A mostra competitiva do Cinesul tem entre seus objetivos
principais o de esboçar um breve porém
amplo panorama do que é produzido recentemente
na América-Latina. Afrontando as limitações
de tempo e espaço que todo festival pretende
vencer, a mostra almeja em duas semanas exibir um significativo
apanhado do audiovisual latino-americano selecionando
filmes que incluam o maior número de países
representantes. Este ano, dos sete países participantes,
apenas dois países contaram com mais de um título:
Argentina e México. O México continua
sendo um dos três maiores produtores e uma das
cinematografias de maior prestigio internacional da
América Latina. A Argentina, além de ter
sido o maior produtor cinematográfico do continente
no ano de 2003, está conseguindo através
do acordo estabelecido entre a Ancine (Agência
Nacional de Cinema) e o Incaa (Instituto Nacional de
Cine y Artes Audiovisuales), ter uma maior visibilidade
no país. Nesse exato momento há quatro
filmes argentinos em cartaz: Lugares Comuns, El Bonaerense,
Histórias mínimas e La cienaga,
algo completamente inédito.
Ao falar do cinema realizado na América-Latina
nos anos 90 e comparando-o com o cinema produzido na
década de 60 (esse grande e invencível
estigma), Jorge Rufineli afirmou que a repulsa ao personagem
coletivo e a aproximação com o individuo
é o maior diferencial dessa produção.
A principal característica desses filmes pós-2000
seria então a exacerbação dessa
premissa? Mesmo que isso possa ser verificado em boa
parte da cinematografia latino-americana, não
impede que uma série de filmes recentes venha
tentando reatar com um certo tipo de questionamento
da realidade político-social dos países
em que essas obras são produzidas.
Um dos caminhos que levaram à amplificação
do protagonista foi uma maior atenção
dada ao cinema de gênero, notadamente a comédia.
No entanto, só um olhar apressado pelo cinema
cubano dos anos 90 – para tomar apenas um exemplo –
nos daria a impressão de que o comprometimento
característico de seu cinema das décadas
antecessoras teria sido posto em segundo plano. Assim,
fica demasiadamente complicado analisar o cinema latino-americano
de hoje utilizando unicamente os anos 60 como parâmetro.
Uma série de conceitos precisariam ser reformulados,
um considerável número de definições
precisariam ser postas em cheque. O que é fazer
um cinema comprometido? Como se deve fazer falar e resignificar
o seu país através do cinema? Será
que o simples fato de um realizador direcionar a objetiva
de sua câmera para isso que definimos de "realidade"
já seria suficiente para o seu cinema ser classificado
de político ou localista? E porque não
considerá-lo dessa forma se de uma maneira ou
de outra, ele consegue expor e esmiuçar os principais
problemas de seu país?
Entre os filmes apresentados, cinco nos proporcionam
uma especial atenção em virtude da conexão
estabelecida entre a obra e o momento em que ela foi
gerada. Pyme (dir. Alejandro Malowicki, Argentina,
2003) indiscutivelmente o mais interessante filme argentino
da mostra, pinta a crise argentina dos anos 90 através
do dilema de um industrial falido. Filmado praticamente
todo em interiores, apresenta como locação
única as mediações da fábrica:
o escritório do patrão, a recepção
e a linha de montagem. O espaço possui um papel
dramático fundamental ao ressaltar a atmosfera
asfixiante e altamente claustrofóbica que perdura
do inicio ao fim. Vale frisar o excelente desempenho
da edição de som para além de manter
em suspenso o clima de agonia através de seus
ruídos e timbres, nos fazendo pensar no exterior,
no extra-campo, no que a imagem não nos mostra.
A dicotomia fábrica/exterior nos indica que a
Argentina daquele período está toda ali,
concentrada no espaço desesperante e caótico
dessa especifica e comum fábrica.
Amor en Concreto (dir. Franco de Peña,
Venezuela, 2003) procura falar da possibilidade da existência
de sentimentos aparentemente esquecidos pelo mundo moderno
como o amor em uma cidade como Caracas. O amor na atual
Venezuela seria possível? Traçando um
painel da metrópole por meio de variados personagens,
cada um pertencendo a diferentes classes sociais (o
casal rico, o casal pobre, o adolescente classe-média,
o travesti, o taxista) sem, no entanto, estabelecer
a estrutura característica do filme-painel, o
filme perde seu ritmo e é obrigado a adotar resoluções
forçadas. O mundo exterior – o que acontece fora
das crises existenciais de cada personagem – emerge
em suas vidas através dos meios de comunicação.
É apenas assim que os personagens escutam o que
acontece no país e no mundo, sem exatamente prestar
a atenção. A alienação e
o desinteresse dessas pessoas encontra ressonância
com a desorientação dos militares dirigindo
um tanque de guerra em plena avenida. Perdidos, os soldados
perguntam para que lado fica o Palácio presidencial
e um transeunte, depois de responder, diz para um amigo
ao lado: "Essa não, mais um golpe de Estado!".
A instabilidade do governo Chavez, a indecisão
da oposição, o perfil de uma elite decadente
são esboçados de uma maneira tão
direta que transcende o mero aspecto de pano de fundo
político inserido em um filme sobre o amor.
Além de Pyme e Amor en concreto,
outros três filmes completam os cinco títulos
"políticos" da mostra. São eles:
Paloma de papel (dir. Fabrizio Aguilar, Peru,
2003), Marasmo (dir. Mauricio Mendiola, Costa
Rica, 2003) e La primera noche (dir. Luis Alberto
Restrepo, Colombia, 2003). Todos os três abordam
o tema da tragédia do terrorismo na América-Latina.
Marasmo, apesar de ser uma produção
costarriquenha, se ambienta na Colômbia dos dias
atuais e se detêm, como La primera noche,
na questão da guerrilha.
Comecemos por Marasmo. Nele, a Colômbia
é vista como um beco sem saída: não
há aparentemente nenhuma solução
para esse terrível e eterno problema. Todos são
vítimas e algozes de um mesmo sistema complexo
e irracional. Nesse sistema não há espaço
para maniqueísmos. Guerrilheiros, traficantes
e paramilitares são diferentes substancias de
um mesmo veneno injetado na corrente sanguínea
da sociedade colombiana. O personagem do paramilitar
Ismael, que aparentemente seria o herói da trama
e o responsável por instaurar a ordem e castigar
os vilões, é assassinado por eles na seqüência
principal da parte final. O personagem do Comandante
Ernecito (esse nome não é mera coincidência),
em suas primeiras aparições, é
dramaticamente esquemático ao expelir falas claramente
escritas por um autor e não por um personagem
de carne e osso. Suas frases são de um didatismo
constrangedor; seu discurso, primário. Se o guerrilheiro
idealista/intelectual é pintado de maneira superficial
a ponto de se aproximar involuntariamente da caricatura,
o guerrilheiro marginal/apolítico não
é retratado de outra forma. Lupércio é
um guerrilheiro despido de ideologia que direciona sua
agressividade e revolta para todos os lados. Sem utopias
e sem objetivo concreto para realizar, ele encontra
nos motivos mais banais a motivação para
sua fúria. Não é para menos que
a razão de sua divergência às regras
do Comandante Ernecito não nasce de ordens políticas,
e sim fisiológicas: o racionamento de alimentos
do acampamento o impede de saciar sua fome. Mas Lupércio
tem fome de quê? O personagem é tão
raso que parece ter sido criado unicamente para dar
corpo e expressão à uma frase constantemente
repetida ao longo do filme: "a guerrilha já virou
banditismo". Constatação em outro momento
reiterada através de uma fala do próprio
Ernecito, suposto remanescente da corrente que não
saqueia e nem trafica, mas que em seqüência
posterior acaba aderindo a essa prática.
La primera noche aproxima o olhar de dois personagens
que estão vivenciando uma situação
compartilhada por muitos colombianos. Residindo em uma
zona de conflito entre paramilitares e guerrilheiros,
um casal é desalojado de seu lar, ficando de
um dia para o outro sem ter onde morar. Alternando por
meio de uma montagem paralela, o filme narra a experiência
desse casal em sua primeira noite nas ruas de Bogotá
com a história que deu origem à presente
situação. As informações
são adicionadas gradualmente e aos poucos sabemos
que aquele homem, Toño, não é marido
daquela mulher, Paulina, e tampouco pai de seus filhos.
Partindo de uma história particular e íntima
– um triangulo amoroso protagonizado por dois irmãos,
um guerrilheiro e o outro soldado – Restrepo se despe
de uma pretensão totalizante ao optar por não
enfocar cada camada do conflito. O seu enfoque prioritário
é o relacionamento afetivo do casal e como os
rumos dessa história repleta de frustrações
e rancores tomaram direções abruptas devido
aos acontecimentos do país. É uma história
de amor encenada num palco em que não é
possível haver histórias de amor. O final,
igualmente belo e sombrio, permanece em aberto com Toño
agonizando esfaqueado e Paulina segurando seus filhos
nos braços. Será que um dia outras histórias
apresentando outros desfechos poderão ser montadas
nesse cenário?
A resolução de La primera noche
choca-se com a de Marasmo. Se a primeira possui
um final assumidamente pessimista, sem qualquer fagulha
de esperança ou um mínimo sinal de luz
a ser vislumbrado, a segunda, através de sua
última seqüência, nos indica que nem
tudo está perdido. Luz Angélica, a adolescente
estuprada pelos guerrilheiros, dá à luz
uma criança, símbolo do renascimento de
uma nova Colômbia que está por vir. Porém,
se observarmos o quadro pintado pela obra independente
de seu desfecho, podemos imaginar algum futuro iluminado
para essa criança? Se for menino, será
assassinado; se for menina, será estuprada. O
filme não esboça alternativa.
Outro futuro que não pôde ser modificado
foi o do menino Juan de Paloma de papel. Seqüestrado
pelos Senderistas aos 12 anos de idade para ser doutrinado
e treinado pela organização, sua vida
– e a vida de seu povoado – é completamente transformada.
O filme ressalta a cruel desproteção sofrida
pelas populações camponesas do sul peruano
por estarem próximas aos territórios ocupados
pelo Sendero Luminoso. Diferentemente de seu antecessor
La boca del lobo (Francisco Lombardi, Peru, 1985),
o conflito não é visto pelo ponto de vista
do exército, para o qual o Sendero é uma
força invisível que nunca mostra sua face.
Aqui, os acontecimentos são filtrados pelo olhar
de uma criança que é brutalmente forçada
a sair de seu cotidiano e a enfrentar outro completamente
diferente. O filme não procura indicar culpados,
preferindo fugir do maniqueísmo através
da simples exposição de uma tragédia
que assolou o seu país durante vinte anos. O
ideal do grupo não perde uma conotação
de pureza mesclada com uma certa ingenuidade. A pureza
reside no fato de seus objetivos serem completamente
utópicos e a ingenuidade no fato de acreditarem
em uma doutrina mostrada como ultrapassada e dificilmente
aplicável na realidade peruana. O mais interessante,
sobretudo, é a crise de identidade experimentada
pelo garoto quando ele retorna ao seu lugarejo. Ele
agora é considerado um traidor pelos Senderistas
e um espião dos terroristas pelos habitantes
da aldeia. Seu dilema se assemelha ao de Sebastian Mamani
em La nacion clandestina (Jorge Sanjinés,
Bolívia, 1989) que, rejeitado pelos brancos por
ser índio e rejeitado pelos seus por tê-los
abandonado, encontra na dança da morte a sua
solução. Diferentemente de Mamani, Juan
não precisou executar nenhuma dança-ritual,
apenas teve que passar anos em uma instituição
correcional por algo que não teve culpa.
Paloma de papel entrou em cartaz no Peru em setembro
de 2003, mesmo mês em que a Comisón
de la Verdad anunciou que entre 1980 e 2000 morreram
69.000 cidadãos peruanos, vítimas do terrorismo
e das forças militares peruanas. Em 2001, ano
de sua produção, foram libertados presos
condenados por terrorismo injustamente. O material de
todos esses cinco filmes mencionados beberam da realidade
político-social de seus respectivos países.
São filmes que, por mais que apresentem alguns
defeitos estilísticos ou que sejam descompassados
em termos estéticos, são obras do presente
feitas para o presente. São filmes de agora,
que reflexionam sobre agora e que aspiram alguma mudança
agora.
É isso o que precisamos. Por agora.
Estevão Garcia
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