Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera
Kim Ki-duk, Bom yeoreum gaeul gyeoul geurigo bom, Coréia, 2003

Quando se fala das possibilidades da linguagem cinematográfica se aproximar mais de um discurso da poesia, ao invés da prosa, um dos nomes mais citados é sempre o do soviético Andrei Tarkovski. Pois é interessante lembrar que Tarkoski escreveu em seu seminal Esculpir o Tempo que detestava o que geralmente se chamava de "cinema poético" porque ele lhe parecia igualmente impositivo na sua relação com o espectador. Explicando: segundo Tarkovski, buscar um simplório simbolismo alegórico, onde à uma imagem supostamente "poética" se gruda uma obrigatória leitura interpretativa única do espectador, se estaria usando o mesmo artifício do cinema narrativo mais banal. Impor leitura, portanto, é impor leitura - não importa qual linguagem se queira usar.

A introdução é importante para se falar deste novo filme do coreano Kim Ki-Duk, porque ele sofre exatamente deste mal: auto-consciente o tempo todo de uma certa linguagem budista-poética, em quase nenhum momento consegue escapar da obviedade conceitual e interpretativa da imagética que utiliza. Os exemplos deste expediente abundam ao longo do filme, mas dois são especialmente didáticos: o uso da trilha sonora, redundante o filme inteiro; e em especial a encenação no final, onde o personagem se amarra a uma pedra e sobe uma montanha. Kim não se satisfaz com a correlação, já em si óbvia, deste ato com o início do filme onde o personagem em sua infância amarrava pedras a animaizinhos - precisa inserir takes de flashback com as cenas destes animais amarrados às pedras. A reiteração tem função clara: que nenhum espectador saia do cinema sem entender as mensagens que o filme quer passar - e neste sentido sua lógica está mais perto da dos livros de auto-ajuda (gênero no qual o misticismo oriental é sempre bem-vindo) do que da poesia.

Se poderia afirmar que a obviedade do filme já começa pelo seu título, em si uma explicação do que o filme quer dizer ao final: a vida é um ciclo de eterno recomeço. Mas, se criará um longuíssimo périplo até esta lição, que já na primeira primavera do filme todos entendemos que será onde o filme quer chegar. Só que obviedade narrativa em si não faz um mau filme - senão a maioria dos exemplares de filmes de gênero seria automaticamente desinteressante. A questão é que a encenação de Kim para esta obviedade narrativa nunca o eleva para além do tédio absoluto, e do eventualmente risível. A verdade, aliás, é que diretor e filme parecem em completo desacordo. Tanto em A Ilha quanto em Endereço Desconhecido, seus dois filmes anteriores que pudemos ver no Brasil em festivais, Kim sempre chamou a atenção pela coragem quase desagradável em ser deselegante, físico, brutal muitas vezes. Primavera, Verão... é tudo menos isso. E, embora não se trate aqui de achar que um cineasta só pode filmar de uma maneira, o fato é que Kim encena muitas das cenas com uma mesma "deselegância" que aqui soa deslocada, que torna truncado o que devia ser fluido.

O que resulta é que temos um filme "domesticado", que parece um grande painel budista light, para consumo de senhoras bem-educadas dos países ocidentais e que tenta segurar sua força no uso que faz das paisagens naturais e da exuberância natural - uma espécie de National Geographic filosófico-cultural. Só que filmado por um diretor que, a todo momento, pareceria estar mais interessado pelo filme se o pudesse estar filmando, por exemplo, como uma pornochanchada - o que ele nunca chega a conseguir fazer. Este desacordo de tons, misturado com a obviedade da trama e das mensagens e parábolas encenadas, tornam Primavera, Verão... um estranho produto "for export" que nunca ultrapassa os limites simplórios da exaltação de seu exotismo visual-espiritual.

Eduardo Valente