Primeiros Planos, Estética
e Política, Política Estética
A análise de filmes do passado exige uma reconfiguração
do olhar. Nossa percepção não tem
como ser a mesma dos espectadores situados nos momentos
nos quais as obras foram lançadas, embora percepções
das mesmas evidências, em um mesmo momento e em
uma mesma sociedade, também não sejam
uniformes e dependam do repertório agenciado
por cada espectador. Já quando o espectador está,
em relação à obra, décadas
à frente e, em relação à
origem da mesma, milhares de quilômetros distante,
tem duas opções, não necessariamente
excludentes, para penetrar na narrativa. Uma é
assimilar as imagens a partir de informações
colhidas fora delas, mediado pelo distanciamento em
relação ao período histórico,
assim como pela localização da obra no
percurso dos autores e do cinema. Leva-se para o filme,
assim, o manual de decodificação. Não
há como se desvincular desse processo em textos
analíticos. Uma outra opção, a
princípio mais fácil, mas na verdade mais
complexa, é ignorar os contextos, atendo-se apenas
às evidências na tela. Não nos importa,
nessa experiência, quem assina o filme. Tampouco
o futuro de sua filmografia, já tornado passado
para o crítico. Busca-se na obra, portanto, sua
permanência. E também sua capacidade de
transpor barreiras culturais para se afirmar em outro
ambiente, não sem inevitáveis ruídos
e limites de comunicação. Tentaremos aqui
uma aproximação dupla e complementar em
relação a O Rolo Compressor e O Vilonista,
de Andrei Tarkovski, um média metragem de conclusão
de curso universitário pouco conhecido até
por seus admiradores mais empenhados.
Primeiro, as evidências. Um menino fecha uma porta,
desce as escadas carregando um violino, tenta esquivar-se
de vizinhos, mais ou menos da mesma idade, que o atazanam
e o desprezam, justamente por ele ser músico,
circunstância que o torna diferente, distante
de moleques rudes e agressivos. O músico mirim
esconde-se, nesse início, no saguão de
seu prédio. Tem medo de ser mal tratado. Nessa
primeira aproximação, temos pistas temáticas:
o embate entre arte e força, com conseqüente
isolamento do artista, que vive em exílio social,
asfixiado pela brutalidade. Vemos ainda nestes primeiros
segundos, após meia dúzia de planos, algumas
características que, no desenrolar das imagens,
irão se tornar um padrão. Há uma
preocupação em situar os atores em espaços
físicos bem definidos, um rigor na distribuição
simétrica dos corpos e objetos nesse espaço,
a quase obsessão em compor a cena com raios solares
e sombras, enquadramentos construídos em posições
pensadas para aumentar ou diminuir o tamanho dos personagens
na tela (câmera baixa, câmera no alto) e
uma busca de uma harmonia visual pictórica, mesmo
quando a câmera está em movimento. Mais
alguns segundos e vemos outro recurso, até desnecessário
às vezes, que retornará em um trecho ou
outro: o uso da grua, que ora vem de cima e se aproxima
dos atores, ora sai do chão e, subindo, distancia-se
dos corpos. A profundidade de campo também será
acionada aqui e ali, motivando cenas aparentemente concebidas
apenas para sua utilização. Tem-se assim,
dos primeiros aos últimos minutos, um culto à
imagem, com a decorrente manipulação de
sua superfície. Dois momentos revelam essa disposição
em distorcer os signos para se afastar de significações
imediatas e sugerir outras no lugar. Primeiro quando
o menino pára diante de uma vitrine e olha imagens
duplicadas nos espelhos à sua frente. Ele sorri,
tem prazer com a percepção diferente do
mundo. Poucos segundos adiante, em uma prova de música,
durante a qual a professora cobra do garoto o andamento
correto, mais veloz, vemos uma imagem desfocada, que
sugere um pêndulo, um marcador do ritmo musical.
É um copo de água, com esta em movimento.
Nas relações entre os seres, assim como
nas ações deles, surgem significações
políticas. Essas derivam da aproximação
entre os dois personagens centrais, o menino músico
e um operário, que ao longo da narrativa iniciam
uma amizade. O menino aprenderá com o operário
a tomar partido nas situações injustas
e a reagir dentro das possibilidades quando tentam oprimi-lo.
O operário aprenderá com o menino uma
ou outra coisa sobre música. A relação
seria selada em uma sessão de cinema, do filme
Chapayev, dos irmãos Vassiliev, título
símbolo da pobreza estética dos anos 50
na URSS. Essa aproximação do artista com
o proletariado, um enriquecendo o outro, é explicitada
em uma seqüência, elaborada com montagem
paralela. Vemos a imagem do operário trabalhando
e do menino tocando violino. O som da máquina
e o do instrumento preenchem o quadro. Na cena seguinte,
o menino, mãos sujas de graxa, com as quais tocou
o violino, é repreendido pela mãe. Seu
encontro com o operário é abortado pela
autoridade familiar. Somente em um sonho-delírio
a união poderá ser realizada.
Percebe-se nessas situações a construção
de uma postura política crítica em relação
a pelo menos dois alvos: uma nova geração
desprovida de sofisticação na formação,
que reage à vida com ressentimento, e adultos
apegados a um rigor conservador, expresso tanto pela
mãe como pela professora de música. Nos
dois casos, tolhe-se a liberdade, comportamental e artística.
A mãe o impede de sair de casa. A professora
exige cumprimento do ritmo. Não estamos nessa
primeira passada de olho criando paralelos entre esse
material e a sociedade no qual foi construído
em um momento específico (a sociedade soviética
de finalzinho dos anos 50). Fiquemos por ora na autonomia
da diegese. A abordagem política está
na tela, sem alegorias ou simbolismos explícitos,
embora, quando vemos casas velhas sendo derrubadas e
ao fundo avistamos um prédio alto e novo, no
qual reflete intenso raio solar, somos convidados a
perceber as evidências de mudanças naquele
meio onde vivem os personagens. Vira-se uma página,
do velho para o novo, embora não saibamos, pelas
evidências na tela, nenhum contexto mais amplo,
assim como nenhuma informação mais concreta.
Também percebemos, ainda pela evidência,
que essa mudança, a rigor, está limitada
pelas autoridades. É preciso cumprir à
risca a convenção musical na aula e obedecer
à proibição da mãe de sair
de casa. A imaginação, expressa na cena
final, seria uma fuga. Ou melhor: um concerto para o
mundo.
Mas esse não é um filme qualquer, mas
um média-metragem de Tarkovski, realizado poucos
anos antes de A Infância de Ivan, sua estréia
em longa-metragem. O cineasta faria apenas outros cinco
até se despedir com O Sacrifício.
Em virtude do conhecimento de suas obras posteriores,
tendemos a ver em sua primeira experiência sinais
de traços estilísticos depois melhor elaborados,
ou ainda características menos comuns em sua
filmografia. Também somos tentados a identificar
a postura crítica com as autoridades, quando
tinha 28 anos e nada no currículo fílmico,
que antecipa as lutas do artista contra a burocracia
e a censura soviéticas. Há nesse trabalho
de faculdade alguns componentes trakovsvianos. Em relação
a A Infância de Ivan, sua "estréia
oficial" (definido por Jean Paul Sartre como "surrealismo
socialista"), a aproximação é
imediata, não sem distinções para
cada um dos títulos. Não é aleatória
a opção por dois desfechos situados no
terreno da imaginação, onde os limites
do real são corrigidos não sem perda do
olhar crítico. Percebe-se nessa libertação
pela arte ecos de Invitation to a Beheading,
de Nabokov, livro publicado em fascículos em
1932, no qual o protagonista, Cincinnatus C resiste
à asfixia política pela escrita. Seu heroísmo
não está em ações com metas
coletivas, mas em resistir a ser como os outros. A recusa
em atender o que esperam dele, para assim não
compactuar com um sistema produtor de iguais, faz do
personagem um rebelde disposto a não conceder.
Há outra aproximação com A Infância
de Ivan. Ambos têm como protagonistas uma
criança, embora, no longa-metragem, a rebeldia
já esteja sedimentada no menino, ao contrário
de em O Rolo Compromessor e o Violinista, no
qual o espírito subversivo ainda está
para brotar, ou melhor, brota apenas na imaginação.
De qualquer forma, ao optar por crianças (ou
pelo futuro em gestação), mas sem lhes
dar obviamente otimismo, o cineasta revela, sem meias
luzes, ceticismo no mundo concreto e crença na
arte, não expressando isso, contudo, em forma
de pregação. "Eu não dirigi
nenhuma mensagem à Rússia porque não
sou um profeta, nem faço parte dos artistas com
discursos semelhantes aos de fiéis em uma catedral"
(1).
Sem tanta freqüência e vigor no rompimento
com o mimetismo, como já ocorre em A Infância
de Ivan, mas já incorporando a obsessão
pela água como reflexo de imagens (presente com
mais força em A Infância de Ivan,
Solaris e Nostalgia), a busca de uma imagem
não naturalista e a construção
de um mundo com estatuto próprio, O Rolo Compressor
e O Violinista apresenta um cineasta com olho apurado,
contemporâneo do início de outros autores
dispostos a retrabalhar a linguagem (Jean-Luc Godard,
Píer Paolo Pasolini, Alain Resnais), que se desvia
da tradição do cinema soviético,
priorizando o subjetivo ao coletivo, com fio condutor
individual, capaz de carregar um mundo em sua visão.
O fato do mentor de Tarkovski no Instituto Estatal de
Cinematografia ter sido Mikhail Romm, discípulo
de Eisenstein, não promoveu nenhuma aspiração
nele de tornar-se herdeiro eisensteiniano. Pelo contrário:
seu fundamento estético é o plano, o tempo
da cena, "a pressão interna da imagem",
não a montagem-choque, ou o encadeamento violento,
com sua indução didática ou alucinatória,
como praticavam Eisenstein e Vertov.
Em certa medida, Tarkovski reagiu a seu tempo (sociedade
e cinema). Sua formação cinefilíca,
nos anos 40, foi muito pobre. O realismo soviético
instaurado nos anos 30, ainda durante sua infância,
havia matado a arte em nome da propaganda política.
A fase final de Pudovkin, por exemplo, tinha pouca indagação
estética e, de forma geral, acomodado em um estilo
reacionário, o cinema soviético, antes
revolucionário na forma (mais que no conteúdo),
aburguesara-se (na forma) e mumificara-se (no conteúdo).
O regime comunista também já não
iludia mais os artistas. Tarkovski, de certa maneira,
responde a isso. Nada da papagaiada realista, com seu
slogan mentiroso de se mostrar a realidade como é
, ou, na verdade, como queriam que ela fosse, de acordo
com conveniências do PC. Seu cinema é alérgico
a programas e à missão de reproduzir a
realidade (ou de se representar a realidade de forma
distorcida para vendê-la como imitação
fiel dos fatos e dos contextos). Isso não significa
que, por nortear-se pela moral e não pela ideologia
(como preconizava Godard), tenha abortado uma visão
política. Essa está lá, nas imagens,
basta enxergar.
(1) Entrevista concedida ao France Culture em 7-1-86
Cléber Eduardo
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