Anotações
da Madrugada.
Parte 2 – CNN
Foram longas horas de discursos e aplausos. Entre um
pulo e outro por canais, assistir à comoção
gerada em torno da convenção do partido
democrata norte-americano, a despeito de todas as implicações
diretamente eleitorais do evento, foi um espetáculo
de curiosas observações. Por espetáculo,
deixo claro, de forma nenhuma deve-se entender um objeto
de desprezo – que não estamos aqui para iconoclasmos.
Organizado como um show de rock ou uma final de campeonato,
a última noite da convenção reiterou
algumas dos aspectos estéticos mais interessantes
dessa peculiar forma discursiva que é o programa
eleitoral televisivo. Enquanto não chegamos à
época de nossas eleições municipais
(vai ser o primeiro período eleitoral acompanhado
por essa coluna: preparem os motores), seguem aqui alguns
comentários breves, anotações,
daquilo que se chama uma "campanha política"
lá pelas bandas de Mr. Bush.
1. "Eu aceito"
Mais ritual do que espaço para a propagação
de idéias, a convenção teria como
clímax o discurso de Kerry quando, protocolarmente,
o candidato diria à platéia um público
"eu aceito", sacramentando sua candidatura.
Posição reiterada como individual e calcada
no sentido de responsabilidade pessoal, a série
de "I wills" declamada por Kerry ao longo
de seu discurso, desenhava o sentido de aceitação
do dever, de vestimenta da carapuça de herói.
Ao contrário de uma candidatura direta, o que
se desenha é a idéia de que Kerry estaria,
acima de tudo, aceitando o dever a que seus eleitores
o indicavam. Ou seja: mais uma benção
aceita do que um interesse particular, o candidato se
proclama um escolhido.
2. Memórias
Seguindo-se o sentido de vocação arquitetada
por esse convite público, é interessante
observar que a toda e qualquer proposição
política, se sobrepunha o lugar do passado de
John Kerry. Memórias afetivas da infância
se misturavam a relatos de guerra, fazendo do candidato
uma espécie de iluminado, cuja missão
irrevogável seria protagonizar os grandes momentos
de reavaliação da política externa
norte-americana (Kerry é um veterano do Vietnã
e se coloca como um dos mais importantes líderes
juvenis das campanhas anti-Vietnã).
3. "Mudamos o mundo"
Seguindo o mesmo raciocínio, Kerry aparece
como o representante direto daquela idealizada geração
dos 60s, protagonista de uma ebulição
cultural que até hoje amuleta os saudosismos
de ocasião. Veterano de guerra, Kerry aparece
como o homem que de alguma forma fecharia o círculo
em torno da idéia de que os EUA precisam reformular
suas ações militares e seu avanço
cultural. Kerry aparece como o indivíduo mítico,
sobrevivente idealista dos anos 60 e capaz de desmontar
o pragmatismo militarista representando por seu oponente.
Algo como uma cicatrização do Vietnã
através da formulação de que os
EUA poderiam sim continuar dirigindo a economia e a
política global, desde que aprendessem a não
repetir seus erros.
4. Fãs
Esse lugar mítico, de verdadeira retórica
da dicotomia entre Kerry e Bush, não há
dúvida que o lugar do herói, da estrela,
do mocinho dos filmes de cowboy aparece no sorriso duro
e no queixo comprido de Kerry, contraposto ao lugar
de Bush como o do texano bronco. Kerry gesticula como
um pastor, o enquadramento nos deixa ver os gestos firmes
de suas mãos, e suas palavras se destacam por
uma métrica montada que dá a seu discurso
uma métrica musicada. A repetição
de palavras (aliteração), no início
das sentenças, como num mantra, tentam inflamar
o público a partir de estímulos físicos
diretos – resultado que se percebe na exaltação
e nos olhos brilhantes dos presentes, agitando panfletos
e repetindo os refrões da campanha como fãs
em show pop.
5. Frases feitas
Acoplada a esse sentido de espetáculo audiovisual,
destaca-se o uso de frases feitas, bordões, algo
muito semelhante ao tipo de estrutura utilizado nas
construções discursivas dos momentos laudatórios
do Oscar, caracterizado por frases curtas, de não
mais que trinta segundos, estrategicamente construídas
para insuflar os aplausos. Além das sentenças,
palavras-clichê são lançadas em
meio ao vozerio do público (leadership, strength,
freedom), quase desarticuladas de sentidos claros,
a não ser seu impacto conceitual direto.
6. Brutalidade e carisma
Aliás, a campanha de Kerry parece toda arquitetada
sobre essa comparação entre o arsenal
conceitual básico da identidade norte-americana
(repetida por ele à exaustão), contra
a falta de idealismo e o pragmatismo burocrático
identificado em Bush. Não se questiona o lugar
de força esmagadora da cultura norte-americana
sobre o mundo, mas a forma, talvez "pouco inteligente",
com que essa preponderância foi transformada em
embate nos últimos anos. No lugar das armas,
Kerry aparece como a promessa do carisma (e seu vice
sorridente com penteado de galã dos anos 60 vem
assentar essa idéia).
7. Estrelas satisfeitas
E por notáveis, seguindo esse sentido carismático
da campanha, é sintomática a presença
celebrada de estrelas do cinema e da música na
platéia. A trilha sonora do U2 e a presença
circulante de Michael Moore davam à convenção
essa atmosfera de tapete vermelho, de coligação
entre a figura de Kerry e um certo sentido de alegria
norte-americana, de satisfação e orgulho
(próprio e patriótico) confrontada com
os clichês dos sacrifícios da era Bush.
Esses EUA de festa e celebração de um
tal espírito norte-americano é o produto
final vendido pelo partido democrata, ainda que não
baseado em propostas políticas diretas, mas em
uma tentativa de um certo desvio dramatúrgico
das formas de afirmação do poder nos EUA
(e diante de seus aliados ou adversários). Falando
em Moore, não foi difícil comparar as
imagens da convenção de Kerry à
aquelas melancólicas festanças mostradas
pelo diretor em seu filme Roger & Me (em
um Estados Unidos dos anos 50-60, apinhado por um otimismo
histriônico). De alguma forma, diante da linha
extra-dura de Bush, o que Kerry oferece ao público
é um espetáculo de regozijo do ser norte-americano,
tentando fugir do fatalismo reativo do oponente e vender
a imagem de uma América easy going, festiva
e não temerosa. Ainda que valente...(Ouviu-se
por lá a frase, tão familiar, do "a
esperança pode vencer o medo").
8. Balões de ar
E para o desfecho desse espetáculo musical,
de sorrisos brancos e punhos em riste, não poderia
haver nada mais vigoroso do que uma chuva de confetes
e balões de ar. Ridículo, metalingüístico,
de uma auto-ironia involuntária, foi ver a confusão
em que se tornou o imenso auditório de Boston
nesse pequeno carnaval. Fora o embaraço dos jornalistas,
que tentavam manter a correção jornalística
com os cabelos cheios de papel picado e bolas azuis
saltitando em suas cabeças, o mais engraçado
foi poder ouvir o áudio da organização
do evento vazando para a transmissão da CNN,
justamente no momento final de celebração
(com Kerry e seu vice caminhando no meio da multidão
com sorrisos estáticos): "What-the-hell
are you doing there? I want more balloons!!...What?
No! I need more baloons here! Where in the hell are
my balloons?! I need more paper and balloons!"
E depois de uns cinco minutos dessa verborragia, vimos
(finalmente) os milhares de balões vermelhos
e azuis caindo do teto, sobre as cabeças dos
vinte mil presentes, quase impossibilitando que qualquer
pessoa fosse identificada na multidão. Os jornalistas
da CNN tentavam ainda se desculpar pelo áudio
vazado, colocando panos quentes, explicando que a grosseria
involuntária do organizador do evento ("Hell!...I
need more balloons!Where is my baloons, idiots!")
seria motivada pela pressão para que tudo desse
certo. Mas era impossível desfazer a graça
de ver aquele circo tão bem armado, sendo desequilibrado
assim, espontaneamente, pela voz (justamente) de seu
mestre de cerimônias e organizador...(Ah, esses
balões de ar, essas democracias de vento).
Nota:
Valente me ligou para falar do que a TV Globo exibia
no mesmo horário: o Linha Direta (Justiça)
especial sobre o Bateau Mouche foi realmente um clássico
do desejo da emissora de tomar as dores do povo e fazer-se
de voz de defesa da verdade diante de um Estado tachado
como inerte. As estratégias de dramatização,
a trilha sonora trágica, a câmera na mão
over, tudo se desenhava como uma tentativa sensacionalista
(ou seja: focada nas sensações de tensão
e suspense provocadas no espectador) de simular não
só os supostos eventos, mas o sentimento daquelas
pessoas que perdiam seus familiares e amigos no naufrágio.
O reloginho de tempo real no canto da tela, os depoimentos
das testemunhas e protagonistas do evento... tudo dava
ao programa um lugar perigoso de objeto direto da memória
coletiva brasileira (lugar cultivado e demarcado com
unhas e dentes pela Rede Globo). Esse utilitarismo sensacionalista
da TV se torna ainda mais curioso em Linha Direta
(Justiça) pela forma como ela ultrapassa
os clichês narrativos do telejornalismo (cujas
bases estão no de se reportar a supostos
"fatos comprovados" - daí o nome "reportagem")
e se funda como representação de eventos
baseadas numa simulação presentificada
dos eventos, costurada pela memória-sem-dono
das dezenas de presentes no evento descrito. Uma memória
coletiva que só pode se atualizar ali na forma
de teatro filmado, e que a TV se regozija como dona
e porta-voz (objeto para uma coluna inteira no futuro...).
Felipe Bragança
Textos
da semanas anteriores:
Anotações
da madrugada, parte 1: Rede Globo (por Felipe Bragança)
Gomes
vs. Coen (por Francisco Guarnieri)
Viagens
Fantásticas (parte 2) (por Felipe Bragança)
Terapeuta
JK (por Francisco Guarnieri)
Viagens
Fantásticas (parte 1) (por Felipe Bragança)
Coito
de Cachorro, Otávio Mesquita, Sônia Abrão
e outras sumidades televisivas (por Francisco Guarnieri)
Pânico!
(por Felipe Bragança)
Notas,
notas, notas (por Francisco Guarnieri)
Da
TV e dos corpos humanos, parte 2 (por Felipe Bragança)
Da
TV e dos corpos humanos, parte 1 (por Felipe Bragança)
Violência
da edição, edições da violência
(por Felipe Bragança)
Fauna
in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João
Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter
Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa
(por Francisco Guarnieri)
Semana
de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A
dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço
(por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 (por Felipe Bragança)
A
Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos
treze (por Roberto Cersósimo)
Algum
começo... (por Felipe Bragança)
Uma
novela de... (por Roberto Cersósimo)
O
canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe
Bragança)
O
fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)
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