O ADVERSÁRIO
Nicole Garcia, L'adversaire, França, 2002

É sempre complicado analisar um filme que possua uma relação muito direta com um outro trabalho já produzido antes dele - como uma continuação, uma refilmagem, etc. Uma vez que se tratem de manifestações artísticas distintas, de fato é algo injusto partir de uma outra obra para entrar no mérito de uma segunda (no caso deste O Adversário, a relação é com um filme que utilizou o mesmo "fait divers" como base para sua narrativa - A Agenda, de Laurent Cantet). Mas, especialmente neste caso, de fato é impossível ignorar a existência pregressa deste outro filme - inclusive porque, por um completo acaso, fui eu mesmo quem criticou aqui na Contracampo o filme anterior.

Digo que é impossível por um motivo simples: na crítica ao filme de Cantet eu destacava que o ponto principal de atração daquele belo trabalho era justamente o fato dele nos colocar ao lado de seu protagonista sem nenhuma mediação prévia - nos puxar o tapete de segurança que nos faz tentar entender aonde estamos numa narrativa, desde o seu princípio, possuir chaves de entendimentos sobre os personagens e seu lugar no mundo. É tudo que Nicole Garcia não faz na sua adaptação da mesma história para o cinema, pois antes mesmo do primeiro plano aparecer na tela ela nos impõe uma cartela explicativa que (sem qualquer outra função dramática razoável) já coloca uma marca no personagem de Jean-Marc Faure, tal e qual a exemplar "letra escarlate" do romance homônimo: trata-se de um mentiroso que enganou sua família. Esta, portanto, é a posição de saída do filme e do espectador: vejamos este mentiroso (isso na leitura mais agradável, porque pode-se dizer que o filme funcione mesmo é como um "cautionary tale", ou seja: "cuidado, isso pode acontecer com você - você acha mesmo que conhece as pessoas à sua volta?").

Tudo que vem depois é decorrência deste crédito inicial: Garcia se dispõe a fazer, então, uma reconstituição - onde o uso desta palavra é importante sim, porque, se tiramos o estofo "artístico", tudo remete mesmo às encenações de um Linha Direta da vida, se retirado do contexto industrial onde este é feito. E estes são os universos distintos que interessaram a Garcia e Cantet a partir de uma mesma história (e de fato olhar os dois filmes em conjunto é exercício quase exemplar de como se pode partir da mesma base para buscar e atingir resultados tão distintos): a ela interessa diagnosticar desde cedo este personagem como um "problema" e buscar solucionar o mistério de quem ele seja, enquanto para Cantet o que interessava era nos colocar ao lado deste personagem, partilhar sua angústia, sua confusão perante o mundo. Garcia psicologiza (poderia-se dizer que quase psicanaliza), enquanto Cantet tentava somente mostrar. O máximo de "humanidade" que ela dá ao seu personagem é tentar causar pena, piedade do espectador - o que é mais próximo do ódio (oposto complementar) do que da real empatia, que era o que Cantet conseguia.

Nesta operação distinta, o que se observa é que Garcia coloca o espectador distante deste homem, uma vez que sempre o vemos como um patológico, um problemático. Ele, então, passa a ser "outro" (daí a comparação com as reconstituições à la Linha Direta, que sempre lidam com "outros"). Já no filme de Cantet, ao não nos fazer enxergar o personagem sob um prisma tão fechado, o protagonista podia se confundir com nós mesmos, os espectadores - e seus atos ressoavam muito mais fundo, então. É interessante observar alguns dos usos de linguagem da diretora neste sentido - como a trilha sonora de Angelo Badalamenti, que, por sua conexão habitual com o cinema de David Lynch, parece nos jogar sempre num ambiente de "estranheza", o que implica em mais uma leitura distanciada do espectador sobre este personagem; ou como os cortes rápidos dentro de sequências no início do filme, que tiram mais uma vez o naturalismo de uma encenação, nos distanciando dela. Mas, talvez a mais radical opção seja a de narrar a história num flashback onde já vemos o personagem completamente fora de si, e ouvimos ainda depoimentos de outros personagens à justiça (um golpe especialmente tosco de roteiro). Aprisionado no "passado", o personagem está condenado desde o início - em Cantet ele evoluía junto conosco.

É inegável que Garcia filma elegantemente, usa ótimos atores, e consegue algumas sequências de trabalho interessante de ritmo interno e afins. Talvez seu filme passasse até desapercebido como um filme agradável em outras circunstâncias - mas não quando vimos Cantet pegar esta tragédia pessoal e conseguir dar a ela a dimensão social e de empatia que ele atingiu com A Agenda. Aí, O Adversário fica pequenininho, quase juvenil, em sua simplória autópsia de um crime.

Eduardo Valente