A COMÉDIA DE DEUS
Portugal/França/Itália/Dinamarca, 1995
AS BODAS DE DEUS
Portugal/França, 1999

Quero ser João de Deus

Ao contrário do que se pode pensar num primeiro momento, a dupla de filmes A Comédia de Deus e As Bodas de Deus – ponto fulgurante de uma estética criada para o fim específico de mostrar uma forma-personagem, João de Deus – não se pautam no deslocamento do indivíduo central do filme em relação ao espaço que o circunda. Com estratégias de auto-enquadramento comparáveis à de um Buster Keaton, Monteiro encarna João de Deus menos para revelar uma dessincronia com o mundo e seus códigos do que para – numa atitude, convenhamos, muito mais nobre – remodelá-los a seu bel-prazer. A comicidade se dá não pelo desentendimento entre o personagem e os objetos, mas pelo uso inesperado que o primeiro faz dos últimos. É como encher o prato com uma montanha de cozido (tudo naquele ritmo lento e pachorrento que o personagem vivencia quase que politicamente) e – ao invés de se atrapalhar com os talheres ou se lambuzar com a comida – limitar a refeição a uma mordida no biscoito que está ao lado do prato (As Bodas de Deus). Ou usar um grande livro – cheio da pompa das antigas enciclopédias que compendiavam a riqueza intelectual/cultural/filosófica da humanidade – para abrigar uma coleção de pêlos pubianos femininos (A Comédia de Deus). Desse modo, já no começo de As Bodas de Deus o nosso herói (simpatizar com ele é inexplicavelmente fácil) recebe uma mala de dólares que somam uma fortuna infindável e lhe concedem poderes inauditos – ele vai fazer do mundo o que bem entender, ter na mão a pessoa que quiser. Mas o poder, como fica claro numa cena de suma importância de As Bodas de Deus, não é mais que um anão rodeado de manequins, e que termina por suicidar-se. Ao fim tanto da comédia quanto das bodas, João acaba pobre, mas encharcando a tela com uma convicção: os mais afortunados são os que nada têm a perder.

João de Deus é um sacana lúcido, que transforma a idiotia numa figura essencial de intercurso poético com o mundo. Ele acredita, e deveríamos todos acreditar, na fórmula de Pushkin: "Toda poesia tem que ter um quê de estupidez". O nome mais comum do mundo, João, somado à maior "personagem" do imaginário ocidental, Deus, só poderia resultar nesse ser mundano e vulgar que, uma vez presenteado pelo céu, assume uma nobreza que lhe parece, no fundo, inata. Mas Deus quis que João fosse rico por quê? Para que ele não sujasse o reino dos céus? Ou por reconhecer nele seu projeto mais bem acabado? Vistos em conjunto, A Comédia e As Bodas de Deus fornecem, através de uma escrita muito original, um ensaio político-erótico sobre a civilização ocidental – do cristianismo ao marxismo, do atávico ao dessacralizado, da dialética à distopia –, no que o fato de estarem entre os filmes mais engraçados da história só pesa a favor, naturalmente (levando em conta qualquer relação possível com o cinema).

Em A Comédia de Deus, João mistura à habilidade de seu ofício (fazer os sorvetes mais deliciosos de que se tem conta) a erotização mais cafajeste possível (violar as donzelas que trabalham na sorveteria e depois lhes roubar a fragrância, a essência natural, e a partir dessa essência compor os sabores mágicos – algo que lembra o livro O Perfume, de Patrick Süskind). As bodas do filme seguinte começam quando João ganha sua mulher numa partida de pôquer, o que já denota a qualidade de distanciamento moral e intelectual que este filme levará ao paroxismo. No fundo, há uma coisa muito lúdica na ferocidade de Monteiro ao destruir, tijolo a tijolo, o edifício em que ele mesmo está morando. Não são só os valores humanistas e burgueses que se acham encurralados pelo filme: é a própria linguagem do cinema que vê seus meios serem deslocados radicalmente de função. Critérios comuns de duração, iluminação e significação são dobrados aos anseios individuais do cineasta Monteiro. O plano se vê alongado de uma forma distinta de todas as outras experiências com a temporalidade ou com o princípio de ação e continuidade. Dispondo de absoluta beleza plástica, os planos-seqüência em enquadramento fixo se impostam como desafios à percepção – preocupação mais evidente em A Comédia de Deus. O que representam exatamente esses planos? O que há além das formas, dos movimentos, da duração, do som? E o que falam? Talvez nada. Como Monteiro já havia afirmado em O Último Mergulho, as imagens são mudas, nós é que lhes damos voz porque não suportamos a amplitude do silêncio, e precisamos afunilar os significados. Mas, com uma parcimônia divina, Monteiro lhes devolve pouco a pouco a abertura de sentido.

Sua mise en scène é precisa tanto em momentos de abstração quanto nas partes mais narrativas, o que se justifica nos antepassados homenageados. No final de As Bodas de Deus, há uma citação explícita de Pickpocket, de Robert Bresson, com João sendo visitado por Joana – a jovem que salvara do afogamento no início – e lhe dizendo, separados que estão pelas grades: "Ó Joana, que longo caminho tive que percorrer para estar junto de ti". Mas João de Deus não precisou bater carteiras: como já foi dito, a mala recheada de dólares lhe foi inesperadamente entregue por um auto-intitulado emissário divino (que estará no hospício a que João é confinado na meia-hora final do filme). Quem bate carteiras cinefílicas é o João que está fora da diegese, antes de começar o filme. E o principal documento roubado, ou seja, a principal inspiração estética de As Bodas de Deus, apesar da citação mais literal ser mesmo o filme de Bresson, é John Ford – basta ver a obsessiva composição com molduras (portas, janelas, fendas entre as pedras) situadas dentro do quadro, como em Rastros de Ódio.

O que João César Monteiro constrói nestes dois filmes é a mise en scène de uma arte de viver, e nesse sentido tanto A Comédia de Deus quanto As Bodas de Deus, a despeito do cuidado gráfico de seus planos fixos e dos diálogos antinaturalistas (não raro subversões de referências eruditas e ditos populares), acabam sendo como que documentários sobre uma técnica particular de auto-inscrição no mundo. Os recorrentes planos-seqüência de João Vuvu no ônibus em Vai e Vem não são senão o aprofundamento dessa lógica de registrar um tempo individual e afirmar a necessidade dos outros por perto, ocupando este mesmo transporte coletivo, ora para contrastar com a singularidade física e mental daquele passageiro dos fundos, ora para compartilhar da mesma marcha.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 



João César Monteiro em As Bodas de Deus