Não precisamos
de mais do que alguns segundos para perceber que Made
in Hong Kong é um filme profundamente melancólico.
A primeira cena, ainda com os créditos iniciais,
consiste num grupo de jovens jogando basquete enquanto
Chung-Chau ("Lua de Outono"), o protagonista
do filme, fala em off sobre o lugar onde mora,
as pessoas que conhece, suas ocupações
e desocupações. Sua fala, na verdade,
é sobre sentir o mundo numa dada condição:
a juventude. O som de fundo é ocupado por uma
música que corrobora a melancolia, e logo nesse
começo se pressagia tudo que ocorrerá
ao longo do filme. A despeito do conteúdo político
referente ao momento de impotência por que passava
o seu país (de colônia britânica
a apêndice da China, sempre um território
"dos outros"), Made in Hong Kong é
um filme sobre a juventude, qualquer juventude, e –
sem exagero algum – um dos mais belos relatos dos anos
90 sobre um sentimento de tempo próprio a essa
juventude, relato comparável aos filmes de Gus
Vant Sant da mesma década (não é
uma comparação de qualidade: o filme de
Fruit Chan remete a Van Sant não por questões
estilísticas ou preocupações estéticas,
mas simplesmente pela entrega emotiva a esse universo
jovem, com sua dinâmica e seu tempo de acontecimento),
não por acaso citado através de um pôster
de Garotos de Programa pendurado na parede do
quarto de uma personagem. O outro pôster que aparece,
até com mais freqüência, é
o de Assassinos por Natureza, de Oliver Stone,
referência menos interessante, porém totalmente
dentro da substância de Made in Hong Kong,
que trabalha tanto numa chave sentimentalista bastante
ancorada às "cores" da adolescência
quanto na provocação de uma matéria
que, se remete indiretamente a Tarantino quando associada
ao pôster, diz respeito antes ao próprio
cinema de gângster de alguns diretores de Hong
Kong (Ringo Lam, Tsui Hark: cineastas muito admirados
pelo diretor de Pulp Fiction).
Existe uma musicalidade em Made in Hong Kong
que deriva não só do trabalho com as cores
(por si só detentor de ritmo e melodia) – que
lembra o realizado por um Tsui Hark – mas também
pela composição de uma espécie
de canção do espaço urbano, com
toda a mescla de escalas e sonoridades que ela merece.
Em determinados momentos, parece que Fruit Chan pegou
Amores Expressos, de Wong Kar-wai, e adicionou-lhe
ingredientes de um certo cinema bufão, que não
teme a vulgaridade, a dramaturgia instável, o
humor de vários tipos (alguns deles também
presentes em Amores Expressos), a improvisação
de meios (Made in Hong Kong é totalmente
independente, feito na raça, com sobras de negativo
e financiado pelo diretor). Um outro filme do diretor,
Hollywood, Hong Kong, exibido no Festival do
Rio BR de 2002, dá continuidade à exposição
de uma juventude que vive em conjuntos habitacionais
pobres (um conglomerado de prédios em Made
in Hong Kong, a favela em Hollywood, Hong Kong)
e mantém contato permanente com uma infinidade
de objetos e signos da contemporaneidade (celulares,
Icq, tênis coloridos, roupas modernosas, filmes,
tatuagens), mas é um filme que não alcança
a mesma intensidade de Made in Hong Kong, talvez
por se concentrar num dos lados da equação
que está tão bem resolvida neste filme
anterior, de 1997. Hollywood, Hong Kong leva
mais a fundo o humor negro das "cenas de braços
cortados" – que já estão lá
em Made in Hong Kong – melhorando a piada através
da confusão com a tatuagem do personagem, que
após fazer uma cirurgia de re-implante descobre
que trocaram seu braço por outro que tinha uma
tatuagem exatamente igual à dele (é realmente
hilária a seqüência em que ele exibe
seus dois braços "esquerdos"). Made
in Hong Kong traz também o prazer do pastiche
(afinal de contas, pertence ao currículo de Fruit
Chan ter sido assistente em filmes de Jackie Chan, que
joga pimenta – leia-se humor pastelão – nos filmes
de kung fu), mas é o lado sentimental
o que completa sua equação de maneira
perfeita.
O filme, que foi um surpreendente sucesso de bilheteria,
é o ponto de interseção entre as
vidas de quatro jovens: Chung-Chau (o personagem narrador,
que trabalha cobrando dívidas para um sanguessuga
profissional conhecido como o Grande Irmão Cheung),
Jacky (um grandalhão com deficiência mental,
melhor amigo e eterno protegido de Chung-Chau), Ah Ping
(que possui uma doença crônica nos rins
e vive à espera de transplante) e Boshan (que
logo no início do filme se suicida ao atirar-se
de um prédio). Entre esses personagens se estabelece
uma conexão ao mesmo tempo metafísica
e glandular, eles trocam fluidos – à grande ou
pequena distância – sob ordem não só
do desejo, mas também da "magia". Chung-Chau
sonha toda noite com a jovem suicida que nem chegou
a conhecer pessoalmente (ele apenas ficou com a carta
de despedida que Jacky catou na rua), o que lhe rende
ejaculações durante os sonhos (em que
o corpo de Boshan às vezes aparece cercado de
sangue ou de leite – uma imagem indecisa entre o nascimento
e a morte). O nariz de Jacky, por sua vez, sangra quando
ele sente (ou pressente) a proximidade de Ah Ping. Jacky
nunca chega a encostar em Ah Ping, mas toda vez que
ela está por perto ocorre o sangramento, o que
resulta numa das melhores cenas do filme. Chung-Chau
e Jacky vão à casa de Ah Ping, mas ela
não está. Eles se dirigem ao hall com
três elevadores, parando em frente ao do meio.
O nariz de Jacky começa a sangrar, e ele diz
que ela deve estar subindo no elevador. Quando a porta
pantográfica se abre, contudo, saem do elevador
os bandidos que importunam a vida da mãe de Ah
Ping. Chung-Chau e Jacky, o primeiro absolutamente injuriado,
entram no elevador, e quando a porta está terminando
de fechar chega o elevador do lado, com Ah Ping, tudo
num único e belo plano que enquadra a ação
à meia-distância, em plano aberto o suficiente
para ter os atores de corpo inteiro na tela – uma cena
de comédia, mas que atenta para o fatal desencontro
entre os personagens, ou mesmo entre os habitantes da
grande cidade.
A doação do rim de Chung-Chau a Ah Ping,
a ligação visceral final entre eles (verdadeira
fusão de corpos), acaba não acontecendo.
O ponto que une as trajetórias desses jovens
é também um ponto de ebulição
– e, posteriormente, ruptura. Ebulição
que está na paixão de Chung-Chau e Ah
Ping (que coisa espetacular ele dizendo, em off,
que achou muito engraçado quando ela lhe contou
sobre a doença e lhe mostrou o saco plástico
que precisava sempre carregar junto ao corpo, para o
caso de uma emergência – "e eu estava me
apaixonando por aquela doentinha", ele completa),
a carta de Boshan inspirando e estreitando a relação
dos dois. Ebulição que está na
quantidade enorme de excrementos, fluidos, sêmen,
sangue, inflamações de ânimo (Chung-Chau
é muito explosivo, como mostra logo no início,
ao espancar um sujeito que havia machucado Jacky), situações-limite
(dívidas incontornáveis, matanças,
doenças que pioram, angústias que levam
ao suicídio). E ruptura porque nada parece querer
dar certo, porque existe uma doença que impede
Ah Ping de continuar a viver, porque Jacky se envolve
numa transação de drogas e é assassinado,
porque Boshan não suportou a complexidade da
vida e cometeu suicídio, porque Chung-Chau também
não conseguirá continuar sem Jacky, sem
sua mãe (que vai embora), sem o pai que praticamente
nunca teve – e, é claro, sem Ah Ping. O destino
de todos esses jovens converge univocamente para um
mesmo ponto, o mais triste e irreversível dos
fins: a morte. O discurso oficial feito no rádio,
sobre juventude e esperança, que encerra Made
in Hong Kong de forma até irônica,
realça justamente o tipo de "mensagem"
de que o filme quer fugir. Marcadamente antiteleológico,
o filme sem dúvida alguma lança comentários
fortes sobre a desilusão política e econômica,
sobre a desintegração social e familiar.
Mas seu verdadeiro tema é a captação
de um tempo que, apesar de aparentemente fugidio e fraturado,
remete, no fim das contas, a uma eternidade: a da juventude,
época em que não se tem consciência
exata de quando as coisas começaram e quando
vão terminar. Os jovens que morrem ou se suicidam
no filme não têm mais o que enfrentar,
ficam imunizados, conservados na beleza da "flor
da idade". (É impressionante a recorrência
da nostalgia precoce como sentimento dominante em alguns
filmes que abordam a juventude de Hong Kong e Taiwan.)
Dois diálogos definem bem o que é Made
in Hong Kong. O primeiro é quando eles vão
ao cemitério numa parte alta da cidade. Ah Ping
abraça a cintura de Chung-Chau e pergunta: "Quando
eu morrer, você me terá em seus braços?".
Ele passa o braço em torno dela, que continua:
"O que fará se eu desaparecer?", ao
que ele rapidamente responde: "Retomaremos o tempo
querido, ok?". Não só essa cena,
mas toda a relação entre os dois – que
tem todo um lado brincalhão, provocativo (infantil
mesmo) contrabalançado pelo enorme carinho e
pelo jeito cuidadoso que um desenvolve pelo outro –
é absurdamente bonita. O outro diálogo
é o de Chung-Chau com um amigo que está
se casando. Chung-Chau pergunta: "Em que situação
matar alguém deixa de ser crime?", e o amigo
responde: "Numa guerra". Daí em diante
Chung-Chau declara guerra (ao mundo?) e comete os crimes
que lhe custarão a perseguição
da polícia e de mafiosos. Abraçado à
lápide de Ah Ping, ele dá um tiro na cabeça,
para na manhã seguinte ser encontrado por um
grupo de crianças que riem sardonicamente de
seu corpo. Imagem política, imagem sincera, imagem
visceral, imagem sentimental: Made in Hong Kong
é tudo isso e mais alguma coisa indefinível.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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