O que acontece após o
inevitável final feliz dos contos-de-fadas? Segundo
Shrek 2, a busca pela adequação
ao modus operandi de uma sociedade marcada pela aparência
e pelo espetáculo, travestida de crítica
politicamente incorreta ao que, de fato, o filme trata
de exaltar.
O sucesso de bilheteria do primeiro Shrek, aliado
aos supostos comentários ácidos acerca
dos desenhos Disney (que devem seu retorno, nos anos
90, a Jeffrey Katzemberg, co-fundador da Dreamworks),
cegaram a crítica internacional e brasileira
à evidente visão conservadora e retrógrada
da animação de Andrew Adamson. Shrek,
o ogro verde, feio e mal-educado, condenado ao papel
de vilão coadjuvante nas fantasias de Walt Disney,
na verdade em nada se afasta do herói convencional
que, em teoria, ele renegaria, na medida em que se está
diante de um personagem essencialmente bom, dotado de
nobreza de espírito e de coração
puro. A moral da história, tanto em Shrek
quanto na Disney, fala que a beleza interior suplanta
– ou melhor, esconde – eventuais defeitos externos,
eliminando, em conseqüência, qualquer revolta
que possa nascer da tensão e da insatisfação
do protagonista com o mundo, pacificado, que o cerca.
Com Shrek 2, a construção do herói
idealizado torna-se ainda mais óbvia, uma vez
que a aceitação do ogro pelos pais de
Fiona, mote da trama, pressupõe necessariamente
o apagamento ou a negação do exterior
abjeto para dar visibilidade ao interior elevado. Nesse
sentido, Adamson distorce por completo o significado
do amor romântico: de acontecimento desestabilizador
da realidade organizada e hierarquizada, a paixão
impossível de Shrek pela princesa se transforma
na melhor forma de unificar o reino e de manter o status
quo e a paz social.
Assim, o local onde se desenrola a ação,
o reino muito muito distante que em tudo lembra Hollywood
(com suas estrelas enclausuradas em mansões,
com a festa do Oscar), serve para situar Shrek na dicotomia
entre essência e aparência, ao opor o amor
abnegado do herói às maquinações
da Fada Madrinha e do Príncipe Encantado, representantes
de uma indústria do espetáculo a qual
oferece aos pobres mortais fórmulas mágicas
(tais como as poções da Fada Madrinha)
que garantem satisfação imediata e ilusória
ao sonho de evasão da vida cotidiana em direção
à fama e à fortuna.
Shrek 2, no entanto, não questiona as
celebridades fabricadas pela mídia, ou a sociedade
de aparências, pois não somente retira
toda a força de ruptura que o amor ou a feiúra
do herói poderiam provocar, como também
se identifica com a espetacularização
que deveria criticar - e que Shrek, na tentativa
de se diferenciar da gramática estabelecida pela
Disney, bem ou mal ainda disfarçava. Desse modo,
no lugar da animação digital pobre e mesmo
tosca do original, tem-se a perfeição
técnica da continuação: verdadeiro
show hollywoodiano, que se cristaliza no excesso de
números musicais durante o filme, os quais, ao
contrário, eram sistematicamente recusados no
anterior.
Se Shrek 2 não nega o espetáculo,
mas dele se utiliza, então é justamente
quando assume tal característica que a obra de
Adamson diverte: depois que Shrek e o Burro são
embelezados pela poção da Fada Madrinha
(explicitando o projeto de anular o exterior em favor
do interior, ao trazer este para fora), o filme relega
as falsas ironias a segundo plano e se centra na correria
desenfreada, no humor grosseiro de duplo sentido, nas
paródias escancaradas da série de televisão
Cops e do filme Missão Impossível,
para ficar realmente engraçado.
A chave, portanto, para se apreciar Shrek 2 é
não enxergá-lo como oposição
ou mesmo comentário inteligente ao sistema que
o fez nascer, e sim enquanto produto similar a American
Pie, ou seja, descerebrado e esquecível.
Paulo Ricardo de Almeida
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