filmados, a sutil e expressiva direção de arte (de Cristiano Amaral) e a assimilação delicada dos próprios figurantes no interior da mise-en-scène, são alguns pontos de contato entre De Passagem e os primeiros filmes de Roberto e Nelson Pereira. O retorno a este "neo-realismo", porém, não parece depender de nenhuma retomada ou homenagem consciente; nasce, antes, das condições de produção e do próprio argumento, ou seja, de uma equação entre a busca pela comunicabilidade com o público e as intenções críticas e estéticas de seus autores.

Está claro que, em De Passagem, Ricardo Elias e Cláudio Yosida optaram por um tipo de cinema narrativo clássico, e não será estranho que surjam, aqui e ali, comentários ocupados em condenar um classicismo excessivo ou a utilização de "clichês". Não é absolutamente o que parece mais importante neste filme. No fundo desta proposta clássica, há uma certa contenção, um certo rigor de estilo que pulsa além de suas limitações. O que mais agrada em De Passagem é, justamente, esta contenção extremamente saudável num contexto cinematográfico que, cada vez mais, privilegia o choramingo e a pieguice (pensamos em Walter Salles, por exemplo). Há emoção em De Passagem, e muita, mas ela surge de uma necessidade interna, de uma adequação entre o roteiro (a construção das ações e dos personagens) e a direção de atores. Há contenção, também, - quase mesmo um pudor - na recusa ao espetáculo da miséria, como se Elias e Yosida nos dissessem que, assim como um rio de lágrimas não faz um filme, o banho de sangue, por si só, também não redime os pecados. De Passagem recusa a violência, embora ela esteja presente como o entorno dos personagens.

Mesmo evitando o risco de uma proposta estética mais ousada, De Passagem consegue fugir do tipo de abordagem comum do cinema brasileiro quando o assunto é a pobreza ou a exclusão social. É preciso ressaltar que os personagens Jéferson e Kennedy não são tipicamente favelados, pelo menos no sentido que esta expressão adquiriu no cinema brasileiro atual, isto é, algo entre a dupla Laranjinha e Acerola e Cidade de Deus - pelo menos no imaginário classe-média global. Os personagens de De Passagem são pobres, mas não moram em condições sub-humanas, isto é, não são miseráveis. De Passagem é, sim, um filme sobre a periferia, mas que procura fugir de uma caracterização excessivamente maniqueísta. Lembra, num certo sentido, a proposta de um O Homem Que Copiava, de Jorge Furtado, que lida com um personagem negro de classe média baixa absolutamente deslocado de um universo, vamos dizer assim, "folclórico".

Não faz sentido, portanto, procurar em De Passagem simplesmente um "drama de favelados". O que parece interessar a Elias e a Yosida é a forma como as relações humanas vão sendo desintegradas e rompidas por um contexto no qual impera a violência e a exclusão. Não é por acaso que os personagens centrais são jovens que até poderiam nutrir esperanças de um salto social (caso de Jéferson, que vai ao Rio para estudar no Colégio Militar).

Mas há algumas falhas nesta abordagem, e a principal delas me parece ser o fato de que a própria relação entre os dois amigos Kennedy e Jéferson não chega a ecoar o drama vivido pelos personagens quando ainda eram crianças. Há uma certa leveza que, num dado momento, destoa do que é visto por nós espectadores, em especial nos episódios mais violentos vividos pelo trio de amigos na infância. Se Sílvio Guindane consegue dar veracidade ao papel de Jéferson - e, mais do que veracidade, consegue dar a ele um passado - o mesmo não ocorre com Fabio Nepomuceno, que interpreta Kennedy.

Isso é particularmente prejudicial porque, num contexto mais geral, podemos dizer que De Passagem assume o olhar da periferia - portanto, o olhar de Kennedy, que permaneceu na região em que nasceu e se criou, e ainda teve uma passagem pela Febem. O filme abre e fecha com enquadramentos similares, que privilegiam a figura de Kennedy - no plano inicial, quando, ainda garoto, ele canta Primavera (Vai Chuva), de Cassiano e Sílvio Rochael; e no plano final, quando, já adulto, ele parte, de costas para a câmera. De certa maneira, Kennedy é o elo que une os irmãos Jéferson e Washington, que seguiram caminhos opostos, o primeiro ingressando no Colégio Militar, e o segundo, no tráfico.

Por outro lado, nos momentos em que Jéferson e Kennedy simplesmente conversam (no ônibus, de trem ou a pé, enquanto procuram pelo corpo de Washigton) o filme se sustenta sem nenhum favor - basta lembrarmos da cena em que Jéferson é paquerado por uma bela moça, ou o momento em que os dois estão num boteco comendo uma coxinha e Kennedy suspeita de que estão sendo seguidos. Há ali uma "respiração" perfeita entre os atores e o tempo de observação da câmera. Contudo, o jogo que aí se estabelece entre o filme e o espectador é o da contemplação de pequenos gestos, dos detalhes com certeza reveladores de cada personagem, mas que não são essenciais para a condução narrativa.

Os momentos de maior violência e intensidade são os vividos pelas crianças. Muito embora o elenco infantil não consiga manter o grau de tensão necessário a estas cenas, o tratamento dado a elas pelo roteiro e pela câmera oferecem alguns momentos de extrema sutileza. A começar pelo ponto de vista assumido por cada flash-back. O filme oscila o tempo inteiro entre o ponto de vista de Jéferson e de Kennedy, e a câmera ora se posiciona como o olhar de Jéferson (como na cena da estação abandonada de trem), ora se posiciona como o olhar de Kennedy (como na cena em que Jéferson se recusa a entrar na casa do traficante Márcio e, com os olhos de Kennedy, vemos a porta se fechar, deixando Jéferson para trás).

Se Kennedy é o "ponto de apoio" do filme, figura unificadora que organiza o rumo da narrativa, Jéferson possui algo da tragicidade dos personagens de filmes de cowboys, que voltam à antiga cidade ou ao seio familiar e encontram tudo destruído, dilacerado. Tem, portanto, o caráter transitório e obscuro destes personagens - e, de fato, no filme é ele quem realmente se encontra "de passagem". Embora recuse manter-se ali, na região em que se criou, não consegue desvincular-se do passado. E é Kennedy quem traz esse passado de volta, tal como um fantasma que o assombra.

Kennedy tem todo este peso, mas não é sobre ele que recaem as nossas atenções. Jéferson é de fato o personagem mais "forte", pois possui uma carga bem maior de ambigüidade. Jéferson é o que poderíamos chamar de um "pequeno militar" e se é com ele que os espectadores tendem a se identificar desde os primeiros momentos, tal identificação não deixa de ser problemática - afinal, a figura do militar nunca foi simpática no cinema brasileiro. Mas Jéferson vê a carreira militar como uma forma de fugir do destino comum à grande parte dos jovens de periferia - o desemprego ou o tráfico. E, nesta escolha, adota a disciplina militar para também conduzir sua própria vida, procurando manter-se numa pretensa linha de legalidade. Novamente, é o contato com Kennedy - e com a realidade da periferia - que fará com que Jéferson se desequilibre nesta corda bamba. Ao fim, quando será necessário optar pela ilegalidade, ele não terá escolhas.

Resta o personagem de Washington, irmão de Jéferson, figura que será ao mesmo tempo presente e ausente na narrativa. São poucas as referências que temos de Washington, entre elas as cenas em que ele aparece ainda criança e as informações que Jéferson recebe de Kennedy. De Passagem é um filme que se constrói a partir desta lacuna, desta "presença ausente", que força Jéferson e Kennedy a retomarem os laços de amizade, ainda que de forma efêmera. O que há de mais interessante em De Passagem é justamente esta construção dramática que nasce do sentimento de "perda". Ela envolve os personagens, mas exprime um desejo maior de representação - no caso, a dos jovens que mantêm como herança comum a experiência da marginalidade.

Luis Alberto Rocha Melo