Quero ser João de
Deus
Ao contrário do que se pode pensar num primeiro
momento, a dupla de filmes A Comédia de Deus
e As Bodas de Deus – ponto fulgurante de uma
estética criada para o fim específico
de mostrar uma forma-personagem, João de Deus
– não se pautam no deslocamento do indivíduo
central do filme em relação ao espaço
que o circunda. Com estratégias de auto-enquadramento
comparáveis à de um Buster Keaton, Monteiro
encarna João de Deus menos para revelar uma dessincronia
com o mundo e seus códigos do que para – numa
atitude, convenhamos, muito mais nobre – remodelá-los
a seu bel-prazer. A comicidade se dá não
pelo desentendimento entre o personagem e os objetos,
mas pelo uso inesperado que o primeiro faz dos últimos.
É como encher o prato com uma montanha de cozido
(tudo naquele ritmo lento e pachorrento que o personagem
vivencia quase que politicamente) e – ao invés
de se atrapalhar com os talheres ou se lambuzar com
a comida – limitar a refeição a uma mordida
no biscoito que está ao lado do prato (As
Bodas de Deus). Ou usar um grande livro – cheio
da pompa das antigas enciclopédias que compendiavam
a riqueza intelectual/cultural/filosófica da
humanidade – para abrigar uma coleção
de pêlos pubianos femininos (A Comédia
de Deus). Desse modo, já no começo
de As Bodas de Deus o nosso herói (simpatizar
com ele é inexplicavelmente fácil) recebe
uma mala de dólares que somam uma fortuna infindável
e lhe concedem poderes inauditos – ele vai fazer do
mundo o que bem entender, ter na mão a pessoa
que quiser. Mas o poder, como fica claro numa cena de
suma importância de As Bodas de Deus, não
é mais que um anão rodeado de manequins,
e que termina por suicidar-se. Ao fim tanto da comédia
quanto das bodas, João acaba pobre, mas encharcando
a tela com uma convicção: os mais afortunados
são os que nada têm a perder.
João de Deus é um sacana lúcido,
que transforma a idiotia numa figura essencial de intercurso
poético com o mundo. Ele acredita, e deveríamos
todos acreditar, na fórmula de Pushkin: "Toda
poesia tem que ter um quê de estupidez".
O nome mais comum do mundo, João, somado à
maior "personagem" do imaginário ocidental,
Deus, só poderia resultar nesse ser mundano e
vulgar que, uma vez presenteado pelo céu, assume
uma nobreza que lhe parece, no fundo, inata. Mas Deus
quis que João fosse rico por quê? Para
que ele não sujasse o reino dos céus?
Ou por reconhecer nele seu projeto mais bem acabado?
Vistos em conjunto, A Comédia e As
Bodas de Deus fornecem, através de uma escrita
muito original, um ensaio político-erótico
sobre a civilização ocidental – do cristianismo
ao marxismo, do atávico ao dessacralizado, da
dialética à distopia –, no que o fato
de estarem entre os filmes mais engraçados da
história só pesa a favor, naturalmente
(levando em conta qualquer relação possível
com o cinema).
Em A Comédia de Deus, João mistura
à habilidade de seu ofício (fazer os sorvetes
mais deliciosos de que se tem conta) a erotização
mais cafajeste possível (violar as donzelas que
trabalham na sorveteria e depois lhes roubar a fragrância,
a essência natural, e a partir dessa essência
compor os sabores mágicos – algo que lembra o
livro O Perfume, de Patrick Süskind). As
bodas do filme seguinte começam quando João
ganha sua mulher numa partida de pôquer, o que
já denota a qualidade de distanciamento moral
e intelectual que este filme levará ao paroxismo.
No fundo, há uma coisa muito lúdica na
ferocidade de Monteiro ao destruir, tijolo a tijolo,
o edifício em que ele mesmo está morando.
Não são só os valores humanistas
e burgueses que se acham encurralados pelo filme: é
a própria linguagem do cinema que vê seus
meios serem deslocados radicalmente de função.
Critérios comuns de duração, iluminação
e significação são dobrados aos
anseios individuais do cineasta Monteiro. O plano se
vê alongado de uma forma distinta de todas as
outras experiências com a temporalidade ou com
o princípio de ação e continuidade.
Dispondo de absoluta beleza plástica, os planos-seqüência
em enquadramento fixo se impostam como desafios à
percepção – preocupação
mais evidente em A Comédia de Deus. O
que representam exatamente esses planos? O que há
além das formas, dos movimentos, da duração,
do som? E o que falam? Talvez nada. Como Monteiro já
havia afirmado em O Último Mergulho, as
imagens são mudas, nós é que lhes
damos voz porque não suportamos a amplitude do
silêncio, e precisamos afunilar os significados.
Mas, com uma parcimônia divina, Monteiro lhes
devolve pouco a pouco a abertura de sentido.
Sua mise en scène é precisa tanto
em momentos de abstração quanto nas partes
mais narrativas, o que se justifica nos antepassados
homenageados. No final de As Bodas de Deus, há
uma citação explícita de Pickpocket,
de Robert Bresson, com João sendo visitado por
Joana – a jovem que salvara do afogamento no início
– e lhe dizendo, separados que estão pelas grades:
"Ó Joana, que longo caminho tive que percorrer
para estar junto de ti". Mas João de Deus
não precisou bater carteiras: como já
foi dito, a mala recheada de dólares lhe foi
inesperadamente entregue por um auto-intitulado emissário
divino (que estará no hospício a que João
é confinado na meia-hora final do filme). Quem
bate carteiras cinefílicas é o João
que está fora da diegese, antes de começar
o filme. E o principal documento roubado, ou seja, a
principal inspiração estética de
As Bodas de Deus, apesar da citação
mais literal ser mesmo o filme de Bresson, é
John Ford – basta ver a obsessiva composição
com molduras (portas, janelas, fendas entre as pedras)
situadas dentro do quadro, como em Rastros de Ódio.
O que João César Monteiro constrói
nestes dois filmes é a mise en scène
de uma arte de viver, e nesse sentido tanto A Comédia
de Deus quanto As Bodas de Deus, a despeito
do cuidado gráfico de seus planos fixos e dos
diálogos antinaturalistas (não raro subversões
de referências eruditas e ditos populares), acabam
sendo como que documentários sobre uma técnica
particular de auto-inscrição no mundo.
Os recorrentes planos-seqüência de João
Vuvu no ônibus em Vai e Vem não
são senão o aprofundamento dessa lógica
de registrar um tempo individual e afirmar a necessidade
dos outros por perto, ocupando este mesmo transporte
coletivo, ora para contrastar com a singularidade física
e mental daquele passageiro dos fundos, ora para compartilhar
da mesma marcha.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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