Muitos filmes são prolongamentos
de seu início. Vemos as primeiras cenas como
senhas para entrar em um mundo onde a lógica
já está dada por esses momentos primeiros.
Tomemos o exemplo de Queimando ao Vento (adaptação
do romance Ontem, da húngara Agota Kristof).
Uma narração em primeira pessoa, ao som
melancólico de um violino, escancara o lirismo
dolorido. Imagens de árvores balançando
ao vento, mudança do colorido para o preto e
branco, referências à tristeza do personagem
em um díalogo e a imagem dele desmaiando em um
bosque, vítima de pneumonia (como sabaremos logo
depois): tudo adequa nossa percepção.
Seremos introduzidos a uma narrativa calcada no embate
entre o onírico sem freios e o psicológico
decifrável – ou entre a abstração
e o racional, entre as pulsões e a psicanálise.
Sabemos por meio de sua narração e algumas
imagens que a infância do protagonista é
a razão de seus males: sua mãe era prostituta,
seu professor era seu pai não assumido, ele tenta
matar o pai. Sabemos também que, para fugir desse
passado traumático, ele trocou de país
(de algum ponto do Leste Europeu para a França).
Entramos assim no que há de mais interessante:
o narrador quer enterrar sua identidade, sua origem
e sua memória, muda de espaço físico
e de nome, mas permanece preso às suas raízes.
Prisão trágica, piada dos deuses. Pois
seu ideal de mulher, cantada quase em versos no livro
íntimo ao qual se dedica permanentemente, é
a amada da infância (que, por acaso, é
sua meia-irmã).
Ou não por tão acaso assim, já
que, ao se apaixonar por alguém a quem está
atado por laços sanguíneos, ele resgata
sua identidade original (com seu passado e sua origem),
compensando o mal estar da modernidade (para citar o
sociólogo polonês Zygmunt Bauman). Também
não é por acaso que o filme assume seu
romantismo desenfreado, com emocionante convicção,
como contraponto aos laços afetivos e identitários
frouxos. O narrador funde em uma mesma relação
e em uma mesma pessoa a necessidade de parentesco e
de afinidade (noções também trabalhadas
por Bauman): a meia-irmã é parente (algo
dado, sem escolha), mas também parceira potencial
(algo escolhido). Nos dois casos, ela é um espelho
para o qual, para ele se reconhecer, tem de olhar. No
exílio, portanto, ele volta para casa, simbolicamente.
O exílio apenas o estimula a reeencontrar a origem,
até porque o exílio é só
rotina, sem chance de se reiventar nada, apenas de se
anular como indivíduo (em sua rotina de operário).
É no retorno de onde partiu, nesse retorno metafórico,
que ele pode se reiventar. Há algo de trágico
na aparente inevitabilidade desse romance proibido,
mas, ao omitir que é irmão da amada, o
protagonista dribla os deuses, tornando-se senhor da
situação e, em certa medida, reiventando
seu eu sem abandoná-lo. E assim o romantismo
também é reiventado, pois deixa de ser
auto-destrutivo e projeção de um imaginário
ensandecido para, na tela, tornar-se realizável
por obra do homem. Nada é proibido para as emoções
desse narrador. O determinismo é, assim, relativizado
(como em Tiresia, de Bertrand Bonello, onde,
em última instância e de forma mais complexa,
o travesti se adapta, não sem sofrimento, à
uma circuntância, optando por cumprir uma sina).
Tendo dirigido quatro longas-metragens, apenas um lançado
no Brasil (Pão e Tulipas), justamente
sua única comédia, o milanês Silvio
Soldini revela notável crença em seu material.
Seu registro é do excesso, dos floreios literários
e musicais, ao qual contrapõe uma câmera
sutil. Há algo de defasado nesse registro, e
isso é incorporado pelo filme, até mesmo
para esvaziar a defasagem. Não se busca criar
compaixão por um personagem sem habilidade para
viver segundo seu tempo, mas de se ver nele a possibilidade
de buscar outra forma de se relacionar com o mundo,
sem abrir mão das fidelidade às suas emoções.
Soldini conta a seu favor com um ator não menos
convicto, o tcheco Ivan Franek, que encontra verdade
em seu intimismo perturbado: ator e diretor estão
afinados nessa empreitada tão peculiar.
Cléber Eduardo
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