CONTRA-REGRA
coluna semanal de televisão

Uma rapidinha...

A bola já estava lançada há alguns meses aqui na coluna, e não é surpresa o estardalhaço com que a Rede Globo recebeu as propostas inscritas no projeto geral de criação da ANCINAV. Com ênfase nas questões do mercado cinematográfico, e que será discutido em pauta emergencial em breve, o que a Rede Globo tenta passar despercebido em suas entrelinhas é seu verdadeiro pavor diante das modificações possíveis na estrutura econômica opressiva que seu império midiático exerceu nos últimos 20 anos sobre a produção audiovisual do país. O que a Rede Globo teme é a possibilidade de suas ações e estrutura de programação serem submetidas a padrões de regulação pública que a force a promover radicais modificações na sua forma de conceber-produzir-difundir imagens. Muito longe dos dirigismos conteudistas que a Rede Globo e meia dúzia de comparsas parecerem colocar como um desejo "stalinista" do governo federal, o que está em jogo é a efetivação de um mercado audiovisual verdadeiramente democrático, baseado na vontade pública de que as emissoras de grande porte sejam obrigadas a administrar o seu espaço de difusão (conseguido através de concessão pública, ou seja, nenhuma emissora é dona do espaço de transmissão – apenas ganhou o direito de utilizá-lo – como as companhias de celular, por exemplo) seguindo critérios de regionalização, difusão da produção independente e democratização do acesso aos meios difusores brasileiros.

A Rede Globo faz estardalhaço em torno da fragilidade do cinema nacional e dos riscos que ele corre, mas seu interesse claro e direto é o de minar um projeto de criação de uma agência que venha a fazer no Brasil o que há muito já se faz em países cujo capitalismo está muito mais arraigado – ou seja: não será mais possível que um elefante branco como a Rede Globo continua concentrando 60% da audiência de tv aberta, baseada num império midiático, nem que ela produza apenas dentro dos padrões acertados por seus marqueteiros e ocupe toda a sua programação com essa produção normatizada, nem mesmo que a programação do país inteiro seja produzida nesse binômio Rio-São Paulo que pouco corresponde à amplitude cultural e territorial de nosso país.

Muito se discutirá ainda sobre os meandros das novas leis do audiovisual, muito lobby será feito, muitas negociações serão necessárias – mas é essencial que se perceba o verdadeiro foco do pavor da madame Rede Globo quando se fala em ANCINAV: que ela seja obrigada a cumprir o que está na Constituição Brasileira, já que nunca, na história do país, houve uma instância político-administrativa diretamente delegada à função de cobrar, de taxar o "cumpra-se" sobre as ações das emissoras.

Ninguém pode gerenciar sobre os conteúdos de uma produtora de TV (a tal "censura" que é citada como o bicho-papão pelos seguidores da platinada senhora), mas pode sim legislar sobre as formas com que uma empresa emissora de serviço público (como os metrôs, ônibus, companhias de eletricidade, etc.) está cumprindo as determinações de dar vazão, da forma mais rica e diversificada possível, às expressões audiovisuais brasileiras – e isso vai além do tal Conteúdo Brasil defendido pela Rede Globo como fórmula da qualidade na TV (e que defenderia o país da invasão gringa...), mas das possibilidades das pequenas produtoras (das mais diferentes partes do país, além de modelos de cooperativas e alternativos), terem acesso ao espaço público da radiodifusão, fazendo com que o mercado de produção para a TV, no país, saia desse estágio de protetorados econômicos e entre num ciclo de capitalismo democrático (a Globo não era defensora da democracia?) que o audiovisual brasileiro nunca conheceu.

Não é de hoje que eu brinco que a Rede Globo é a estatal comunista que todo capitalista pediu a Deus: a nossa herança mais pulsante do estatismo ditatorial militar – um pouco como os mega-empresários russos que hoje herdam seus impérios de uma ditadura comunista desabada. E isso se confirma cada vez mais nessas tentativas golpistas de minar a descentralização do poder. Porque o que ela faz é justamente tentar vender a idéia de que seu conglomerado econômico-midiático é padrão e modelo direto para a representação do país nas telinhas e que nada há de errado que em meia dúzia de executivos resolvam o que cabe ou não cabe dentro da tal identidade brasileira porque eles se baseariam no tal mercado e no dito gosto do povo (vide audiência...).

Ora, ora: o povo, o público – tratados, mais uma vez, como se somente soubessem escolher entre A, B ou C... Mas e se os povos, a multidão, quiserem, uma vez ao menos, assistir a D ou E ou F? Em que canal ele coloca seu aparelho se o que deveria ser espaço de profusão/emissão de possibilidades infinitas de imagem foi loteado numa estéril múltipla escolha do mesmo, baseada em retornos financeiros furados (ou a Rede Globo não está quebrada?)? O espectador está condenado a só querer essa estranha estética do que "dá certo"?

Se a máquina "global" já deu grandes contribuições à difusão do meio e do fazer televisivo no país (foi dela a primeira rede nacional de tv e a cristalização da televisão como meio cultural prioritário no país, ou mesmo a efetivação de nosso gênero televisivo mais marcante: a telenovela), seu modelo monolítico e inchado de discurso sintético-cultural já deu, ao longo da última década, sinais econômicos, estéticos e políticos de total insustentabilidade – e que pode ter nessa formulação da ANCINAV, o seu ponto central de reformulação.

E não adianta arrancar os cabelos...

Felipe Bragança

Textos da semanas anteriores:
Divagações da qualidade (por Felipe Bragança)
Anotações da madrugada, parte 2: CNN (por Felipe Bragança)
Anotações da madrugada, parte 1: Rede Globo (por Felipe Bragança)
Gomes vs. Coen (por Francisco Guarnieri)
Viagens Fantásticas (parte 2) (por Felipe Bragança)
Terapeuta JK (por Francisco Guarnieri)
Viagens Fantásticas (parte 1) (por Felipe Bragança)
Coito de Cachorro, Otávio Mesquita, Sônia Abrão e outras sumidades televisivas (por Francisco Guarnieri)
Pânico! (por Felipe Bragança)
Notas, notas, notas (por Francisco Guarnieri)
Da TV e dos corpos humanos, parte 2 (por Felipe Bragança)
Da TV e dos corpos humanos, parte 1 (por Felipe Bragança)
Violência da edição, edições da violência (por Felipe Bragança)
Fauna in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa (por Francisco Guarnieri)
Semana de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 – Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 (por Felipe Bragança)
A Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos treze (por Roberto Cersósimo)
Algum começo... (por Felipe Bragança)
Uma novela de... (por Roberto Cersósimo)
O canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe Bragança)
O fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos (por Felipe Bragança)