Em um determinado momento do filme Nacha Regules
(Santa y Pecadora), de Luis Cesar Amadori (Argentina,
1950), a dona do bordel diz ao personagem de Arturo
de Córdova: "Cada mulher está onde merece
estar". Esta frase torna-se emblemática ao se
acompanhar cada um dos 16 filmes que compuseram a mostra
"musas latinas" da última edição
do Cinesul. Ao assistir a esta diversificada seleção
de filmes dos anos 40 e 50 (a exceção
fica por conta de El Romance del Palmar, produção
cubana dirigida por Ramón Peón em 1938),
fica na cabeça exatamente a questão sobre
o lugar que estas mulheres ocuparam no imaginário
das sociedades latino-americanas (mexicana, argentina,
brasileira e cubana) daquelas décadas.
Os anos 40 e parte dos 50 representaram a época
de ouro do cinema mexicano e nos outros países
da América Latina forjava-se a idéia de
um cinema nacional. Com exceção da produção
cubana já citada e de É proibido beijar
(Ugo Lombardi, Brasil, 1954), uma comédia da
Vera Cruz com Tonia Carrero e Mario Sergio, todas as
outras produções da mostra são
melodramas assumidos ou carregam um forte acento do
gênero.
O melodrama, linguagem e discurso balizador desta experiência,
convertia-se numa referência de identificação
imediata entre obra e público, além de
promover a catarse necessária ao processo que
Silvia Oroz costuma chamar de educação
sentimental das massas. Através do melodrama
iam-se trabalhando valores e ideologias capazes de confirmar
a sociedade pequeno-burguesa que se constituía
de acordo com os diversos projetos nacionais, fundamentados
em um desenvolvimento capitalista urbano a partir da
afirmação do privado como o espaço
legitimador do sentimento, e, por desdobramentos, das
relações sociais. Por mais contraditória
possa parecer, a modernização das sociedades
latino-americanas incorporava elementos do arcaico muito
bem representados nos emblemas discursivos do melodrama
enquanto estratégia de convencimento nacional.
O corpo da mulher no melodrama era o espaço destinado
ao sentimento, ao desejo, à volúpia e
aos desatinos que muitas vezes ameaçavam a ordem
e o equilíbrio social vigente. Quase sempre divididas
entre a mãe e a prostituta (ou misturadas entre
elas), nossas musas latino-americanas apresentavam personagens
muito bem definidas socialmente, ainda que isso não
impedisse que elas imprimissem sua marca pessoal de
maneira definitiva na tela e na memória de seu
público. Seja na mais completa abnegação
das inúmeras mãezinhas ou irmãs
deste repertório fílmico, aqui representadas
nas prostitutas de Dolores del Rio em Las Abandonadas
(Emilio Fernández, México, 1944), Ninón
Sevilla em Víctimas del Pecado (Emilio
Fernández, México, 1950) e Glauce Rocha
de Rua sem sol (Alex Viany, Brasil, 1954); seja
na afirmação do amor como elemento construtivo
e sublime de uma relação recomendada,
como a personagem de Libertad Lamarque em La cabalgata
del circo (Mario Soficci, Argentina, 1944) e Mirtha
Legrand em La pícara soñadora (Ernesto
Arancibia, Argentina, 1956), seja no perigo representado
pela paixão despertada pela mulher como elemento
desviante encarnado por Tonia Carrero em Apassionata
(Fernando de Barros, Brasil, 1952), Eliane Lage
em Caiçara (Adolfo Celi, Brasil, 1950),
Rosita Formés em No me olvides nunca (Juan
José Ortega, Cuba/México, 1956) e Ninón
Sevilla em Aventurera (Alberto Gout, México,
1949) o olhar sobre a mulher é constantemente
formatado pelos estreitos limites de uma moldura misógina
e reducionista ("las mujeres valen por el hombre con
quien andan" diz o personagem de Rodolfo Acosta em Víctimas
del Pecado). Isso, porém, não impede
que tal repertório dedique a estas atrizes e
personagens um lugar de absoluto destaque no imaginário
latino-americano, ditando comportamentos, ensinando
didaticamente o verdadeiro sentido do amor e da maternidade,
açoitando de forma quase perversa a libido e
o fascínio de seus admiradores.
A partir do modelo de star-system, definido por Morin
como "máquina de fabricar, manter e promover
as estrelas sobre as quais se fixaram e se divinizaram
as virtualidades mágicas da imagem da tela"1,
os filmes apresentam como um lugar mítico o corpo
e a aura das estrelas-musas. Assim, a beleza do rosto
de Dolores del Rio hipnotiza o espectador, com sua indígena
de tranças, agarrada a um porquinho, num campo
de flores em Xochimilco (Maria Candelaria, de
Emilio Fernández, México, 1943); o olhar
altivo e ameaçador de Maria Felix fundido à
imagem de um rio caudaloso em Doña Bárbara
(Fernando de Fuentes, México, 1943) fita
diretamente o público, encara-o, desafia-o depois
de ter sido estuprada por diversos homens, razão
pela qual perdeu sua candura feminina e converteu-se
num ícone da rusticidade ameaçadora da
mulher imperativa, "la devoradora de hombres, implacable,
temible, la violência misma, la hembra tremenda
dueña de vidas y haciendas" (que irá abrigar
no filme o célebre dilema latino-americano barbárie/Doña
Bárbara X civilização, esta representada
pela chegada do culto advogado da cidade, personagem
de Julián Soler na transposição
ao cinema do clássico de Rómulo Gallegos);
a fragmentação do corpo da cabareteira-rumbeira
Ninón Sevilla em Víctimas del Pecado
e Aventurera que, numa dança quase transe,
instiga despudoradamente o desejo do público
masculino com o movimento frenético de suas cadeiras,
pernas, ombros, bunda, seu corpo cuidadosamente destroçado
numa decupagem que permite tornar acessível a
seu público toda a sensualidade de sua caribenha
latinidade. A música, aliás, é
peça fundamental num certo tipo de filme desta
década. De acordo com o desenvolvimento dos respectivos
projetos nacionais latino-americanos, vemos ascender
ao posto de representantes das culturas nacionais o
bolero (onde Augustin Lara, de Aventurera, reina
imbatível), as milongas, o tango (Libertad Lamarque
converte-se através dos filmes em um Gardel de
saias – "maldito sea el tango que fascina" canta em
La cabalgata del circo), o samba (que dividia
a cena com as marchinhas carnavalescas), e as rumbas
e ritmos caribenhos interpretados por Rita Montaner
em Víctimas del Pecado. A ampliação
do conceito de latinidade na segunda metade dos anos
40 (lembrem-se da "política da boa vizinhança"),
traduz-se em Aventurera num delicioso número
musical no qual Ninón Sevilla, vestida com abacaxis
na cabeça, a la Carmen Miranda (portuguesa que
encarnou uma brasilidade convertida mais tarde em uma
latinidade), canta com um sotaque hispânico, em
português, a canção Chiquita Bacana,
rodeada pelos músicos brasileiros de Los Ángeles
del Infierno num cenário que sugere os arcos
da Lapa estilizados a frente de montanhas que lembram
o Corcovado. Mais hibridismo impossível ! Como
se pode perceber, a beleza estonteante de Dolores Del
Rio, a altivez desafiadora de Maria Felix e a sensualidade
provocadora de Ninón Sevilla estavam a serviço
de discursos que transcendiam o "corpo, dentes e músculos",
ainda que "lindas, mais que demais".
Um outro ponto importante para a construção
da idéia de musa, insistentemente formatada pelo
cinema latino-americano a partir da matriz geradora
de um star-system hollywoodiano, é uma certa
inacessibilidade destas mulheres. Tal qual ícones
religiosos, nossas musas irrompem na tela como verdadeiras
aparições diante dos olhos desejosos de
seu público e seguramente não seria impróprio
remetermo-nos à idéia de "aparição"
que povoa a iconografia religiosa latino-americana.
O vínculo entre a musa do cinema e a santa se
estabelece a partir do sentido de "aparição"
que tais imagens articulam dentro da tradição
religiosa católica e da cultura cinematográfica
sintonizada com o star-system. Da mesma forma
que a santa "aparece" como visão para seus devotos,
o rosto da estrela "aparece" na tela, estabelecendo
uma relação de desejo e devoção
do público à estrela/santa na ordem do
mito. Isso é mais forte e explícito na
personagem Maria Candelaria, interpretada por Dolores
del Rio que, no filme homônimo de matriz indigenista,
apresenta sua personagem articulada à imagem
da Virgem de Guadalupe (esta, uma santa mestiça
que "apareceu" para um indígena e teve sua imagem
impressa num manto/tela, como reza a lenda). Já
no início do filme, vemos sua casa ser apedrejada
por uma índia, Lupe (Margarita Cortés),
que se opõe ao seu namoro com Lorenzo Rafael
(Pedro Armendáriz). Uma das pedras destrói
a imagem da santa que Maria Candelaria tinha em um altar.
Esse apedrejamento antecipa e reforça a associação
entre a santa e a indígena que, ao final do filme,
vai ser morta a pedradas pelo seu povo. A projeção
da plástica perfeita, sob os parâmetros
de beleza ditados por Hollywood, do rosto de Dolores
del Rio na tela, inscreve o discurso indigenista de
Emilio Fernandez num viés de glamourização
colocado pelo modelo de cinema industrial dos grandes
estúdios desta época. A figura do indígena
mexicano estava, então, definitivamente domesticada
sob a beleza hollywoodiana de uma das divas do cinema
latino-americano.
A aparição inacessível das musas
dos melodramas latino-americanos é reforçada
também através do peso dramático-cenográfico
das inúmeras escadas sinuosas e imensas destes
cenários requintados. As escadas, além
de reforçarem a abastada condição
social da personagem-protagonista, ajudam a inscrevê-la
como algo inalcançável. Em Las Abandonadas,
Margô (Dolores del Rio) aparece pela primeira
vez aos olhos do general Juan Gómez (Pedro Armendáriz)
no alto de uma escada do bordel de luxo. A imagem provoca
um efeito hipnótico sobre o galã, que
ao vê-la baixar lenta e suntuosamente num vestido
branco cravejado de pedras brilhantes, dirige-se a ela
com suavidade: "Baje, por favor, quiero convencerme
de que existe y no es una ilusión". Da mesma
forma, na última cena de Apassionata,
Silvia (Tonia Carrero), pianista de sucesso, ao abandonar
o marido, um pintor fracassado, e recusar o amor de
Pedro, que a salvara da acusação de assassinato
do ex-marido, diz que não pode amar porque sua
vida é a música. Assim, sobe as escadas
lentamente, ascendendo à sua condição
de musa inacessível, deixando para trás,
arrasados e imóveis, os homens que a amam.
Muitos são os mecanismos operados pela linguagem
cinematográfica que constroem discursiva e esteticamente
a imagem da musa na tela; inúmeras e imprescindíveis
são as qualidades da atriz que contribuem para
a composição de sua personalidade junto
ao público. Essa relação musa/público,
quase mística, parece aproximar o que se apresenta
inacessível: ao terminar de assistir à
sessão de Maria Candelária no Espaço
Cultural dos Correios, um senhor de aproximadamente
70 anos levantou-se, pôs as mãos na cintura
e com um enorme sorriso no rosto exclamou: "Que bom
rever Dolores Del Rio. Fazia tempo que ela não
aparecia por aqui".
Maurício de Bragança
1. Edgar Morin, As estrelas – mito
e sedução no cinema. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989. pp 77.
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