Moça com Brinco de Pérola
Peter Webber, Girl with a Pearl Earring, Inglaterra/Luxemburgo, 2003

Moça com Brinco de Pérola é um filme, que, desde sua gestação, parece fadado a estar contaminado com uma espécie de "ranço" que caracteriza aquilo que em língua inglesa costuma ser chamado de costume pictures, ou seja filmes de época onde o que mais importa é a reconstituição histórica manifesta através de figurinos e cenografia detalhistas e suntuosos. Para complicar, temos um tema inspirado na vida de um personagem célebre – o pintor Vermeer – e uma orígem literária – romance de Tracy Chevalier – que ficcionaliza fatos sobre o processo de criação de uma de suas obras mais conhecidas, a pintura que dá nome ao filme. Prato cheio para esse modorrento e desgastado "estilo BBC de fazer cinema".

O diretor Peter Webber, estreando na telona, mas não por acaso com experiência na TV inglesa, concebeu o filme que se esperava, sem pretender fugir dos clichês que incluem Vermeer como um criador supostamente sensível e de temperamento infeliz e torturado, o que se acentua pela atuação monocórdia de Colin Firth, mais adequada para um zumbi em câmera lenta. Dos conflitos de classe à repressão de costumes oriundos de uma relação (por sinal platônica) entre ele e a criada da família, a jovem Griet, (que, segundo o romance e filme, teria sido o modelo para o quadro em questão), tudo é desenvolvido de forma previsível pelo roteiro e pela direção de Webber que, se aproveitando da fotografia de Eduardo Serra que reproduz a paleta de cores e luzes do pintor, parece estar imbuído daquele quase sempre equivocado senso de grandeza de quem acredita estar produzindo uma obra-prima.

Dessa forma, Moça com Brinco de Pérola poderia ser mais um filme a ser relegado a um limbo entre o sono e o esquecimento, não fosse por um detalhe que faz com que, em meio à pasmaceira pseudo-artística, não desgrudemos os olhos da tela nem por um segundo, ao menos quando ela está em cena (e ela está praticamente onipresente): Scarlett Johansson. Além da sabedoria de escalá-la como protagonista, Webber explora cada expressão, cada detalhe do rosto desta jovem, linda e extraordinária atriz, desenvolvendo uma rara cumplicidade entre ela e sua câmera.

Antes que o leitor rebata, dizendo haver ultimamente em nossa revista uma excessiva rasgação de seda por Scarlett Johansson, afirmo que esta admiração não é nenhum exagero de fã: Scarlett demonstra com olhares e gestos sensivelmente contidos cada emoção de Griet, desde a desconfiança ao penetrar no distante universo que é a casa dos Vermeer, passando pela sensação de cada nova descoberta, tanto da arte como do desejo reprimido pela formação familiar protestante. É ela, com seu talento, que consegue fazer de uma simples passada de língua nos lábios e dos breves segundos em que a platéia, assim como Vermeer, tem a breve visão de sua cabeleira ruiva, momentos de raro erotismo. É assim que, a princípio limitado e inexpressivo como peça de cinema, Moça com Brinco de Pérola cresce quando visto como um estudo sobre o rosto de Scarlett Johansson, este sim uma obra de arte. Das maiores do nosso tempo.

Gilberto Silva Jr.