A sedução/renovação
da imagem
Quando nos vemos perdidos no meio de um sem-número
de filmes marcados por uma desesperada necessidade de
agradar, é sempre bom voltar ao cinema de João
César Monteiro. Aquele que certa vez, ao ser
perguntado sobre o público português, disse:
"Quero que o público português se foda".
A frase podia constar na lápide do cineasta,
já que poucas vezes no cinema encontramos uma
obra tão despreocupada em dourar a pílula
para o espectador. À Flor do Mar é,
observando sua obra em retrospectiva, uma grande provocação
para com os seus fãs. O mais próximo de
um filme de festival que ele nos deixou.
O assunto aqui é sedução. Sedução
das personagens pelo estranho que elas abrigam em sua
casa; do espectador pelas imagens produzidas pelo cineasta.
Monteiro, cineasta marcado por uma proposital deselegância,
parece se divertir muito aqui fazendo o oposto. Há
uma grande força poética nas suas imagens.
À Flor do Mar é para ele um imenso
exercício de liberdade (liberdade que é
afinal o grande tema/objetivo de seu cinema), em que
ele de certa forma se posiciona além de suas
obsessões temático-estéticas habituais.
O autor também precisa ser livre.
Trata-se do primeiro encontro de Monteiro com Portugal
contemporâneo, após alguns filmes dedicados
a um Portugal mítico. Não é, porém,
um encontro simples. Sua personagem central é
uma viúva italiana (Laura Morante) que recebe
a visita de um marinheiro americano (Philip Spinelli,
que antes co-dirigira um filme com Robert Kramer). No
filme fala-se de tudo: inglês, italiano, francês,
português. Para chegar em seu Portugal, Monteiro
precisa passar pelo estrangeiro. Novamente aqui vemos
como À Flor do Mar é um filme de
definição, necessário para que
o cineasta alcance a sua fase "madura". Para que sua
radiografia de Portugal e o questionamento de "o que
é ser português" começada em Recordações
da Casa Amarela possa suceder aquela do Portugal
mítico original de Veredas/Silvestre,
precisaria haver o choque/transição que
é À Flor do Mar (choque este reforçado
pela figura do marinheiro que de certa forma parece
sair do universo dos primeiros filmes se impondo no
espaço deste Portugal moderno).
Monteiro sempre fora fascinado por Pasolini (algo que
Veredas deixa claro), À Flor do Mar
é o seu Teorema, só que numa versão
mais positiva e poética. O discípulo aqui
supera de longe o mestre. O marinheiro é menos
anjo exterminador do que anjo renovador. Este personagem
essencialmente cinematográfico – um pirata anarquista
– acrescentara vida ao espaço; Monteiro, por
sinal, faz um trabalho notável com a casa que
serve de locação central. O filme se apresenta
como uma dança, o corsário lentamente
seduzindo uma a uma das habitantes da casa. Monteiro
investe nos seus atores (todos ótimos), nas suas
trocas de olhares. Olhares discretos, jogos de ditos
e não-ditos (a força da palavra se apresenta
aqui muito mais na babel de línguas que é
a casa do que nos diálogos habituais do cineasta).
O marinheiro traz uma renovação da imagem
do cinema de Monteiro. O cineasta afirma sua independência
(em relação as suas obsessões,
aos seus espectadores, as suas influências). Mergulha
no cinema dentro do que ele, o cinema, tem de mais sedutor
e poético. À Flor do Mar é
antes de tudo um exercício de afirmação
de liberdade dentro da própria obra.
Filipe Furtado
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