Pensar em filmes como um conjunto
de obra é de modo geral bastante interessante para nós
que refletimos sobre eles, mas pode levar a certas limitações
para quem os está realizando. Uma certa tendência a
reiteração surge em muitos cineastas (podemos pensar
em Walter Hugo Khouri para ficarmos num exemplo nosso),
que aos poucos tira a vitalidade dos seus filmes. Woody
Allen é um caso típico disso. Há uma certa fórmula de
Woody Allen e todos os seus filmes, alguns mais outros
menos, a seguem. Daí surge também uma forma de Woody
Allen que ele descobriu servir bem a fórmula, resultando
numa progressiva preguiça estética (mais notável depois
que parou de trabalhar com o fotógrafo Gordon Willis).
Os filmes passaram a girar em falso com freqüência.
É preciso que se introduza algo que surpreenda.
Pois bem, Igual a Tudo na Vida é um filme de
renovação dentro da obra de Woody Allen, e seu melhor
trabalho desde UmMisterioso Assassinato em Manhattan.
Para isso bastou que ele colocasse diante de si um problema
simples, mas que passou despercebido da maior parte
dos críticos: trata-se do primeiro filme de Allen desde
Manhattan a ser rodado em scope. A opção pelo
scope funciona muito bem dentro de um contexto bastante
claustrofóbico, e a necessidade de trabalhar com um
quadro mais largo reanimou seu cinema - pela primeira
vez em anos pode-se falar de uma mise-en-scène criativa
num filme de Allen. O diretor manteve até mesmo a sua
tendência para apelar aos zooms (que haviam se tornado
cada vez mais recorrentes nos últimos filmes) sob controle.
Na verdade, Igual a Tudo na Vida é provavelmente
o primeiro filme de Allen desde Manhattan que
se pode considerar melhor dirigido do que escrito. Trata-se
também de um filme sobre o estado atual da carreira
de Woody Allen.
Não se trata, que fique bem claro, de um filme de todo
bem resolvido - quase o oposto disso. Há muitos problemas,
o roteiro de Allen parece obra de um escritor desesperado
em repetir o antigo sucesso, elementos de filmes anteriores
(em especial Noivo Neurótico, Noiva Nervosa)
são regurgitados e inseridos na trama de forma desengonçada.
O flashback para o primeiro encontro entre Jason Biggs
e Christina Ricci, por exemplo, flui mal, em muito porque
os atores parecem incomodados com os diálogos, há algo
de falso na seqüência toda (apesar de Allen conseguir
alguns momentos agradáveis no começo quando ele a encontra
na rua com um antigo amigo). Só que estes problemas
todos de certa forma ajudam o filme. Vendo em perspectiva,
Dirigindo no Escuro se revela um trabalho de
um artista perplexo com sua corrente posição (até o
titulo original, Hollywood Ending, adquire uma
certa melancolia). Igual a Tudo na Vida por sua
vez acaba se mostrando um filme de um artista afogado.
Há de tudo aqui: o desejo de fazer um filme mais comercial
(por exemplo, na escolha de um elenco mais jovem), de
agradar aos antigos fãs (recorrendo a vários velhos
favoritos), agradar aos críticos (com um filme que,
sem deixar de ser uma comédia, é mais sério que os trabalhos
que imediatamente o precederam) e até mesmo ao seu próprio
narcisismo (ao se escalar como o personagem que vai
ajudar o herói a resolver seus problemas). Mais importante
de tudo há o fantasma do velho Woody Allen dos anos
80, aquele que em certo momento virou, para um setor
grande da critica, sinônimo do que seria um cineasta
inteligente. Não é surpresa que enquanto a maior parte
dos filmes de Allen trabalham a partir de filmes europeus
que lhe agradam, Igual a Tudo na Vida parece
trabalhar a partir deste Allen do fim dos anos 70 e
anos 80. Fundo do poço para alguns, prefiro crer num
auto exorcismo necessário.
O filme todo parece assombrado por estes velhos grandes
tempos, onde Allen fazia os filmes que queria (sem tanta
necessidade de bajular os gostos alheios) e tinha retorno
tanto do público quanto de crítica. As tentativas de
revivê-los fracassam, como não podiam deixar de fracassar,
mas há algo de fascinante que decorre delas. Podemos
ver ali um sinal de ruptura: Allen se insere no filme
como uma caricatura da sua persona, uma versão distorcida
e mais desagradável do seu judeu neurótico. Enquanto
Biggs sugere uma versão jovem e mais ingênua dele, mas
o interpreta (muito bem, diga-se) de forma a, ao mesmo
tempo que retém o suficiente do estilo do seu diretor,
sugerir uma personalidade própria. Isto faz toda a diferença:
foram-se os tempos em que Allen transformaria qualquer
ator que calhasse em fazer seu alterego (de Mia Farrow
a Judy Davis, de Kenneth Branagh a John Cusack) num
mero carbono de si mesmo. Estes dois Allens se encontram
e dali o filme tira bastante da sua força: podemos ver
ali expresso – desde o primeiro plano onde a situação
recorrente dos dois homens conversando, o jovem ouvindo
de forma obediente ao velho, é subvertida pelo posicionamento
dos bancos que, pelo ponto de fuga, sugerem a necessidade
de Biggs de sair já dali – o quão desarranjada e pouco
saudável é a relação que Allen hoje mantém com a imagem
que se formou sobre a figura dele. Igual a Tudo na
Vida é um filme sufocante, desagradável e bastante
negativo. Não há uma única relação saudável na vida
de Biggs (o filme sugere à sua maneira uma atualização
de Memórias, mas menos indulgente e muito melhor
pensada). Ao mesmo tempo é um filme bastante esperançoso,
porque ele sugere ao longo de toda a sua duração rupturas,
rotas de fuga, caminhos para uma renovação. Woody Allen
parece se sentir pressionado, encostado contra a parede,
mas ele parece ainda mais consciente da sua necessidade
de se reafirmar. A perplexidade do simpático filme anterior
abre espaço para ação, o que nos leva de volta a mise
en scene do filme.
Há diversas razões pelas quais Allen sempre ter preferido
o 1:85 ao 2:35: seus filmes de predileção raramente
trabalham com tela larga (é fato que se ele pudesse,
ele também filmaria com mais freqüência em preto e branco);
além de ser muito mais difícil de se enquadrar em 2:35,
o que num cineasta que sempre se mostrou mais à vontade
dirigindo atores do que a câmera, certamente não ajudava
a torna o formato atrativo. De outro lado mostra-se
mais espaço, justamente o espaço que o Allen cineasta
e seu jovem alterego tanto reivindicam para eles mesmos.
Além disso, as maiores dificuldades que o formato propõe
obrigam Allen a pensar: pela primeira vez em anos de
seus filmes vemos atores que não parecem se deslocar
pelo quadro a esmo, objetos de cena ganham expressão,
cenários se tornam parte do quadro e não mero local
onde a ação se desenvolve. O Central Park nas visitas
de Biggs e Allen não existe como cartão postal (como
em outros filmes de Allen), mas como uma fortaleza que
protege as duas versões do cineasta do resto do mundo
(uma quase paródia melancólica das reclamações, ao menos
parcialmente justas, de que o diretor tende a se isolar
do resto do mundo). Não é só uma questão de explorar
as possibilidades do quadro (erro no qual muitos cineastas
que se arriscam pelo formato incorrem), mas nas possibilidades
do que está dentro do quadro.
Há um excelente plano, não muito longo e aparentemente
desimportante, em que Biggs e Allen estão sentados num
banco no parque. Há ali uma combinação da distância
entre a câmera e o objeto, disposição dos atores dentro
da imagem e a linguagem corporal deles que exprime tudo
que se precisa saber sobre o funcionamento da relação
deles. Há uma outra excepcional seqüência pelo meio
do filme – a única a envolver todas as personagens que
sufocam Biggs – realizada na sua segunda metade em um
plano só, onde o caos se instala mostrando a precisão
do controle de Allen sobre o seu material: diversas
ações transcorrem, Biggs precisa de alguma forma equilibrar
sua relação com todas as personagens, atores entram
e saem do quadro, objetos são usados para bloquear seu
caminho e distanciá-lo deles, split-screen é usado criativamente
como mais um objeto de fragmentação dentro do já caótico
cenário e Allen controla tudo fazendo que em meio ao
caos percebamos a unidade do propósito da passagem.
Em momentos como esse, o filme explicita as saídas de
Allen no futuro. Seu cinema, ao menos em Igual a
Tudo na Vida, já não gira em falso.
Filipe Furtado
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