Não foram poucos os filmes que, nos últimos anos, com
propostas e abordagens diferenciadas, tematizaram a
perda da memória. Talvez isso seja reflexo dos processos
de desenraizamento e desterritorialidade típicos da
contemporaneidade, com significados mais amplos sobre
nosso tempo, mas trafeguemos pelas fronteiras dos filmes
antes de tentar ultrapassá-las. No específico cinematográfico,
afinal, são muitas as diferenças, a partir das linhas
temáticas, entre filmes como O
Pagamento (John Woo) e Identidade
Bourne (Doug Liman), ou entre Amnésia (Christopher Nolan) e Cidade dos Sonhos (David Lynch), ou entre
Adeus Lenin
(Wolfgang Becker) e
O Homem Sem Passado (Aki Kaurismali), embora cada
qual a seu modo trate, em última instância, do esquecimento
de uma identidade, ou, em alcance mais amplo, do apagamento
de vestígios históricos. Vemos nas imagens dessas obras
tanto visões pessimistas, porque vinculadas à alienação,
como libertárias, porque relacionadas à capacidade de
reivenção. A ausência da memória é ausência de história
e tradição, consequentemente de identidade, mas o apego
excessivo a ela também pode ser escravizante, como se
uma mudança de jogo não fosse possível.
Também são essas as questões de Efeito Borboleta, de Eric Bress-J Macye
Gruber, e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança,
de Michel Gondry, a partir de roteiro de Charlie Kaufman.
Nos dois casos, os personagens esquecem trechos de suas
vidas, mas de formas distintas, com intenções muito
diferentes. Efeito Borboleta é basicamente a história
de uma criança dada a lapsos de memória que a levam
a agir e a perder monetaneamente a consciência de quem
é, tendo,
para sanar esse pequeno dano mental, de escrever todas
as experiências em um diário, que assim funciona como
uma espécie de permanente impressão das lembranças,
como uma afirmação de seu eu sempre ameaçado. Em um
dado momento da vida, infeliz porque em seu percurso
provocou de alguma forma traumas em terceiros, o protagonista
volta sucessivas vezes à infância, por meio das leitura
dos diários, e tenta corrigir os eventos geradores de
algum estrago, sempre causando novos estragos a cada
tentativa de solução.
No letreiros iniciais, há uma citação da Teoria do Caos. É só um reforço
para a idéia de que, se movessemos uma peça do xadrez
para uma casa diferente de nossa opção, o resto do jogo
seria completamente diferente - no entanto, essas mudanças
são constantes, não isoladas. Mas, o filme parte de
uma premissa determinista e freudiana de que a direção
de uma vida é modelada por um ou outro evento específico
da infância, dos quais os personagens se tornam prisioneiros
impotentes e condenados à infelicidade para o restante
de seus dias. A única possibilidade de se reiventar
os destinos, portanto, seria promover uma simbólica
regressão até o passado para, assim e só assim, alterar
o presente e o futuro para sempre. Apagar um acontecimento
e substitui-lo por outro nessa regressão significa esquecer.
Só passando a borracha em um trauma os personagens poderão
ser outra coisa – e não vítimas eternas do trauma. Esse
tributo do esquecimento é explicitado ao final, quando
o protagonista apaga os diários após a última viagem.
Seu problema não é de falta, mas de excesso de memória.
Ele vive várias vidas, mas não ignora nenhuma.
A alteração das circunstâncias de vida do personagem, motivadas pelas
idas corretivas à infância, não implica nenhuma mudança
no sujeito. À frente de trajetórias múltiplas, mas sem
conseguir apagar as anteriores quando inicia uma nova,
o protagonista é, em parte, símbolo de um sujeito moderno,
multifacetado, mas, ao contrário deste, é homogêneo
nas variadas faces: pertence sempre a si mesmo a despeito
das condições, com uma essência imutável em suas constantes
mudanças. Isso só vale para o herói, já que, quando
este altera o passado, alguém sai de lá mudado, com
outra personalidade, com outra índole, que nos leva
a ver o sujeito como construção de seu contexto, mas
uma construção sem flexibilidade. Ou seja: só o herói
é imutável e, por isso, é o herói da história.
E só o herói pode mudar os outros porque é o
único a poder mudar a memória. Já os outros são alienados,
portanto, podem ser alterados por terceiros.
Dentro da lógica diegética, nada é tão simples assim, porém. Percebemos
com a evolução da narrativa e com a sucessão de regressões
à infância que, na verdade, o diário não é exatamente
um portal de viagem no tempo, mas uma abertura para
existências paralelas, nas quais todos os tempos parecem
conviver simultaneamente. Estamos em uma viagem cíclica
pela memória, empreendida para se buscar a vida perfeita
para os personagens ao redor, sempre com uma perspectiva
fisicalista. Temos assim um ideal de mundo perfeito,
de vidas ajustadas, de ausência de conflitos, de uma
lógica científica para as experiências (a psicologia
é um dado importante no filme), de um esquema fechado
e totalitário de jogo de montar, a partir do projeto
“só quero saber do que pode dar certo”. E o poder dar
certo, como já de colocou aqui, pede esquecimento. Não
se crê na transformação com memória ou pela memória:
é preciso mudar todo um contexto de vida.
Em Brilho Eterno de uma Mente
sem Lembrança, é exatamente o contrário. Estamos
em uma fabulação sobre a possibilidade de transformação
com memória e em um mesmo contexto, com crença no risco
das experiência e na aventura de qualquer projeto, sem
a obsessão pela vida perfeita de Efeito
Borboleta. Pode-se resumir os acontecimentos à trajetória
mental de um sujeito que, ao saber da decisão da namorada
em limpá-lo da memória por meio de uma operação tecnológica,
decide fazer o mesmo e se arrepende pelo caminho. Não
quer apagar uma parte de si mesmo, tornar-se outro (tema
obsessivo de Charlie Kaufman), para assim sofrer menos
na vida. Quer resistir às adversidades com seu repertório
completo – de fraquezas e traumas, inclusive, porque
sobreviver é preciso, mesmo sem condições ideais. As
cartas são baixadas de forma cristalina: reivenção pelo
esquecimento ou com memória de um fracasso? A opção
segunda será desde sempre a acenada para os personagens,
até porque, mesmo na operação de dissolução da memória,
não existe antídoto para a repetição do problema, do
tipo apaixonar-se de novo pela pessoa esquecida, mostrando-nos
assim certo determinismo cíclico nas possibilidades
de ação e de transformação, em lógica contrária a de
Efeito Borboleta, segundo a qual a perda
de uma perna em uma vida é suficiente para se perder
a gatinha de outra vida.
Sempre disposto a trafegar pelos circuitos da rede de mal estares da
hipermodernidade, vendo na flexibilidade da identidade,
no caráter descartável das experiências e na coleção
de sensações um pólo de inseguranças para o ser contemporâneo,
Charlie Kaufman acena com solução otimista ao final.
Faz isso menos para por panos quentes nos conflitos
lançados, ou para dar certo conforto para o espectador
com sede religiosa de organização do mundo e viciado
em explicações para a vida, mas porque resistir à um
fenômeno abrangente, principalmente sem pintar de cor
de rosa essa resistência, é um gesto político afirmativo.
Kaufman crê em projetos, não na efemeridade. Crê na
insistência, não na virada de página. As fitas cassetes
ouvidas pelo casal Jim Carrey-Kate Winslet, na qual
sabem já terem fracassado em uma relação conjugal, não
os impede de insistir em nova tentativa. Pois se crê
que o problema, mais que neles, esteja no método de
convivência.
Usamos aqui o nome de Kaufman, o roteirista, e não de Michel Gondry,
o diretor (também de Natureza
Humana, outro roteiro de Kaufman), porque, em última
instância, problematizando a teoria do autor, Kaufman
é autor de seus filmes. Filmes escritos por ele são
“filmes de roteiro”, sustentados por enredo, idéias
implicadas no enredo, estruturas já pensadas no papel,
sem muito espaço para o diretor respirar ou reinventar
em imagens as palavras. Esse pode ser um limite de seu
cinema de idéias, mas, ao menos nesse caso, Gondry parece
mais empenhado, se comparado a Spike Jonze em Quero ser John Malkovich e Adaptação, em servir o material e se servir
dele. Suas opções visuais para o percurso mental, com
ruptura do ordenamento temporal e espacial, potencializam
as situações de Kaufman, em vez de apenas ilustrá-las
com imagens. Pode-se ver a circularidade da narrativa
como mero maneirismo da moda desde a institucionalização
da opção por Quentin Tarantino em Pulp
Fiction (embora isso venha sendo feito desde muito
antes, como podemos ver em O Terraço, 1980, de Ettore Scola). A circularidade
em Brilho Eterno,
contudo, tem coerência dramática. Omitindo informações
a maior parte do tempo, para só depois nos por a par
de como algo se deu e assim nos situar na cronologia
correta dos fatos, a narrativa é uma construção de memória
(não dos personagens, mas do próprio filme). Gondry-Kaufman
permitem ao sistema rigoroso do roteiro respirar e superar
as paredes levantadas na escrita.
Em Efeito Borboleta, a prisão
ao roteiro também é perceptível,
mesmo quando a mise-en-scène tenta causar certo
estranhamento, também com sutis rupturas de tempo, aqui
mais naturalizadas. Não temos o arejamento visual buscado
por Gondry, mas um diálogo paródico com gêneros, principalmente
o terror, que parecem desviar-se de uma abordagem séria,
mas que, ao contrário de Brilho Eterno, com sua visão ridicularizante
da ciência, leva a medicina e a psicologia a sério (ao
menos enquanto tratamento dentro do filme) . Não vemos
como o filme é construído em imagens, quase apenas como
ele é elaborado no papel. Embora na tela o roteiro necessariamente
vire filme, com o acréscimo de atores, tempos de planos
e luz, o filme à vista é prisioneiro de um esquema pré-determinado,
como se tudo fosse possível de ser organizado naquele
mundo, justamente a organização ideal buscada pelo protagonista.
Cléber Eduardo
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