Moça com Brinco de
Pérola é um filme, que, desde sua
gestação, parece fadado a estar contaminado
com uma espécie de "ranço" que
caracteriza aquilo que em língua inglesa costuma
ser chamado de costume pictures, ou seja filmes
de época onde o que mais importa é a reconstituição
histórica manifesta através de figurinos
e cenografia detalhistas e suntuosos. Para complicar,
temos um tema inspirado na vida de um personagem célebre
– o pintor Vermeer – e uma orígem literária
– romance de Tracy Chevalier – que ficcionaliza fatos
sobre o processo de criação de uma de
suas obras mais conhecidas, a pintura que dá
nome ao filme. Prato cheio para esse modorrento e desgastado
"estilo BBC de fazer cinema".
O diretor Peter Webber, estreando na telona, mas não
por acaso com experiência na TV inglesa, concebeu
o filme que se esperava, sem pretender fugir dos clichês
que incluem Vermeer como um criador supostamente sensível
e de temperamento infeliz e torturado, o que se acentua
pela atuação monocórdia de Colin
Firth, mais adequada para um zumbi em câmera lenta.
Dos conflitos de classe à repressão de
costumes oriundos de uma relação (por
sinal platônica) entre ele e a criada da família,
a jovem Griet, (que, segundo o romance e filme, teria
sido o modelo para o quadro em questão), tudo
é desenvolvido de forma previsível pelo
roteiro e pela direção de Webber que,
se aproveitando da fotografia de Eduardo Serra que reproduz
a paleta de cores e luzes do pintor, parece estar imbuído
daquele quase sempre equivocado senso de grandeza de
quem acredita estar produzindo uma obra-prima.
Dessa forma, Moça com Brinco de Pérola
poderia ser mais um filme a ser relegado a um limbo
entre o sono e o esquecimento, não fosse por
um detalhe que faz com que, em meio à pasmaceira
pseudo-artística, não desgrudemos os olhos
da tela nem por um segundo, ao menos quando ela está
em cena (e ela está praticamente onipresente):
Scarlett Johansson. Além da sabedoria de escalá-la
como protagonista, Webber explora cada expressão,
cada detalhe do rosto desta jovem, linda e extraordinária
atriz, desenvolvendo uma rara cumplicidade entre ela
e sua câmera.
Antes que o leitor rebata, dizendo haver ultimamente
em nossa revista uma excessiva rasgação
de seda por Scarlett Johansson, afirmo que esta admiração
não é nenhum exagero de fã: Scarlett
demonstra com olhares e gestos sensivelmente contidos
cada emoção de Griet, desde a desconfiança
ao penetrar no distante universo que é a casa
dos Vermeer, passando pela sensação de
cada nova descoberta, tanto da arte como do desejo reprimido
pela formação familiar protestante. É
ela, com seu talento, que consegue fazer de uma simples
passada de língua nos lábios e dos breves
segundos em que a platéia, assim como Vermeer,
tem a breve visão de sua cabeleira ruiva, momentos
de raro erotismo. É assim que, a princípio
limitado e inexpressivo como peça de cinema,
Moça com Brinco de Pérola cresce
quando visto como um estudo sobre o rosto de Scarlett
Johansson, este sim uma obra de arte. Das maiores do
nosso tempo.
Gilberto Silva Jr.
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