Meados de 1999. Começam
a surgir os boatos sobre a criação de
um programa que possibilita a troca de arquivos musicais
pela internet. As dúvidas se instauram: será
a qualidade tão pobre quanto a dos lamentáveis
trechos musicais disponibilizados em formato "real
audio" pelas lojas eletrônicas? Será
que só os mega-sucessos de vendas como Madonna,
Jay-Z ou Britney Spears seriam fartamente disponíveis?
Quanto tempo vai demorar para se ter uma música
baixada no disco rígido? A resposta veio pela
prática: o formato mp3 revelou-se capaz de comprimir,
em arquivos de tamanho pequeno, arquivos musicais sem
perder a qualidade, mantendo-a em algo próximo
do que ouvimos nas matrizes em cd. Com um modem de 56K
e uma conexão dial-up que era provavelmente
a forma de conexão à internet mais utilizada
no momento era possível fazer o download
de uma música de quatro minutos num tempo flutuante
entre dez minutos e meia hora. Melhor que isso: os admiradores
de música não se contentavam apenas com
os sucessos do momento, mas revolviam suas coleções
de discos e se dispunham a codificar os discos de seus
grupos preferidos para disponibilizá-los a uma
infinidade de possíveis novos admiradores. Nasce
a "cultura Napster".
Discos raríssimos
e lendários passavam, de um momento para outro,
a estar apenas a um toque de mouse. Grupos que até
então só eram ouvidos por pequenos cultos,
como Faust, Modern Lovers ou The Pop Group, podiam estar
no seu disco rígido em um par de horas. Artistas
de música eletrônica experimental jamais
lançados no Brasil e virtualmente invisíveis
de toda a mídia, como Aphex Twin, Autechre, Sutekh
ou Pole, eram tão acessíveis quanto o
último single de Eminem (só que, evidentemente,
com muito menos usuários). A cultura Napster,
que mais tarde passará para outros programas,
como Audiogalaxy, Gnutella, Kazaa ou Soulseek, vai ganhando
seus contornos e características: criação
de um grande acervo virtual baseado num companheirismo
universal (cada usuário deve disponibilizar arquivos
para fazer a rede crescer), busca incessante por títulos
novos ou antigos que tenham dificuldade de circulação,
ecletismo crescente de gêneros e estilos, respeito
e exigência também crescentes pelos formatos
originais (discos, singles). Resultado: nascimento de
uma comunidade de informação baseada na
troca livre de obras que instala uma nova sensibilidade
e uma nova preocupação com o fluxo livre
de um enorme banco de dados considerado como bem universal
de conhecimento (e não como exploração
do direito autoral alheio, embora isso ainda seja um
problema jurídico não resolvido de forma
suficiente). Outro resultado: a formação
de um público muito mais informado, tendo à
sua disposição um manancial de arquivos
musicais infinitamente superior àquilo que é
geralmente oferecido pelas corporações
musicais, cada dia mais opressivas e condicionante a
um ou dois únicos modelos de composição
(musical, no caso).
* * *
Imagine o mesmo se aplicando
ao cinema. Imagine que, ao invés de ter que escolher
entre Harry Potter e O Senhor dos Anéis,
um admirador de cinema tenha entre o seu leque de opções
um filme experimental raríssimo de Stan Brakhage,
o mais novo filme do japonês Takashi Miike, um
curta-metragem notável de Buster Keaton ou o
mitológico Cais das Sombras, de Marcel
Carné? De certa forma, isso já existe
e se encontra em prática, mesmo que ainda com
uma dificuldade de acesso que faça invejar os
começos do mp3. Afinal, um arquivo de filme com
boa qualidade de imagem tem aproximadamente 700MB comprimido
no formato AVI (dois arquivos de aproximadamente 700MB
para filmes com duas horas ou mais), contra 7MB para
uma canção de cinco minutos - o que demanda
ao menos uma conexão DSL funcionando por horas
e horas continuamente. Se um filme badalado em Hong
Kong como Infernal Affairs, com 150 usuários
conectados, demora menos de 48 horas para ser inteiramente
baixado, o raro filme mudo de Dreyer Você Deve
Respeitar sua Mulher (1925), com apenas 8 ou 10
usuários, pode demorar coisa de uma semana para
o download terminar, desligando-se o computador apenas
por alguns minutos por dia para evitar superaquecimento
de placa. O programa da vez é o Emule (www.emule-project.net),
um software que permite ao usuário baixar o mesmo
arquivo automaticamente de várias fontes. Alguns
contratempos: o fato de haver diversos servidores dificulta
a procura e torna a taxa de transmissão mais
lenta, e as filas para download variam entre números
muito estranhos e pouco confiáveis (ao contrário
da fila do Soulseek, não tão lenta e mais
confiável).
Admitamos: se nos fosse
dada a facilidade de assistir em película, com
tela grande e cópias de qualidade uma grande
diversidade de filmes, a idéia de baixar filmes
pela internet, no que isso demanda de tempo e pesquisa,
seria um exagero. Condicionados que estamos a um circuito
exibidor cada vez mais viciado em matéria de
títulos e isso também diz respeito
ao chamado "circuitinho" dos cinemas ditos
"de arte e ensaio" , a opção
por formar um acervo virtual universal constitui uma
oportunidade única de acesso a filmes e cinematografias
inteiras que nem o circuito exibidor e tampouco os festivais
internacionais daqui contemplam adequadamente. Mais
que isso: criam a tremenda oportunidade de uma aprendizagem
autodidata e selvagem do cinema cada dia mais necessária
hoje.
O que nos leva, naturalmente,
à questão da acessibilidade. Grande parte
dos admiradores de cinema vive em grandes cidades, mas
não representa a totalidade talvez nem
a maioria dos cinéfilos que têm
vontade de expandir seu conhecimento cinematográfico
para além dos lançamentos comerciais nas
salas de cinema ou em dvd/vhs. Lá, poucos são
os títulos que chegam nas salas e nas locadoras
(naturalmente, há exceções). Mesmo
nas grandes cidades, não é tarefa fácil
encontrar uma boa locadora, uma boa loja para comprar
um dvd. E, mesmo no caso dos filmes que entram em cartaz,
dependemos sobremaneira (e de forma viciosa até)
das críticas dos filmes em cartaz para que certos
filmes passem da famosa uma semana de exibição
(dois filmes decisivos, O Homem Sem Passado de
Kaurismäki e O Filho dos irmãos Dardenne,
receberam bonequinho dormindo e ou não voltaram
para a segunda semana ou foram confinados em circuitos
de uma sessão em uma sala). Associemos isso à
dificuldade de encaixar tantos horários para
ver este ou aquele filme nos festivais, e perceberemos
que não é muito fácil se atualizar
com o panorama atual do cinema.
Mas o pior mesmo é
saber que grande parte dos filmes considerados mais
decisivos no panorama contemporâneo sequer chegam
a nossos festivais. Tomemos dois exemplos: o coreano
Hong Sang-Soo e o taiwanês Hou Hsiao-hsien. O
último já foi chamado "única
revelação de peso que o cinema forneceu
nos últimos cinco anos" pelos Cahiers du
Cinéma (em 2002) e o segundo é sem apelação
um dos cineastas mais inovadores aparecidos nos últimos
vinte anos, e desde já um pilar do cinema contemporâneo.
E, entretanto, afora os sortudos que puderam assistir
a Millenium Mambo no Festival do Rio, a Adeus
ao Sul na Mostra de São Paulo ou a Flores
de Xangai em ambos (exibidos todos, vale dizer,
sem frissom qualquer por parte da imprensa escrita ou
online, à exceção desta tribuna),
os dois realizadores permanecem como francos desconhecidos
da maior parte dos cinéfilos. A solução?
Emule...
É notável
o número de títulos orientais disponíveis
no Emule que jamais entraram ou entrarão em circuito
no Brasil. Dos japoneses, filmes raros do "mestre
do melodrama" Mikio Naruse, de Kenji Mizoguchi,
de Yasujiro Ozu ou de um diretor mais recente como Shohei
Imamura. Da produção contemporânea,
dois filmes de Nobuhiro Suwa (cobertos nesta pauta),
toneladas de Kiyoshi Kurosawa (outro cineasta decisivo
virtualmente desconhecido por aqui) ou de Takashi Miike,
prolífico cineasta que realiza 3 ou 4 filmes
por ano. Da Coréia, além da obra completa
de Hong Sang-Soo, filmes premiados como os de Lee Chang-Dong
(Oasis, Peppermint Candy) e outros títulos
muito bem falados (A Tale Of Two Sisters de Kim
Ji-Woon ou Memories Of Murder de Bong Joon-ho).
De Hong Kong, o fã de Quentin Tarantino pode
fazer a festa com diversos títulos da Shaw Brothers
(principal matriz estética de Kill Bill,
principalmente os filmes de Chang Cheh), mas também
tem acesso a filmes de Tsui Hark (que, finalmente, farão
a Contracampo reviver sua extinta série 'Cinemas
da China') e alguns filmes mais recentes como o fundamental
Made in Hong Kong de Fruit Chan, alguns filmes
de Johnnie To (principal revelação dos
filmes de ação desde John Woo, autor de
filmes como The Mission, Fulltime Killer
ou Running On Karma) ou o já mencionado
Infernal Affairs, de Andrew Lau e Lau Wai-Keung.
Se os filmes europeus
e americanos chegam aos circuitos exibidores/de festival
com mais facilidade, não impede que possamos
encontrar no Emule usuários disponibilizando
pérolas raríssimas e cultuadas
jamais exibidas aqui, vale dizer como o filme
Sociedade do Espetáculo de Guy Debord
ou o mítico Génèse d'un Repas
de Luc Moullet. Um realizador como Aki Kaurismäki,
via de regra esquecido por estas searas, tem boa parte
de sua filmografia disponível: I Hired A Contract
Killer, Nuvens Passageiras, The Match
Factory Girl, os curtas dos Caubóis de Leningrado,
entre outros... O mesmo com Jean Eustache: de sua algo
parca carreira filmográfica, os essenciais A
Mamãe e a Puta e Une Sale Histoire
são disponibilizados. Se formos falar dos cineastas
experimentais, então, a festa pode começar:
mesmo com pouquíssimos usuários (o que
deixa a espera às vezes inaceitável),
podemos ter acesso a filmes de Bruce Conner, Jonas Mekas,
Andy Warhol, Peter Kubelka, Stan Brakhage, Robert Breer,
Maya Deren... Poderíamos continuar infinitamente
falando de filmes mudos (quase a totalidade da obra
muda de Buster Keaton), de Hollywood clássico
(Rio de Aventuras de Hawks), filmes de rock (Cocksucker
Blues dos Rolling Stones, Rude Boy do Clash)
de faroestes espaguetes italianos, filmes de terror...
Chegará o dia em que poderemos ver Limite
como deve ser visto ou um filme de Candeias baixando-o
pela internet?
Se aqui fazemos o elogio
do surgimento de um novo acervo, é porque ele
aparentemente já mudou sensivelmente a fruição
de um determinado público, nós inclusive,
e uma revista de cinema não pode ficar indiferente
a isso, sob pena de caducar. Mesmo que a legalidade
ou ilegalidade dessa prática seja um mérito
ainda a ser julgado, nos parece dever de uma revista
de cinema apontar para a importância de uma prática
que, mesmo questionável, toca o cerne do fraco
parque de exibição do país (e,
de certa forma, de todas as cidades do mundo) em relação
à diversidade da produção mundial,
disponibiliza a um público universal uma inestimável
quantidade de objetos estéticos de difícil
alcance através dos modelos usuais (exibição
pública, dvd, vhs) e cria uma nova geração
de cinéfilos que podem perseguir com mais aplicação,
cuidado e discernimento seu amor pela arte cinematográfica.
Que uma comunidade do companheirismo universal em favor
da divulgação artística seja vista
como algo de inaceitável, só é
possível nos tempos em que os próprios
artistas são menos importante do que as corporações
por trás deles. Sorte nossa que, no momento da
primeira biblioteca, não havia uma editora sentindo-se
lesada. Resta-nos torcer para que, num breve futuro,
ao contrário da música de Bobby Fuller
cantada pelo Clash, possamos lutar com a lei e ganhar.
O cinema agradece.
Ruy Gardnier
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