O que há de tão
especial em Stalker, muito provavelmente o melhor
filme de Tarkovski? Adianto desde já que não
se trata do vasto leque de interpretações
aberto a partir dele: ao contrário do que se
pode pensar, Stalker não é um filme
cerebróide, hermético, que segue a linha
da "ficção-científica para
iniciados" e faz disso seu objetivo. É antes
um filme que pode ser visto abstraindo-se toda sua carga
de significação mais complexa (que lá
está de forma latente) e atendo-se tão-somente
aos seus aspectos mais básicos. Melhor ainda:
é um filme para se apreciar não pelo que
ele sugere, mas pelo que ele mostra: as expressões
faciais de Stalker devem ser vistas como movimentos
do rosto. Se Tarkovski aqui insiste em filmar seus atores
em primeiro plano – muitas vezes um rosto que surge
inesperadamente do extra-campo – é porque essa
expressão, que não é mais que uma
expressão, contém uma substância
importantíssima e de que o filme se alimentará
a todo segundo. Cada vinco, cada cicatriz facial em
Stalker aparece como um traço físico
de raríssima força; uma concepção
escultural da imagem cinematográfica, menos um
acontecimento da luz do que um esgarçamento das
trevas (como diria Artur Omar). Tarkovski não
precisa construir através de falas (apesar delas
existirem, e não em pequeno número) ou
situações o que seu filme já expõe
através de rostos, deslocamentos e paisagens.
O filme gira em torno de uma idéia central perfeitamente
bem acabada. Mas qual seria essa idéia? A busca
da fé, a reconciliação com um imaginário
fundador, a odisséia de cura dos medos e desinquietação
das pulsões? (Nas grandes obras de arte, é
comum perdermos de vista a idéia central, que,
de tão coesa, atua até mesmo invisivelmente.)
A atmosfera peculiar de Stalker emerge como resposta
do meio-ambiente ao filme. Os corpos, os objetos, as
paisagens, o vento, a neve, tudo no filme responde a
essa idéia que não sabemos exatamente
o que representa, que não mostra sua face definitiva
(ainda que o final entregue algumas de suas coordenadas),
mas que incrivelmente existe e é o que fornece
solo firme para o filme ser o que é: um estudo
cuidadoso sobre a movimentação de corpos
e a topografia de uma superfície (da imagem,
dos rostos, das paredes) para além de qualquer
noção prévia de profundidade. Em
Stalker, as aparências são o jogo
atraente da vastidão de superfície, algo
muito distinto da acepção pejorativa –
e mais usual – que as toma em oposição
a essência. A aparência é o que recobre
todas as coisas, é a pele do filme, mas também
sua medula (não custa lembrar que a origem embrionária
do sistema nervoso central é ectodérmica).
E por que ultrapassar a superfície, se quem olha
(dentro do filme e para o filme) não acredita
na profundidade? "Eles não têm fé!",
reclama o Stalker, personagem que será descrito
mais adiante.
Mas o que há em Stalker?, a pergunta permanece.
No excelente texto que Serge Daney escreveu na ocasião
do lançamento do filme, ele começa com
a definição de dicionário da palavra
título. "To stalk" é um verbo
inglês, que significa caminhar pé ante
pé, dar passos longos, marchar titubeando. É
o andar característico de quem invade um território
desconhecido, e pode significar também caçar
um animal ocultando-se atrás de outro. Uma forma
bastante peculiar de aproximação e de
perseguição – quase uma dança.
Com Stalker Tarkovski consagra sua aptidão,
já lindamente presente em O Espelho, para
filmar deslocamentos e conformações corporais.
Cada personagem tem sua marcha própria, sua envergadura
física, sua "presença orgânica".
Tudo é orgânico em Stalker, incluindo
a água, a terra, o vento, o fogo, tudo. A recorrência
dos quatro elementos na obra de Tarkovski, como bem
sabemos, tem muito mais uma função física
do que simbólica. A água possui uma aparição
constante em Stalker, o filme mais úmido
da história, e sua importância está
justamente na sua natureza, ou seja, em ser uma matéria
primitiva, um dos constituintes fundamentais e preponderantes
de tudo que existe no mundo, a começar pelos
homens. E não é só a imagem-miríade
da água (lago, poça, chuva, goteira),
é também seu som em diversas modalidades
(ora um barulho de cachoeira, ora um gotejar que ocupa
praticamente toda a banda sonora). Embora passe por
entre os dedos, a água tem um peso. Embora passem
perante nossos olhos e não voltem, as imagens
de Tarkovski têm um peso: a densidade não
só do tempo que elas materializam, mas também
do estranhamento que, mesmo terminado o filme, não
se esgota em nenhuma interpretação.
As locações são fábricas
desativadas, cemitérios de tanques de guerra,
ruínas as mais diversas – um fosso no centro
de um mundo pós-apocalíptico onde a fabulação
tem um papel tão relativizado quanto reprimido.
Os personagens principais são três homens
– o Escritor, o Professor e o Stalker – que partem para
uma jornada ao local proibido, à terra de ninguém,
a uma região assombrosa, lama em que borbulham
estranhos objetos de fantasia: a Zona. Um misterioso
acidente que deixou boa parte do planeta inabitável
deu origem à Zona, em cujo centro há uma
espécie de caverna que, conforme dizem, preenche
os desejos mais recônditos de quem ali penetra
(sim, Solaris era apenas um aquecimento para
este filme). Talvez por isso, por temerem o potencial
dessa realização tão profunda (por
temerem o inconsciente?), as autoridades proíbam
a entrada de qualquer pessoa, o que justifica aquela
cena de ação do início, quando
o Stalker conduz de forma até familiar o Escritor
e o Professor para dentro da Zona, desviando dos tiros
de alguma força militar oficial. O Stalker faz
um trabalho de guia turístico conduzindo os outros
dois ao longo da Zona. Turismo macabro, sem dúvida.
Mas a verdadeira motivação de sua ida
constante àquele lugar se explica numa cena das
mais bonitas: logo que eles chegam nas imediações
da Zona, o Stalker se atira ao chão e chafurda
o rosto no capim, como a absorver o vapor da terra,
se alimentar do húmus. Nesse momento, vem à
mente uma parábola contada no filme seguinte
de Andrei Tarkovski, Nostalgia. A parábola
consiste num homem que vê outro se afogando num
lamaçal e vai a seu resgate. Quando chegam à
margem e o herói pergunta ao outro homem se está
tudo bem, este último responde injuriado: "Seu
tolo, é lá que eu moro". Do mesmo
modo, a mulher do Stalker dá um ataque histérico
no começo do filme, tentando impedi-lo de ir
à Zona, mas o que ela não percebe (na
verdade, finge não perceber) é que ele
pertence àquele limbo. O Stalker é o tecido
de transição entre o Escritor (com sua
garrafa de vodka embrulhada numa sacolinha plástica)
e o Professor (com sua mochila de suprimentos e artefatos
secretos).
Não é nenhum absurdo comparar Stalker
a Conta Comigo (Stand by Me), de Rob Reiner.
Filmes de tonalidades e objetivos absolutamente diferentes,
ambos mostram uma viagem que guarda semelhanças:
seguir a linha do trem, fugir da repressão, buscar
o desconhecido, flertar com o proibido, deparar-se com
um cadáver (cena igualmente marcante nos dois
filmes), construir um imaginário que permeia
a viagem (o personagem narrador de Conta Comigo
é um escritor). Enquanto o filme de Reiner narra
a jornada iniciática de um grupo de adolescentes,
a perda da inocência, sem abrir mão da
mais sincera nostalgia, Stalker apanha um grupo
de adultos totalmente desiludidos indo em busca de uma
tentativa de redescoberta (da criatividade, do mistério,
da paz de espírito, da fé). Um é
o reverso do outro: de um lado o processo transformador
na sua estrutura mais clássica e romantizada,
do outro o passeio misterioso e hesitante; de um lado
crianças que discutem e brigam para depois fazer
as pazes e reforçar a amizade, do outro homens
que discutem e brigam como se fossem bêbados decadentes
em fim de noite; de um lado o tempo efêmero da
adolescência, do outro a duração
dilatada pela angústia adulta. O silêncio
da volta em Conta Comigo, quando os quatro meninos
estão por demais submersos num misto de plenitude
e vazio de pensamento para conseguir conversar entre
si, espelha-se na supressão radical do caminho
de volta em Stalker, que catapulta seus personagens
diretamente ao bar onde se encontraram no início
do filme. Apesar da clássica seqüência
do campeonato de tortas com o Bola de Sebo não
possuir paralelo possível em Tarkovski, Stalker
não abdica de um certo humor diretamente relacionado
ao patético e ao inusitado, como na cena, dentro
da Zona, em que um telefone antigo inesperadamente toca,
mostrando que ainda funciona, e o Professor atende e
conversa com a pessoa que ligou – um ingrediente à
Buñuel, cineasta que Tarkovski muito admirava.
O que dizer então de Stalker? O óbvio:
que a beleza de suas imagens é estonteante, que
seus atores principais (Anatoli Solonitsin, Nikolai
Grimko e Alexander Kaidanovski) estão brilhantes,
que a mise-en-scène é um espetáculo
tanto do binômio revelação/ocultação
(como quando a câmera sai de um personagem apenas
para reencontrá-lo mais adiante, após
ele se deslocar fora-de-quadro) quanto da prestidigitação
(o que é aquele plano-seqüência em
que a câmera se distancia dos três, atravessa
uma passagem retangular e depois uma enorme poça,
estaciona do outro lado, enquadrando-os numa "moldura
dentro da moldura", assiste ao início e
ao término da chuva, muda a iluminação,
enfim, o que é aquilo tudo?). E o que dizer do
plano final, quando a filha do Stalker move os copos
que estão em cima de uma mesa apenas com o olhar,
depois deita o rosto na madeira que estremece ao som
do trem que passa tocando a 9a Sinfonia de
Beethoven, um dos planos mais bonitos da história
do cinema? Não há nada o que dizer, no
fundo é tudo uma questão de ver e ouvir,
tanto para nós quanto para eles dentro do filme.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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