BRANCA DE NEVE
Portugal/França, 2000

O instante seguinte. Ele já fazia presença ao final de O Que Farei Eu com Esta Espada, precisamente na passagem do navio norte-americano atravessando o mar português para a parede descascada, embrutecida visivelmente pela passagem do tempo, onde está inscrita a epígrafe "Proletários de todos os países UNI-VOS!". Essa parede, a separação patente do "UNI-VOS!" que uma panorâmica realizada pela câmera tornava ainda mais deflagradora, tudo isso apontava para um novo espaço, um espaço em nenhum momento explorado anteriormente por João César Monteiro em seu filme. Este espaço poderia apenas surgir no momento em que tudo já está dito e feito, o momento em que não há possibilidade de retorno ou risco de retrocesso. Este espaço é um vácuo, o "após" que surge ao final de todas as histórias, de todas as fricções possíveis entre história e civilização, uma parede onde nada ainda foi escrito, onde ainda é possível inscrever algo. Não estranhemos, portanto, que Monteiro tenha feito um filme todo deste "instante seguinte", desta parede sem inscrições. Este filme é Branca de Neve.

A tela escura do filme é na realidade o registro de três formas de opressão: a da tela do cinema pelo projetor, a do espectador pela tela e a da tela pelo nosso olhar. O que Monteiro faz, o absurdo e o gênio do dispositivo que cria para este filme, é propor uma espécie de protesto para todas estas formas de opressão. Existe lá, na tela, o texto de Robert Walser; existe a representação dos anseios de Walser (se o autor de Branca de Neve preferia o ouvir ao ver, Monteiro, ao fazer um filme feito somente de falas, consegue justamente colocar-nos numa posição oposta à de Walser); existe toda uma beleza das falas, verdadeiro júbilo para ouvidos instruídos. É como se Monteiro preparasse cuidadosamente sistemas e estruturas belíssimos, verdadeiramente encantadores, para com o vácuo da tela escura revelar o enorme vazio da "beleza" e do "encanto" destes sistemas e estruturas e assim perguntar-nos: "Vocês ainda desejam mais? Não se contentam com tanta beleza, com objetos tão ricos?". Como todos os grandes que apostaram todas as fichas no cinema – como Rossellini com Viagem à Itália, Glauber com A Idade da Terra, Godard com Histoire(s) du Cinema e Pasolini com Salò –, Monteiro cria não apenas uma grande obra como também estabelece um momento e uma etapa importantes dentro da longa história das formas cinematográficas.

Diante do potencial devastador deste trabalho, da acidez quase que insuportável (as imagens de Walser morto ainda no início são tão mais assustadoras pela maneira simples que Monteiro as situa no filme), da não-transcendência que enfrentamos do início ao fim da película, podemos nos perguntar se tanta crueldade pode de fato produzir efeitos de interesse. Eis que a última imagem, prenúncio do final de Vai e Vem (e de certa forma Branca de Neve está para Vai e Vem como O Signo do Caos está para Tudo é Brasil), não só revela o jogo em que havíamos sido colocados como, de forma quase samaritana, nos tira deste jogo e nos põe novamente nos trilhos de nossas vidinhas: aparece um homem (seria o diretor ou João de Deus? Ou, ainda, João Vuvu?); atrás dele há uma árvore; ao redor de ambos uma vegetação. Primeiro plano, segundo plano e fundo de cena. Faz-se a luz, e de repente temos à nossa frente um mundo todo de imagens, e imagens que são elas mesmas fundamentais: o homem, a natureza e suas origens. O homem fala algo (é o que achamos; pelo menos movimenta a boca durante alguns instantes), mas desta fala não surgem os sons correspondentes. Terminada sua participação, sai de cena e nos deixa apenas com a árvore e a vegetação. É neste momento e não antes que temos a confirmação de que a pessoa que realizou esta obra sabia, e muito bem, o que estava fazendo: um trabalho de depuração tão rigoroso, arriscado e austero como este só pode acabar dando fim a si mesmo. Pois se o cinema chega a um ponto onde é todo falas e nenhuma imagem, é preciso dar um passo atrás (um passo para trás, vale acrescentar, tão falso quanto os pequenos jogos travados entre a Rainha e Branca de Neve): é preciso fazê-lo novamente arte muda. Uma obra que trabalha desta forma com os limites da representação, que exacerba tanto os aspectos não-reconciliáveis entre autor e obra, obra e espectador, espectador e autor, só pode revelar seus procedimentos a partir do momento em que joga contra eles; em outras palavras, a partir do momento em que estes procedimentos questionam a si próprios. Branca de Neve torna-se, assim, o adeus a João de Deus e a saudação a João Vuvu, o limbo que nasce do espaço entre a vida e a morte do autor.

Bruno Andrade