CONQUISTA SANGRENTA
Paul Verhoeven, Flesh + Blood, EUA/Esp/Hol, 1985

O que para os desavisados pode parecer apenas um detalhe, o ano – 1501 – no qual se passa a ação de Conquista Sangrenta é essencial para uma leitura acurada do filme. Os que não atentam para este fato podem erroneamente classificá-lo como uma aventura medieval, e coisas sobre o filme já foram escritas analisando-o como tal. Mas essa data nos situa no início do que se convencionou chamar de "Era Moderna", e justamente é uma reflexão sobre essa transição para a modernidade, o que salta aos olhos numa visão mais cuidadosa.

O conhecimento acadêmico nos diz que a "Era Moderna" marca a cristalização do domínio do capitalismo, onde o acúmulo do lucro passa a ser objetivo principal. Pois bem, é um ato ligado ao capital que detona o início da trama de Conquista Sangrenta, quando o nobre Arnolfini resolve trair a horda de combatentes que havia colaborado para a retomada de seus domínios sob a promessa de posse do saque. Ao desejar manter para si todo o botim, Arnolfini rompe os laços medievais de "honra" e "vassalagem" para priorizar o ganho escuso e a exploração. Desse modo, encurrala e expulsa os mercenários liderados por Martin (Rutger Hauer), um grupo formado por diversas espécies de párias sociais, como homens brutos e violentos, prostitutas, um padre nada ortodoxo e até mesmo dois mercenários homossexuais.

Ao se unir contra toda a opressão, o bando de Martin se vê tomado por misticismo quando da descoberta de uma estátua de São Martin, que guiaria e protegeria o grupo, fazendo com que o homônimo líder fosse visto como sua reencarnação terrena. Vemos aí um outro fenômeno da modernidade, uma descentralização do poder da Igreja Católica e a proliferação de novas crenças e cultos cristãos, se bem que a manifestação mística do bando também pode ser vista como bastante próxima das heresias que abundaram durante o período medieval. Principalmente durante o primeiro terço de Conquista Sangrenta, Martin e seu grupo podem ser encarados como uma visão mais crua do mito de Robin Hood, e a seqüência do ataque à caravana de Arnolfini que culmina com o seqüestro não-intencional de Agnes (Jennifer Jason Leigh), a prometida de seu filho, não estaria muito deslocada em qualquer das muitas versões cinematográficas da história do arqueiro de Sherwood.

A entrada em cena de Agnes faz com que o filme cresça em ambigüidade. Num filme marcado pela ausência de heróis, com personagens quase sempre dúbios, Agnes é a mais pura encarnação da ambigüidade, a princípio por uma questão de mera sobrevivência, mas pouco a pouco tornando-se ciente de seu próprio poder, seduzindo e dominando Martin gradativamente, tornando-o cada vez mais distante dos objetivos comuns de seu grupo. É justamente na seqüência que marca a ascendência de Agnes sobre Martin que aparece mais uma curiosa manifestação da modernidade, o chamado "processo civilizatório", quando a moça mostra ao grupo, habituado a comer com as mãos, como usar talheres.

Outra transição bastante caracterizada no filme é a ascensão do racionalismo e da ciência, personalizados em Steven (Tom Burlinson), o filho de Arnolfini que, após ter o pai ferido, assume o comando de suas tropas na perseguição a Martin e no resgate da noiva. Com a ascensão de novas armas e máquinas de guerra, os combates tornam-se ainda mais brutais e quem domina a tecnologia ascendente tenderá a um melhor resultado. Steven é um cientista fascinado pelos modelos de Da Vinci, e se, no cerco ao castelo, sua engenhosa (e inverossímil) máquina de guerra é vista sendo destruída por Martin, é por uma técnica que esse havia aprendido com o próprio Steven, demonstrando que, por mais avançada a tecnologia, ainda é necessária a sabedoria humana em poder aplicá-la. Mesmo as transformações na medicina são abordadas em Conquista Sangrenta quando, já numa das últimas seqüências, o médico do grupo de Steven decide abandonar as infrutíferas técnicas de sangria que remontam aos romanos em favor da lancetagem das lesões – rejeitada por ser difundida pelos "infiéis" muçulmanos, mas muito mais eficaz.

Tratando mais especificamente dos aspectos puramente narrativos, Conquista Sangrenta, apesar de flagrantes defeitos, como uma certa redundância no terço final e algumas incoerências no roteiro, é um filme que por suas particularidades marca uma identidade única entre obras a princípio similares. Já foi dito que se houvesse uma máquina do tempo e o homem contemporâneo regressasse 500 anos no passado, este simplesmente não agüentaria os cheiros exalados. Verhoeven transmite muito bem essa sensação de putrefação em um clima seco e bastante brutal, o que se exalta em diversas seqüências, como as de combate, a da defloração de Agnes e principalmente quando uma mãe se atira com a filha infante da torre de seu castelo, após este ter sido invadido pelo bando.

Está certo que seus detratores poderiam classificar sua abordagem histórico-social de pouco sutil, mas sabemos que Paul Verhoeven nunca foi homem dado a sutilezas. Não falta sequer uma excitante cena de sexo com a marca inconfundível de Verhoeven – Martin e Agnes na banheira. Mas, se Conquista Sangrenta é acima de tudo um filme que retrata transições, é também um filme que caracteriza um flagrante momento de transição na carreira de seu diretor. Foi o último trabalho rodado na Europa, ainda que já com participação americana na produção (de orçamento bastante modesto, por sinal), mas também o primeiro falado em língua inglesa, além de marcar o final de uma longa parceria com o ator Rutger Hauer. Uma espécie de preparação para a estréia, por assim dizer, oficial em Hollywood, que viria dois anos depois com Robocop.


Gilberto Silva Jr.