O que para os desavisados pode parecer apenas um detalhe,
o ano – 1501 – no qual se passa a ação
de Conquista Sangrenta é essencial para
uma leitura acurada do filme. Os que não atentam
para este fato podem erroneamente classificá-lo
como uma aventura medieval, e coisas sobre o filme já
foram escritas analisando-o como tal. Mas essa data
nos situa no início do que se convencionou chamar
de "Era Moderna", e justamente é uma
reflexão sobre essa transição para
a modernidade, o que salta aos olhos numa visão
mais cuidadosa.
O conhecimento acadêmico nos diz que a "Era
Moderna" marca a cristalização do
domínio do capitalismo, onde o acúmulo
do lucro passa a ser objetivo principal. Pois bem, é
um ato ligado ao capital que detona o início
da trama de Conquista Sangrenta, quando o nobre
Arnolfini resolve trair a horda de combatentes que havia
colaborado para a retomada de seus domínios sob
a promessa de posse do saque. Ao desejar manter para
si todo o botim, Arnolfini rompe os laços medievais
de "honra" e "vassalagem" para priorizar
o ganho escuso e a exploração. Desse modo,
encurrala e expulsa os mercenários liderados
por Martin (Rutger Hauer), um grupo formado por diversas
espécies de párias sociais, como homens
brutos e violentos, prostitutas, um padre nada ortodoxo
e até mesmo dois mercenários homossexuais.
Ao se unir contra toda a opressão, o bando de
Martin se vê tomado por misticismo quando da descoberta
de uma estátua de São Martin, que guiaria
e protegeria o grupo, fazendo com que o homônimo
líder fosse visto como sua reencarnação
terrena. Vemos aí um outro fenômeno da
modernidade, uma descentralização do poder
da Igreja Católica e a proliferação
de novas crenças e cultos cristãos, se
bem que a manifestação mística
do bando também pode ser vista como bastante
próxima das heresias que abundaram durante o
período medieval. Principalmente durante o primeiro
terço de Conquista Sangrenta, Martin e
seu grupo podem ser encarados como uma visão
mais crua do mito de Robin Hood, e a seqüência
do ataque à caravana de Arnolfini que culmina
com o seqüestro não-intencional de Agnes
(Jennifer Jason Leigh), a prometida de seu filho, não
estaria muito deslocada em qualquer das muitas versões
cinematográficas da história do arqueiro
de Sherwood.
A entrada em cena de Agnes faz com que o filme cresça
em ambigüidade. Num filme marcado pela ausência
de heróis, com personagens quase sempre dúbios,
Agnes é a mais pura encarnação
da ambigüidade, a princípio por uma questão
de mera sobrevivência, mas pouco a pouco tornando-se
ciente de seu próprio poder, seduzindo e dominando
Martin gradativamente, tornando-o cada vez mais distante
dos objetivos comuns de seu grupo. É justamente
na seqüência que marca a ascendência
de Agnes sobre Martin que aparece mais uma curiosa manifestação
da modernidade, o chamado "processo civilizatório",
quando a moça mostra ao grupo, habituado a comer
com as mãos, como usar talheres.
Outra transição bastante caracterizada
no filme é a ascensão do racionalismo
e da ciência, personalizados em Steven (Tom Burlinson),
o filho de Arnolfini que, após ter o pai ferido,
assume o comando de suas tropas na perseguição
a Martin e no resgate da noiva. Com a ascensão
de novas armas e máquinas de guerra, os combates
tornam-se ainda mais brutais e quem domina a tecnologia
ascendente tenderá a um melhor resultado. Steven
é um cientista fascinado pelos modelos de Da
Vinci, e se, no cerco ao castelo, sua engenhosa (e inverossímil)
máquina de guerra é vista sendo destruída
por Martin, é por uma técnica que esse
havia aprendido com o próprio Steven, demonstrando
que, por mais avançada a tecnologia, ainda é
necessária a sabedoria humana em poder aplicá-la.
Mesmo as transformações na medicina são
abordadas em Conquista Sangrenta quando, já
numa das últimas seqüências, o médico
do grupo de Steven decide abandonar as infrutíferas
técnicas de sangria que remontam aos romanos
em favor da lancetagem das lesões – rejeitada
por ser difundida pelos "infiéis" muçulmanos,
mas muito mais eficaz.
Tratando mais especificamente dos aspectos puramente
narrativos, Conquista Sangrenta, apesar de flagrantes
defeitos, como uma certa redundância no terço
final e algumas incoerências no roteiro, é
um filme que por suas particularidades marca uma identidade
única entre obras a princípio similares.
Já foi dito que se houvesse uma máquina
do tempo e o homem contemporâneo regressasse 500
anos no passado, este simplesmente não agüentaria
os cheiros exalados. Verhoeven transmite muito bem essa
sensação de putrefação em
um clima seco e bastante brutal, o que se exalta em
diversas seqüências, como as de combate,
a da defloração de Agnes e principalmente
quando uma mãe se atira com a filha infante da
torre de seu castelo, após este ter sido invadido
pelo bando.
Está certo que seus detratores poderiam classificar
sua abordagem histórico-social de pouco sutil,
mas sabemos que Paul Verhoeven nunca foi homem dado
a sutilezas. Não falta sequer uma excitante cena
de sexo com a marca inconfundível de Verhoeven
– Martin e Agnes na banheira. Mas, se Conquista Sangrenta
é acima de tudo um filme que retrata transições,
é também um filme que caracteriza um flagrante
momento de transição na carreira de seu
diretor. Foi o último trabalho rodado na Europa,
ainda que já com participação americana
na produção (de orçamento bastante
modesto, por sinal), mas também o primeiro falado
em língua inglesa, além de marcar o final
de uma longa parceria com o ator Rutger Hauer. Uma espécie
de preparação para a estréia, por
assim dizer, oficial em Hollywood, que viria dois anos
depois com Robocop.
Gilberto Silva Jr.
|