CONTRA-REGRA
coluna semanal de televisão

Divagações da qualidade...

1. Acompanhando a bolha econômica comum ao universo midiático brasileiro, uma outra bolha, temática, tem se propagado nos entremeios do discurso televisivo. Aparentemente, a limitação superinflada de estruturas dramáticas recorrentes, tem tido efeitos diretos também na capacidade de criação do novo, de novas possibilidades de discurso através do cotidiano (força motriz da televisão). Essa defasagem se traduz na histeria interativa com que as emissoras tentam renovar suas grades: introduzindo a participação interventora do espectador (da ênfase ao caráter de competição moral do BBB ao envio de fotografias para a abertura de telenovelas...) – buscando-a como ferramenta de lustrar com novidade o que muitas vezes não passa da manutenção do mesmo.

2. Programas que vão do Videoshow aos paradigmáticos programas de telefofoca (TV Fama, O Melhor da Tarde, etc), fecham o ciclo de referências de uma dimensão pantelevisiva brasileira que se realimenta de sua própria cauda. Temáticas construídas e legitimadas ao longo dos últimos 40 anos da TV, a partir do núcleo familiar burguês e dos parâmetros dos dramas morais caracterizados no gênero das telenovelas, passam a se tornar não apenas modos de discurso sobre a realidade, mas também referenciais "reais" sobre os quais se debruçam toda uma série de dramaturgias satélites (que vão das telenovelas do SBT aos testes de fidelidade de João Kléber). A novelização da vida e a transformação dos eventos cotidianos em mesmidades relevantes do telejornalismo, torna-se gesto básico da propagação de idéias via TV e de reconhecimento especular de afecções (não compartilhadas em sua emergência primeira).

3. A televisão aberta brasileira concretiza essa presença-comum a partir de um conjunto gramatical cada vez mais restrito a modelos de imagens programáticos – onde a repetição se dá como forma de assegurar sua cada vez mais frágil pujança econômica, sua delicada dependência comercial. Incapaz de redescobrir-se como território estético, amuleta-se no sonho insípido de se tornar canal da realidade brasileira, e regozija-se de seu próprio corpo vasto, como fuga segura para a ameaça de sua desfiguração. O desejo de criação de uma imagem-do-coletivo, é transposta na criação de uma forma comum – em que a harmonia reiterativa é responsável pela concretização de um espaço de identidade apaziguadora das diferenças – onde o todo dissonante se torna espelho desordenado dos gêneros televisivos cristalizados.

4. Ao contrário do que se poderia supor, aqui se dá uma curiosa inversão de expectativas: é justamente nos programas ditos superficiais, mais supostamente entregues às "banalidades" da TV que a novidade discursiva tem podido se insinuar. Basta uma análise mais apurada da construção audiovisual de programas de "qualidade dramatúrgica" (Maria Adelaide Amaral é exemplo maior), para se perceber nesses produtos um ranço maneirista da linguagem cinematográfica que, ao invés de insuflar o novo, parece apenas transferir um certo cinema estatal de reconstituição cultural-histórica para a televisão privada – ignorando as possibilidades de projeção/exibição e mesmo de fruição do espectador do dia-a-dia da TV.

5. Se por um lado essa postura funciona como estratégia de concentração de produção (e não apenas de difusão) de dramaturgia na TV (numa domesticação de temáticas e abordagens que visam minar a necessidade de produção independente), por outro, limita o horizonte da TV brasileira a uma pobre palheta de fórmulas que já está no "mercado" há quase 30 anos (desde meados da década de 70). Não é à toa que, hoje, esse sentimento de que a TV brasileira é uma espécie de patrimônio cultural "já dado" (já "inventado", para o bem ou para o mal) parece se voltar contra sua própria sustentabilidade econômica, tornando-a gradativamente dependente de uma reciclagem baseada nos modelos de invenção importados (ah, os reality shows...), e mesmo patenteados (como no início das telenovelas e sua dependência de uma dramaturgia baseada em "clássicos consagrados da literatura universal").

6. Assiste-se TV demais nesse país para que ela seja assim tão frágil. Falta "tecnologia" brasileira na constituição de novas formas de fazer TV – e isso está totalmente em sintonia com a falta de investimento criativo que conjugue o discurso popular (no sentido do que trabalhe com o "vocabulário" cotidiano) e a invenção de discursos televisivos – tipo de conjugação que deu fruto, há três décadas, a um gênero tão complexo e poderoso quanto a telenovela brasileira.

7. Simulacro de nós. Farsa e imitação. Não menos artificial do que o uso do verbo, a imagem da TV se potencializa como um espaço de discursos diversos. Este é o grande desafio: como diversificar os discursos para além de suas adequações às grades de programação viciadas? Como insinuar as formas díspares de vida e constituí-las por dentro da TV sem a necessidade de uma tipificação/adequação aos padrões da velha televisão aberta brasileira? Num acontecimento como Casa dos Artistas, telejornalismo, novela, comédia pastelão e cinema se atravessavam como poucas vezes antes – e potencializam a televisão como espaço primordial dessa possibilidade de interestética cotidiana. Por que o risco tem de ser tão raro?

8. Entre as TVs de qualidade, e as qualidades de TV, fico com estas. Nelas é que reside uma efetiva possibilidade de criação, onde seus filhos pródigos (a telenovela é um gênero inigualável) e os bastardos (exploitation shows em geral) possam ser redefinidos numa abertura à experimentação, central para uma atualização de seus gêneros. Deixando de lado o projeto de uma idealização asséptica de sua boa imagem, entregando-se à investigação estética (onde as produções independentes terão importante papel) e às experimentações capazes de fazer do meio televisivo, um objeto corporificado e valorizado em suas próprias características: diárias, redundantes, cotidianas, expositivas, fragmentadas. Ao invés da ruliudi Global inflacionada e caduca, a produção da TV brasileira precisa investir na criação de novos formatos e conceitos de imagem com a mesma força com que investiu em dramaturgia no passado.

9. Nesse sentido, a Rede Pública de Televisão, sobre a qual se começa a falar com maior clareza esse ano, será central: espaço de difusão de imagens para todo o país, pode representar a primeira movimentação cultural brasileira a se lançar ao fazer televisivo ultrapassando os limites entre as dicotomias entre popular e erudição na TV. Deixando de lado um projeto educativo-gerencial de "esclarecimento popular"; ultrapassando os preconceitos contra os formatos específicos do meio (programas de auditório, talk-shows, telenovelas) – a Rede Pública de Televisão (canal aberto e de âmbito nacional) pode se projetar como um espaço importante de expressão e invenção de conceitos e formatos que venham dar oxigênio e re-influenciar os gestos televisivos brasileiros. Tirando-os do círculo vicioso e narcisista em que hoje se encontram. A televisão brasileira, que tanto influenciou essa nova onda de cinematografia brasileira (sejam diretamente sobre os cineastas, seja no sentido da formação audiovisual do espectador comum atual), precisa agora, urgentemente, de um retorno: a TV precisa do cinema e da produção independente. Não para sobreviver como meio difusor (função econômica de tradicional manutenção baseada em empréstimos escandalosos e cortes de pessoal...), mas para reviver como espaço de criação de imagens para além do merchandising social e dos assistencialismos de ocasião que algumas emissoras tentam carregar como bandeiras para a justificativa da monocultura.

* * *

Já se falou há pouco sobre isso lá no PG, mas segue aqui elogio direto, que estava aqui na gaveta: Tarja Preta, programa capitaneado por Selton Mello no Canal Brasil, tem sido uma grata surpresa nesses últimos meses, dentre as várias estréias do canal. Jogando de forma debochada com o espaço televisivo, promovendo algumas entrevistas memoráveis, o programa conseguiu encontrar um difícil equilíbrio entre o interesse por uma certa cultura desviante/marginalizada, arejada por total desinteresse por fetichismos de gênero e/ou celebrações da obscuridade. As entrevistas com Helena Ignez, Jorge Dória, e outros, tem conseguido encontrar um espaço, uma atmosfera de admiração desapegada, uma maneira bem maliciosa de se aproximar de clichês do marginal/underground sem qualquer frenesi de modismos ou fetiches pelo trash. Ao invés de encaixotar seus entrevistados em estereótipos, o programa vem conseguindo justamente expandir, ampliar as formas mais comuns de caracterização de uma certa cultura cinematográfica brasileira dita independente, transpirando uma verdadeira admiração e interesse por alguns personagens definitivos/definidores do cinema no país (ontem e hoje), mas que muitas vezes são limitados pela mídia corrente numa ou outra prateleira bem comportada. É admirável a forma com que Selton Mello tem conseguido extrair belos depoimentos de seus personagens, sem precisar apelar para louvações, mas sabendo provocar, instigar aquele espaço de encontro para que os bate-papos não caiam na banalidade protocolar ou na frieza estética que marca grande parte dos modelos de talk-shows. Criativo enquanto gesto televisivo e não apenas canal de propagação, dialogando com clichês e aspectos dramatúrgicos da grande TV (entre o deboche e a admiração), Tarja Preta é uma pequena e ainda recente, mas feliz, novidade dentro no panorama dos programas a cabo produzidos e (principalmente) inventados Brasil: um raro exemplo atual de intervenção televisiva em que provocação estética e desvios culturais não se confundem com ironia estéril ou bajulação da bizarrice (ao contrário, aliás, do que dá a entender a equivocada sinopse oficial do programa, encontrada no site do canal...). No mais, fiquemos de olho e torçamos para que saiba manter esse pique.

Felipe Bragança

Textos da semanas anteriores:
Anotações da madrugada, parte 2: CNN (por Felipe Bragança)
Anotações da madrugada, parte 1: Rede Globo (por Felipe Bragança)
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