Stalker
Andrei Tarkovski, Stalker, URSS, 1979

O que há de tão especial em Stalker, muito provavelmente o melhor filme de Tarkovski? Adianto desde já que não se trata do vasto leque de interpretações aberto a partir dele: ao contrário do que se pode pensar, Stalker não é um filme cerebróide, hermético, que segue a linha da "ficção-científica para iniciados" e faz disso seu objetivo. É antes um filme que pode ser visto abstraindo-se toda sua carga de significação mais complexa (que lá está de forma latente) e atendo-se tão-somente aos seus aspectos mais básicos. Melhor ainda: é um filme para se apreciar não pelo que ele sugere, mas pelo que ele mostra: as expressões faciais de Stalker devem ser vistas como movimentos do rosto. Se Tarkovski aqui insiste em filmar seus atores em primeiro plano – muitas vezes um rosto que surge inesperadamente do extra-campo – é porque essa expressão, que não é mais que uma expressão, contém uma substância importantíssima e de que o filme se alimentará a todo segundo. Cada vinco, cada cicatriz facial em Stalker aparece como um traço físico de raríssima força; uma concepção escultural da imagem cinematográfica, menos um acontecimento da luz do que um esgarçamento das trevas (como diria Artur Omar). Tarkovski não precisa construir através de falas (apesar delas existirem, e não em pequeno número) ou situações o que seu filme já expõe através de rostos, deslocamentos e paisagens.

O filme gira em torno de uma idéia central perfeitamente bem acabada. Mas qual seria essa idéia? A busca da fé, a reconciliação com um imaginário fundador, a odisséia de cura dos medos e desinquietação das pulsões? (Nas grandes obras de arte, é comum perdermos de vista a idéia central, que, de tão coesa, atua até mesmo invisivelmente.) A atmosfera peculiar de Stalker emerge como resposta do meio-ambiente ao filme. Os corpos, os objetos, as paisagens, o vento, a neve, tudo no filme responde a essa idéia que não sabemos exatamente o que representa, que não mostra sua face definitiva (ainda que o final entregue algumas de suas coordenadas), mas que incrivelmente existe e é o que fornece solo firme para o filme ser o que é: um estudo cuidadoso sobre a movimentação de corpos e a topografia de uma superfície (da imagem, dos rostos, das paredes) para além de qualquer noção prévia de profundidade. Em Stalker, as aparências são o jogo atraente da vastidão de superfície, algo muito distinto da acepção pejorativa – e mais usual – que as toma em oposição a essência. A aparência é o que recobre todas as coisas, é a pele do filme, mas também sua medula (não custa lembrar que a origem embrionária do sistema nervoso central é ectodérmica). E por que ultrapassar a superfície, se quem olha (dentro do filme e para o filme) não acredita na profundidade? "Eles não têm fé!", reclama o Stalker, personagem que será descrito mais adiante.

Mas o que há em Stalker?, a pergunta permanece. No excelente texto que Serge Daney escreveu na ocasião do lançamento do filme, ele começa com a definição de dicionário da palavra título. "To stalk" é um verbo inglês, que significa caminhar pé ante pé, dar passos longos, marchar titubeando. É o andar característico de quem invade um território desconhecido, e pode significar também caçar um animal ocultando-se atrás de outro. Uma forma bastante peculiar de aproximação e de perseguição – quase uma dança. Com Stalker Tarkovski consagra sua aptidão, já lindamente presente em O Espelho, para filmar deslocamentos e conformações corporais. Cada personagem tem sua marcha própria, sua envergadura física, sua "presença orgânica". Tudo é orgânico em Stalker, incluindo a água, a terra, o vento, o fogo, tudo. A recorrência dos quatro elementos na obra de Tarkovski, como bem sabemos, tem muito mais uma função física do que simbólica. A água possui uma aparição constante em Stalker, o filme mais úmido da história, e sua importância está justamente na sua natureza, ou seja, em ser uma matéria primitiva, um dos constituintes fundamentais e preponderantes de tudo que existe no mundo, a começar pelos homens. E não é só a imagem-miríade da água (lago, poça, chuva, goteira), é também seu som em diversas modalidades (ora um barulho de cachoeira, ora um gotejar que ocupa praticamente toda a banda sonora). Embora passe por entre os dedos, a água tem um peso. Embora passem perante nossos olhos e não voltem, as imagens de Tarkovski têm um peso: a densidade não só do tempo que elas materializam, mas também do estranhamento que, mesmo terminado o filme, não se esgota em nenhuma interpretação.

As locações são fábricas desativadas, cemitérios de tanques de guerra, ruínas as mais diversas – um fosso no centro de um mundo pós-apocalíptico onde a fabulação tem um papel tão relativizado quanto reprimido. Os personagens principais são três homens – o Escritor, o Professor e o Stalker – que partem para uma jornada ao local proibido, à terra de ninguém, a uma região assombrosa, lama em que borbulham estranhos objetos de fantasia: a Zona. Um misterioso acidente que deixou boa parte do planeta inabitável deu origem à Zona, em cujo centro há uma espécie de caverna que, conforme dizem, preenche os desejos mais recônditos de quem ali penetra (sim, Solaris era apenas um aquecimento para este filme). Talvez por isso, por temerem o potencial dessa realização tão profunda (por temerem o inconsciente?), as autoridades proíbam a entrada de qualquer pessoa, o que justifica aquela cena de ação do início, quando o Stalker conduz de forma até familiar o Escritor e o Professor para dentro da Zona, desviando dos tiros de alguma força militar oficial. O Stalker faz um trabalho de guia turístico conduzindo os outros dois ao longo da Zona. Turismo macabro, sem dúvida. Mas a verdadeira motivação de sua ida constante àquele lugar se explica numa cena das mais bonitas: logo que eles chegam nas imediações da Zona, o Stalker se atira ao chão e chafurda o rosto no capim, como a absorver o vapor da terra, se alimentar do húmus. Nesse momento, vem à mente uma parábola contada no filme seguinte de Andrei Tarkovski, Nostalgia. A parábola consiste num homem que vê outro se afogando num lamaçal e vai a seu resgate. Quando chegam à margem e o herói pergunta ao outro homem se está tudo bem, este último responde injuriado: "Seu tolo, é lá que eu moro". Do mesmo modo, a mulher do Stalker dá um ataque histérico no começo do filme, tentando impedi-lo de ir à Zona, mas o que ela não percebe (na verdade, finge não perceber) é que ele pertence àquele limbo. O Stalker é o tecido de transição entre o Escritor (com sua garrafa de vodka embrulhada numa sacolinha plástica) e o Professor (com sua mochila de suprimentos e artefatos secretos).

Não é nenhum absurdo comparar Stalker a Conta Comigo (Stand by Me), de Rob Reiner. Filmes de tonalidades e objetivos absolutamente diferentes, ambos mostram uma viagem que guarda semelhanças: seguir a linha do trem, fugir da repressão, buscar o desconhecido, flertar com o proibido, deparar-se com um cadáver (cena igualmente marcante nos dois filmes), construir um imaginário que permeia a viagem (o personagem narrador de Conta Comigo é um escritor). Enquanto o filme de Reiner narra a jornada iniciática de um grupo de adolescentes, a perda da inocência, sem abrir mão da mais sincera nostalgia, Stalker apanha um grupo de adultos totalmente desiludidos indo em busca de uma tentativa de redescoberta (da criatividade, do mistério, da paz de espírito, da fé). Um é o reverso do outro: de um lado o processo transformador na sua estrutura mais clássica e romantizada, do outro o passeio misterioso e hesitante; de um lado crianças que discutem e brigam para depois fazer as pazes e reforçar a amizade, do outro homens que discutem e brigam como se fossem bêbados decadentes em fim de noite; de um lado o tempo efêmero da adolescência, do outro a duração dilatada pela angústia adulta. O silêncio da volta em Conta Comigo, quando os quatro meninos estão por demais submersos num misto de plenitude e vazio de pensamento para conseguir conversar entre si, espelha-se na supressão radical do caminho de volta em Stalker, que catapulta seus personagens diretamente ao bar onde se encontraram no início do filme. Apesar da clássica seqüência do campeonato de tortas com o Bola de Sebo não possuir paralelo possível em Tarkovski, Stalker não abdica de um certo humor diretamente relacionado ao patético e ao inusitado, como na cena, dentro da Zona, em que um telefone antigo inesperadamente toca, mostrando que ainda funciona, e o Professor atende e conversa com a pessoa que ligou – um ingrediente à Buñuel, cineasta que Tarkovski muito admirava.

O que dizer então de Stalker? O óbvio: que a beleza de suas imagens é estonteante, que seus atores principais (Anatoli Solonitsin, Nikolai Grimko e Alexander Kaidanovski) estão brilhantes, que a mise-en-scène é um espetáculo tanto do binômio revelação/ocultação (como quando a câmera sai de um personagem apenas para reencontrá-lo mais adiante, após ele se deslocar fora-de-quadro) quanto da prestidigitação (o que é aquele plano-seqüência em que a câmera se distancia dos três, atravessa uma passagem retangular e depois uma enorme poça, estaciona do outro lado, enquadrando-os numa "moldura dentro da moldura", assiste ao início e ao término da chuva, muda a iluminação, enfim, o que é aquilo tudo?). E o que dizer do plano final, quando a filha do Stalker move os copos que estão em cima de uma mesa apenas com o olhar, depois deita o rosto na madeira que estremece ao som do trem que passa tocando a 9a Sinfonia de Beethoven, um dos planos mais bonitos da história do cinema? Não há nada o que dizer, no fundo é tudo uma questão de ver e ouvir, tanto para nós quanto para eles dentro do filme.

Luiz Carlos Oliveira Jr.