AGORA, O CINEMA LATINO-AMERICANO
Sobre os filmes políticos do Cinesul 2004

A mostra competitiva do Cinesul tem entre seus objetivos principais o de esboçar um breve porém amplo panorama do que é produzido recentemente na América-Latina. Afrontando as limitações de tempo e espaço que todo festival pretende vencer, a mostra almeja em duas semanas exibir um significativo apanhado do audiovisual latino-americano selecionando filmes que incluam o maior número de países representantes. Este ano, dos sete países participantes, apenas dois países contaram com mais de um título: Argentina e México. O México continua sendo um dos três maiores produtores e uma das cinematografias de maior prestigio internacional da América Latina. A Argentina, além de ter sido o maior produtor cinematográfico do continente no ano de 2003, está conseguindo através do acordo estabelecido entre a Ancine (Agência Nacional de Cinema) e o Incaa (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales), ter uma maior visibilidade no país. Nesse exato momento há quatro filmes argentinos em cartaz: Lugares Comuns, El Bonaerense, Histórias mínimas e La cienaga, algo completamente inédito.

Ao falar do cinema realizado na América-Latina nos anos 90 e comparando-o com o cinema produzido na década de 60 (esse grande e invencível estigma), Jorge Rufineli afirmou que a repulsa ao personagem coletivo e a aproximação com o individuo é o maior diferencial dessa produção. A principal característica desses filmes pós-2000 seria então a exacerbação dessa premissa? Mesmo que isso possa ser verificado em boa parte da cinematografia latino-americana, não impede que uma série de filmes recentes venha tentando reatar com um certo tipo de questionamento da realidade político-social dos países em que essas obras são produzidas.

Um dos caminhos que levaram à amplificação do protagonista foi uma maior atenção dada ao cinema de gênero, notadamente a comédia. No entanto, só um olhar apressado pelo cinema cubano dos anos 90 – para tomar apenas um exemplo – nos daria a impressão de que o comprometimento característico de seu cinema das décadas antecessoras teria sido posto em segundo plano. Assim, fica demasiadamente complicado analisar o cinema latino-americano de hoje utilizando unicamente os anos 60 como parâmetro. Uma série de conceitos precisariam ser reformulados, um considerável número de definições precisariam ser postas em cheque. O que é fazer um cinema comprometido? Como se deve fazer falar e resignificar o seu país através do cinema? Será que o simples fato de um realizador direcionar a objetiva de sua câmera para isso que definimos de "realidade" já seria suficiente para o seu cinema ser classificado de político ou localista? E porque não considerá-lo dessa forma se de uma maneira ou de outra, ele consegue expor e esmiuçar os principais problemas de seu país?

Entre os filmes apresentados, cinco nos proporcionam uma especial atenção em virtude da conexão estabelecida entre a obra e o momento em que ela foi gerada. Pyme (dir. Alejandro Malowicki, Argentina, 2003) indiscutivelmente o mais interessante filme argentino da mostra, pinta a crise argentina dos anos 90 através do dilema de um industrial falido. Filmado praticamente todo em interiores, apresenta como locação única as mediações da fábrica: o escritório do patrão, a recepção e a linha de montagem. O espaço possui um papel dramático fundamental ao ressaltar a atmosfera asfixiante e altamente claustrofóbica que perdura do inicio ao fim. Vale frisar o excelente desempenho da edição de som para além de manter em suspenso o clima de agonia através de seus ruídos e timbres, nos fazendo pensar no exterior, no extra-campo, no que a imagem não nos mostra. A dicotomia fábrica/exterior nos indica que a Argentina daquele período está toda ali, concentrada no espaço desesperante e caótico dessa especifica e comum fábrica.

Amor en Concreto (dir. Franco de Peña, Venezuela, 2003) procura falar da possibilidade da existência de sentimentos aparentemente esquecidos pelo mundo moderno como o amor em uma cidade como Caracas. O amor na atual Venezuela seria possível? Traçando um painel da metrópole por meio de variados personagens, cada um pertencendo a diferentes classes sociais (o casal rico, o casal pobre, o adolescente classe-média, o travesti, o taxista) sem, no entanto, estabelecer a estrutura característica do filme-painel, o filme perde seu ritmo e é obrigado a adotar resoluções forçadas. O mundo exterior – o que acontece fora das crises existenciais de cada personagem – emerge em suas vidas através dos meios de comunicação. É apenas assim que os personagens escutam o que acontece no país e no mundo, sem exatamente prestar a atenção. A alienação e o desinteresse dessas pessoas encontra ressonância com a desorientação dos militares dirigindo um tanque de guerra em plena avenida. Perdidos, os soldados perguntam para que lado fica o Palácio presidencial e um transeunte, depois de responder, diz para um amigo ao lado: "Essa não, mais um golpe de Estado!". A instabilidade do governo Chavez, a indecisão da oposição, o perfil de uma elite decadente são esboçados de uma maneira tão direta que transcende o mero aspecto de pano de fundo político inserido em um filme sobre o amor.

Além de Pyme e Amor en concreto, outros três filmes completam os cinco títulos "políticos" da mostra. São eles: Paloma de papel (dir. Fabrizio Aguilar, Peru, 2003), Marasmo (dir. Mauricio Mendiola, Costa Rica, 2003) e La primera noche (dir. Luis Alberto Restrepo, Colombia, 2003). Todos os três abordam o tema da tragédia do terrorismo na América-Latina. Marasmo, apesar de ser uma produção costarriquenha, se ambienta na Colômbia dos dias atuais e se detêm, como La primera noche, na questão da guerrilha.

Comecemos por Marasmo. Nele, a Colômbia é vista como um beco sem saída: não há aparentemente nenhuma solução para esse terrível e eterno problema. Todos são vítimas e algozes de um mesmo sistema complexo e irracional. Nesse sistema não há espaço para maniqueísmos. Guerrilheiros, traficantes e paramilitares são diferentes substancias de um mesmo veneno injetado na corrente sanguínea da sociedade colombiana. O personagem do paramilitar Ismael, que aparentemente seria o herói da trama e o responsável por instaurar a ordem e castigar os vilões, é assassinado por eles na seqüência principal da parte final. O personagem do Comandante Ernecito (esse nome não é mera coincidência), em suas primeiras aparições, é dramaticamente esquemático ao expelir falas claramente escritas por um autor e não por um personagem de carne e osso. Suas frases são de um didatismo constrangedor; seu discurso, primário. Se o guerrilheiro idealista/intelectual é pintado de maneira superficial a ponto de se aproximar involuntariamente da caricatura, o guerrilheiro marginal/apolítico não é retratado de outra forma. Lupércio é um guerrilheiro despido de ideologia que direciona sua agressividade e revolta para todos os lados. Sem utopias e sem objetivo concreto para realizar, ele encontra nos motivos mais banais a motivação para sua fúria. Não é para menos que a razão de sua divergência às regras do Comandante Ernecito não nasce de ordens políticas, e sim fisiológicas: o racionamento de alimentos do acampamento o impede de saciar sua fome. Mas Lupércio tem fome de quê? O personagem é tão raso que parece ter sido criado unicamente para dar corpo e expressão à uma frase constantemente repetida ao longo do filme: "a guerrilha já virou banditismo". Constatação em outro momento reiterada através de uma fala do próprio Ernecito, suposto remanescente da corrente que não saqueia e nem trafica, mas que em seqüência posterior acaba aderindo a essa prática.

La primera noche aproxima o olhar de dois personagens que estão vivenciando uma situação compartilhada por muitos colombianos. Residindo em uma zona de conflito entre paramilitares e guerrilheiros, um casal é desalojado de seu lar, ficando de um dia para o outro sem ter onde morar. Alternando por meio de uma montagem paralela, o filme narra a experiência desse casal em sua primeira noite nas ruas de Bogotá com a história que deu origem à presente situação. As informações são adicionadas gradualmente e aos poucos sabemos que aquele homem, Toño, não é marido daquela mulher, Paulina, e tampouco pai de seus filhos. Partindo de uma história particular e íntima – um triangulo amoroso protagonizado por dois irmãos, um guerrilheiro e o outro soldado – Restrepo se despe de uma pretensão totalizante ao optar por não enfocar cada camada do conflito. O seu enfoque prioritário é o relacionamento afetivo do casal e como os rumos dessa história repleta de frustrações e rancores tomaram direções abruptas devido aos acontecimentos do país. É uma história de amor encenada num palco em que não é possível haver histórias de amor. O final, igualmente belo e sombrio, permanece em aberto com Toño agonizando esfaqueado e Paulina segurando seus filhos nos braços. Será que um dia outras histórias apresentando outros desfechos poderão ser montadas nesse cenário?

A resolução de La primera noche choca-se com a de Marasmo. Se a primeira possui um final assumidamente pessimista, sem qualquer fagulha de esperança ou um mínimo sinal de luz a ser vislumbrado, a segunda, através de sua última seqüência, nos indica que nem tudo está perdido. Luz Angélica, a adolescente estuprada pelos guerrilheiros, dá à luz uma criança, símbolo do renascimento de uma nova Colômbia que está por vir. Porém, se observarmos o quadro pintado pela obra independente de seu desfecho, podemos imaginar algum futuro iluminado para essa criança? Se for menino, será assassinado; se for menina, será estuprada. O filme não esboça alternativa.

Outro futuro que não pôde ser modificado foi o do menino Juan de Paloma de papel. Seqüestrado pelos Senderistas aos 12 anos de idade para ser doutrinado e treinado pela organização, sua vida – e a vida de seu povoado – é completamente transformada. O filme ressalta a cruel desproteção sofrida pelas populações camponesas do sul peruano por estarem próximas aos territórios ocupados pelo Sendero Luminoso. Diferentemente de seu antecessor La boca del lobo (Francisco Lombardi, Peru, 1985), o conflito não é visto pelo ponto de vista do exército, para o qual o Sendero é uma força invisível que nunca mostra sua face. Aqui, os acontecimentos são filtrados pelo olhar de uma criança que é brutalmente forçada a sair de seu cotidiano e a enfrentar outro completamente diferente. O filme não procura indicar culpados, preferindo fugir do maniqueísmo através da simples exposição de uma tragédia que assolou o seu país durante vinte anos. O ideal do grupo não perde uma conotação de pureza mesclada com uma certa ingenuidade. A pureza reside no fato de seus objetivos serem completamente utópicos e a ingenuidade no fato de acreditarem em uma doutrina mostrada como ultrapassada e dificilmente aplicável na realidade peruana. O mais interessante, sobretudo, é a crise de identidade experimentada pelo garoto quando ele retorna ao seu lugarejo. Ele agora é considerado um traidor pelos Senderistas e um espião dos terroristas pelos habitantes da aldeia. Seu dilema se assemelha ao de Sebastian Mamani em La nacion clandestina (Jorge Sanjinés, Bolívia, 1989) que, rejeitado pelos brancos por ser índio e rejeitado pelos seus por tê-los abandonado, encontra na dança da morte a sua solução. Diferentemente de Mamani, Juan não precisou executar nenhuma dança-ritual, apenas teve que passar anos em uma instituição correcional por algo que não teve culpa.

Paloma de papel entrou em cartaz no Peru em setembro de 2003, mesmo mês em que a Comisón de la Verdad anunciou que entre 1980 e 2000 morreram 69.000 cidadãos peruanos, vítimas do terrorismo e das forças militares peruanas. Em 2001, ano de sua produção, foram libertados presos condenados por terrorismo injustamente. O material de todos esses cinco filmes mencionados beberam da realidade político-social de seus respectivos países. São filmes que, por mais que apresentem alguns defeitos estilísticos ou que sejam descompassados em termos estéticos, são obras do presente feitas para o presente. São filmes de agora, que reflexionam sobre agora e que aspiram alguma mudança agora.

É isso o que precisamos. Por agora.

Estevão Garcia