Nostalgia como o desejo
do retorno – de um vazio incondicional, de uma essência
que estaria ecoada enquanto ruptura com o presente.
Religião, religar-se: um certo sentimento de
abismo que parece tender sempre a um inalcançável.
Nostalgia como a loucura, essa memória
do novo, a "voz que não escutamos".
Tarkovski traça um filme nos limites do humano,
como anjos caídos a ouvir (ao longe) as palavras
de um Deus nunca-presente, por entre pilastras frias
e atravessadas pela presença de um Ser indefinível.
O poeta russo carrega a memória de seu passado,
o louco Domenico carrega o desejo de a um só
tempo poder esquecer-se de tudo e relembrar-se do Todo.
Nostalgia aparece como esse sentido inescapável
de eternidade, de que há algo de sempre pequeno
e de sempre inexprimível em cada gesto que ultrapassa
as diferenças sociais, culturais, políticas,
econômicas... humanas.
O mundo nos aparece como uma espécie de caverna,
de masmorra cheia de belezas ímpares, mas úmida
e enevoada como as piscinas de água quente. As
vozes (e Tarkovski passeia com a câmera encontrando
vazios e nucas), parecem vir de algum lugar-outro que
não das bocas de seus personagens, de suas figuras,
de seus vultos. O som pregnante de goteiras, de serras
elétricas, de cantos ecoados pelos corredores
do hotel/casa-de-banho onde se hospeda o professor:
tudo remete ao cenário inicial do templo de Nossa
Senhora do Parto, onde mulheres caminham em círculos,
murmurando nas sombras. Os raccords falsos, a
câmera que descobre paredes em travellings
sem rumo, os personagens que surgem de baixo do
quadro como que se erguendo do chão, as paredes
enrugadas (e, nesse sentido, a cenografia do filme é
primorosa).
Há uma fantasmagoria que percorre a narrativa,
onde os corpos circulam, passeiam, em movimentos marcados,
duros, como as representações inertes
de figuras-imagens que estão não-mais-ali
(como as estátuas de que fala Domenico). É
o gesto da pesquisa, da arqueologia (a busca pelo passado)
que vai desencadear, nesse labirinto, a possibilidade
de alguma ruptura, de algum sentimento de recomeço
intuído, mas nunca enxergado. É a partir
do encontro do taciturno professor (em sua busca pelas
memórias de um compositor russo obscuro) com
o misterioso Domenico (funcionário da casa-de-banhos)
que o filme se conjuga em direção a uma
trágica e incontornável alegria. Incontornável
como a promessa de atravessar a piscina levando nas
mãos a pequena vela acesa...Como se todo o filme,
todo o perambular da câmera parecesse nos levar,
hipnotizar (em um mantra) em direção às
duas seqüências finais: a da morte-suicídio
de Domenico em meio à cidade de Roma (a imagem-clichê
da cultura ocidental) e a do atravessar da piscina com
a vela nas mãos. A articulação
entre essas duas seqüências funciona como
o desaguar de todos os minutos anteriores do filme.
Primeiro, o momento trágico em que Domenico põe
fogo no próprio corpo (diante de uma multidão
de estátuas, de mármore e de carne) e
ouvimos a Ode à Alegria de Beethoven (numa
trilha sonora diegética/não-diegética
em que não vemos a fonte da música, embora
percebamos que ela está sendo reproduzida "dentro
do filme", por um aparelho precário), seguida
do grito seco do homem que sente seu corpo tomado pelas
chamas. Em seguida, segundo momento, vemos as mãos
do professor tentando acender o pequeno pavio de um
pedaço de vela. Diante de uma piscina de águas
termais, agora vazia, tem início uma das cenas
mais antológicas de toda a filmografia de Tarkovski:
num único plano-seqüência, acompanhamos
o professor levar (entre as palmas das mãos)
a chama frágil da vela, indo de um lado ao outro
da piscina. Apesar de todo cuidado e concentração
do professor, a umidade do ambiente é muito grande
e a vela insiste em se apagar. Mas o professor continua
sua tentativa, reacendendo a vela, e repetindo o trajeto
desde o início. A mesma força destrutiva
do fogo agora aparece naquela pequena e frágil
chama, tão suscetível a se apagar a qualquer
momento, a qualquer movimento brusco. É a insistência,
a resistência – um sentido primordial de promessa
e da vontade – que fazem com que o professor perpetue
sua tentativa... até conseguir.
Esse pequeno ritual, simples, aparece no filme como
a imagem-limite, como o gesto de reencontro final do
personagem com toda a densidade e o peso de suas lembranças
(e daquilo que, em seu corpo, se torna inexprimível).
A umidade do ambiente, a batalha entre o fogo e a água
(que cria o vapor denso das piscinas termais e que o
impede de enxergar mais adiante). Em off, o professor
só consegue grunhir, como se tivesse se ultrapassado,
enquanto vemos a vela já posta do outro lado
da piscina. Final do percurso, do ritual, do calvário
– restam as reticências de uma imagem preto-e-branco
onde o professor finalmente se deita "por dentro"
de seu passado, ao lado de um velho cão, e fita
o céu distante agora refletido no chão,
numa poça d`água. Tarkovski finda assim
essa pequena obra-prima de cinema-posado e de poesia
gráfica; apostando em imagens que são
antes de tudo sintomas pulsantes, tensões da
forma e dos sons, numa vivacidade que se não
está localizada em cada um de seus personagens-estátuas,
parece percorrer o filme como uma espécie de
energia não-localizável, intuída,
tão frágil, tão poderosa e tão
passageira quanto a chama que queima (que tanto pode
atravessar os corpos quanto desaparecer em um leve bufar
de vento) e que alguns chamariam de "fé".
Não uma "fé" resumida neste
ou naquele estatuto, mas uma "fé" primordial,
talvez, na própria sobrevida do cinema para além
de tudo o que se possa alcançar, que se possa
conter nas imagens. Nostalgia, mais do que um
retorno ao passado, é esse desejo, sem-solo,
de se tocar, de se contagiar (e contagiar o espectador)
com um sentido indecifrável de eternidade. E
esse é o grande êxito do filme, e de Tarkovski.
Felipe Bragança
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