O
instante seguinte. Ele já fazia presença
ao final de O Que Farei Eu com Esta Espada, precisamente
na passagem do navio norte-americano atravessando o
mar português para a parede descascada, embrutecida
visivelmente pela passagem do tempo, onde está
inscrita a epígrafe "Proletários de todos
os países UNI-VOS!". Essa parede, a separação
patente do "UNI-VOS!" que uma panorâmica realizada
pela câmera tornava ainda mais deflagradora, tudo
isso apontava para um novo espaço, um espaço
em nenhum momento explorado anteriormente por João
César Monteiro em seu filme. Este espaço
poderia apenas surgir no momento em que tudo já
está dito e feito, o momento em que não
há possibilidade de retorno ou risco de retrocesso.
Este espaço é um vácuo, o "após"
que surge ao final de todas as histórias, de
todas as fricções possíveis entre
história e civilização, uma parede
onde nada ainda foi escrito, onde ainda é possível
inscrever algo. Não estranhemos, portanto,
que Monteiro tenha feito um filme todo deste "instante
seguinte", desta parede sem inscrições.
Este filme é Branca de Neve.
A tela escura do filme é na realidade o registro
de três formas de opressão: a da tela do
cinema pelo projetor, a do espectador pela tela e a
da tela pelo nosso olhar. O que Monteiro faz, o absurdo
e o gênio do dispositivo que cria para este filme,
é propor uma espécie de protesto para
todas estas formas de opressão. Existe lá,
na tela, o texto de Robert Walser; existe a representação
dos anseios de Walser (se o autor de Branca de Neve
preferia o ouvir ao ver, Monteiro, ao
fazer um filme feito somente de falas, consegue justamente
colocar-nos numa posição oposta à
de Walser); existe toda uma beleza das falas, verdadeiro
júbilo para ouvidos instruídos. É
como se Monteiro preparasse cuidadosamente sistemas
e estruturas belíssimos, verdadeiramente encantadores,
para com o vácuo da tela escura revelar o enorme
vazio da "beleza" e do "encanto" destes sistemas e estruturas
e assim perguntar-nos: "Vocês ainda desejam mais?
Não se contentam com tanta beleza, com objetos
tão ricos?". Como todos os grandes que apostaram
todas as fichas no cinema como Rossellini com
Viagem à Itália, Glauber com A
Idade da Terra, Godard com Histoire(s) du Cinema
e Pasolini com Salò , Monteiro cria
não apenas uma grande obra como também
estabelece um momento e uma etapa importantes dentro
da longa história das formas cinematográficas.
Diante do potencial devastador deste trabalho, da acidez
quase que insuportável (as imagens de Walser
morto ainda no início são tão mais
assustadoras pela maneira simples que Monteiro as situa
no filme), da não-transcendência que enfrentamos
do início ao fim da película, podemos
nos perguntar se tanta crueldade pode de fato produzir
efeitos de interesse. Eis que a última imagem,
prenúncio do final de Vai e Vem (e de
certa forma Branca de Neve está para Vai
e Vem como O Signo do Caos está para
Tudo é Brasil), não só revela
o jogo em que havíamos sido colocados como, de
forma quase samaritana, nos tira deste jogo e nos põe
novamente nos trilhos de nossas vidinhas: aparece um
homem (seria o diretor ou João de Deus? Ou, ainda,
João Vuvu?); atrás dele há uma
árvore; ao redor de ambos uma vegetação.
Primeiro plano, segundo plano e fundo de cena. Faz-se
a luz, e de repente temos à nossa frente um mundo
todo de imagens, e imagens que são elas mesmas
fundamentais: o homem, a natureza e suas origens. O
homem fala algo (é o que achamos; pelo menos
movimenta a boca durante alguns instantes), mas desta
fala não surgem os sons correspondentes. Terminada
sua participação, sai de cena e nos deixa
apenas com a árvore e a vegetação.
É neste momento e não antes que temos
a confirmação de que a pessoa que realizou
esta obra sabia, e muito bem, o que estava fazendo:
um trabalho de depuração tão rigoroso,
arriscado e austero como este só pode acabar
dando fim a si mesmo. Pois se o cinema chega a um ponto
onde é todo falas e nenhuma imagem, é
preciso dar um passo atrás (um passo para trás,
vale acrescentar, tão falso quanto os pequenos
jogos travados entre a Rainha e Branca de Neve): é
preciso fazê-lo novamente arte muda. Uma obra
que trabalha desta forma com os limites da representação,
que exacerba tanto os aspectos não-reconciliáveis
entre autor e obra, obra e espectador, espectador e
autor, só pode revelar seus procedimentos a partir
do momento em que joga contra eles; em outras palavras,
a partir do momento em que estes procedimentos questionam
a si próprios. Branca de Neve torna-se,
assim, o adeus a João de Deus e a saudação
a João Vuvu, o limbo que nasce do espaço
entre a vida e a morte do autor.
Bruno Andrade
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