Quando se fala das possibilidades
da linguagem cinematográfica se aproximar mais
de um discurso da poesia, ao invés da prosa,
um dos nomes mais citados é sempre o do soviético
Andrei Tarkovski. Pois é interessante lembrar
que Tarkoski escreveu em seu seminal Esculpir o Tempo
que detestava o que geralmente se chamava de "cinema
poético" porque ele lhe parecia igualmente impositivo
na sua relação com o espectador. Explicando:
segundo Tarkovski, buscar um simplório simbolismo
alegórico, onde à uma imagem supostamente
"poética" se gruda uma obrigatória leitura
interpretativa única do espectador, se estaria
usando o mesmo artifício do cinema narrativo
mais banal. Impor leitura, portanto, é impor
leitura - não importa qual linguagem se queira
usar.
A introdução é importante para
se falar deste novo filme do coreano Kim Ki-Duk, porque
ele sofre exatamente deste mal: auto-consciente o tempo
todo de uma certa linguagem budista-poética,
em quase nenhum momento consegue escapar da obviedade
conceitual e interpretativa da imagética que
utiliza. Os exemplos deste expediente abundam ao longo
do filme, mas dois são especialmente didáticos:
o uso da trilha sonora, redundante o filme inteiro;
e em especial a encenação no final, onde
o personagem se amarra a uma pedra e sobe uma montanha.
Kim não se satisfaz com a correlação,
já em si óbvia, deste ato com o início
do filme onde o personagem em sua infância amarrava
pedras a animaizinhos - precisa inserir takes de flashback
com as cenas destes animais amarrados às pedras.
A reiteração tem função
clara: que nenhum espectador saia do cinema sem entender
as mensagens que o filme quer passar - e neste sentido
sua lógica está mais perto da dos livros
de auto-ajuda (gênero no qual o misticismo oriental
é sempre bem-vindo) do que da poesia.
Se poderia afirmar que a obviedade do filme já
começa pelo seu título, em si uma explicação
do que o filme quer dizer ao final: a vida é
um ciclo de eterno recomeço. Mas, se criará
um longuíssimo périplo até esta
lição, que já na primeira primavera
do filme todos entendemos que será onde o filme
quer chegar. Só que obviedade narrativa em si
não faz um mau filme - senão a maioria
dos exemplares de filmes de gênero seria automaticamente
desinteressante. A questão é que a encenação
de Kim para esta obviedade narrativa nunca o eleva para
além do tédio absoluto, e do eventualmente
risível. A verdade, aliás, é que
diretor e filme parecem em completo desacordo. Tanto
em A Ilha quanto em Endereço Desconhecido,
seus dois filmes anteriores que pudemos ver no Brasil
em festivais, Kim sempre chamou a atenção
pela coragem quase desagradável em ser deselegante,
físico, brutal muitas vezes. Primavera, Verão...
é tudo menos isso. E, embora não se trate
aqui de achar que um cineasta só pode filmar
de uma maneira, o fato é que Kim encena muitas
das cenas com uma mesma "deselegância" que aqui
soa deslocada, que torna truncado o que devia ser fluido.
O que resulta é que temos um filme "domesticado",
que parece um grande painel budista light, para consumo
de senhoras bem-educadas dos países ocidentais
e que tenta segurar sua força no uso que faz
das paisagens naturais e da exuberância natural
- uma espécie de National Geographic filosófico-cultural.
Só que filmado por um diretor que, a todo momento,
pareceria estar mais interessado pelo filme se o pudesse
estar filmando, por exemplo, como uma pornochanchada
- o que ele nunca chega a conseguir fazer. Este desacordo
de tons, misturado com a obviedade da trama e das mensagens
e parábolas encenadas, tornam Primavera, Verão...
um estranho produto "for export" que nunca ultrapassa
os limites simplórios da exaltação
de seu exotismo visual-espiritual.
Eduardo Valente
|