Palavras, palavras. Teatro insuficiente
das palavras. "Ninguém vai fazer nada?"
– pergunta a si mesmo o patriarca da família.
"Tudo será sempre igual, se fizermos tudo
sempre da mesma forma?" O Sacrifício
é o testamento de um cinema em busca de um ultrapassamento,
de um cinema em que a fissura da superfície aparece
como obsessão – de uma vida de imagens debruçadas
sobre a possibilidade da ruptura, da quebra, do estilhaçar
de um certo apaziguamento aparente das coisas. Em O
Sacrifício, a normalidade aparece na forma
marcada e gélida de uma família sueca
que se encontra para comemorar o aniversário
de seu patriarca. A tensão dos gestos, a aspereza
dos diálogos, a rugosidade das paredes vazias
ao longo do primeiro terço do filme, todo o teatro
das cenas remete a um lugar ao mesmo tempo de conforto/acomodação
e de profundo incômodo. Há um grito latente
no perambular dos personagens, nas trocas de olhares
entre pais e filhos, patrões e empregados, maridos
e esposas... Atores e mobílias da casa parecem
se igualar na sua manutenção da ordem,
na sua economia dos espaços. Em meio a toda essa
frieza, o patriarca se sobressai como a figura que carrega
no peito uma angústia, um se indispor diante
da vida-posta, uma condição espiritual
que dá a ele um sentido patético, uma
espécie de fantasma de gestos vagos.
É apenas com o seu pequeno filho, porém
(e só com ele), que o homem consegue travar um
embate direto – ironia-poética de Tarkovski,
o menino acaba de passar por uma cirurgia na garganta
e não pode falar – se comunicando apenas por
gestos e grunhidos, sob um chapéu de pano branco
que lhe esconde o rosto. Desde o primeiro plano essa
relação é estabelecida, como se
naquele menino estivesse a imagem reposta de uma esperança
ainda sem palavras. O filme se inicia assim: com os
dois personagens, ao longe, plantando juntos uma árvore
à beira de um lago, enquanto o homem narra a
fábula de um homem cuja sina era regar uma árvore
morta (até que ela florescesse novamente...).
Nesse certo sentimento de impossível, Alexander
(o pai) reitera a figura do desviante, do visionário
trágico, presente em diversos aspectos da obra
do diretor. É ele que, numa espécie de
sonho-sono-previsão do futuro, vê ou antevê
a explosão de uma guerra nuclear de proporções
mundiais que aparecia como o anúncio do apocalipse.
Alexander se ajoelha e lança os olhos para o
alto: por cerca de um minuto, faz sua súplica
ao vazio, coloca a própria ordem (família,
casa, filhos) de sua vida em sacrifício e promete
deixar tudo para trás "se tudo voltar a
ser como antes...". Nesse misto de transe, de histeria,
o personagem quase-nonsense do carteiro faz as vezes
de um anjo mensageiro/consciência, que sussurra
para Alexander a única e absurda saída:
fazer amor com uma misteriosa empregada da casa, uma
bruxa capaz de reverter o destino trágico da
humanidade.
Tarkovski não faz diferenças de tom, de
verdade, entre as possíveis alucinações
e a rotina da casa, tudo é apresentado no mesmo
tom, na mesma cadência, e às vezes o absurdo
parece mais plausível do que a ordem tão
naturalizada das coisas. O filme, sem palavras claras,
vai aos poucos narrando as ações de Alexander,
e nos fazendo reconhecer em suas ações
os gestos extremos das palavras proferidas em sua súplica.
A casa em chamas, uma certa alegria trágica.
O Sacrifico é um elogio dos gestos extremos,
da incapacidade de deixar que tudo permaneça,
do ultrapassamento de seus sentimentos mais sedimentados
para a possibilidade de uma sobrevida do homem. Loucura
e libertação andam juntas, e é
belíssimo ver como Tarkovski inscreve esse sentido
na carne do filme. É notável o longo plano-seqüência
em que Alexander corre de seus familiares e da ambulância
antes de ser capturado num vasto campo gramado – a casa
em chamas ao fundo e a correria quase ridícula,
tira o filme da sintonia apática, dos gestos
marcados, da câmera dura. Há um pequeno
caos, uma pequena ruptura, um pequeno sacrifício
da vida como ela é, para que a própria
vida possa perpetuar-se/expandir-se para além
do hábito. O apocalipse não como fim de
tudo, mas como o findar de tudo numa repetição
sem limites. O Sacrifício é um
elogio do ir além, uma ode à vida como
possibilidade de reinvenção e não
como manutenção do mesmo. A saúde
da loucura, sua capacidade de tirar as coisas do lugar,
como esse necessário sacrifício do espírito
diante da amenização da vida.
Último filme de Tarkovski, O Sacrifício
é dedicado a seu filho e termina com o menino
de Alexander deitado aos pés da árvore
morta, que ainda não floresceu. Essa imagem final,
de esperança (mais do que de melancolia), é
o plano final da filmografia do diretor. É quando
ouvimos, pela primeira vez (e somente), a voz pequena
do menino e ele profere a pergunta primeira, a mais
essencial de todas ("No início era o verbo"
– ação primordial do espírito)
– aquela que talvez fosse a saída para o recomeço
que o cinema de Andrei Tarkovski sempre se esmerou em
intuir, ou seja: "Por que, meu pai, por quê?".
Felipe Bragança
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