A afetação
de colocar uma barra, para criar um trocadilho já
no título, indispõe. Nasce um medo que
entretanto os primeiros momentos do filme irão
logo afastar de vista. Não se trata aqui, como
se poderia supor, de um joguinho de referências
bem-antenadas ou de um manejo espertinho de técnicas
de uma certa videoarte ou arte contemporânea.
Filme conceitual que é, M/Other não
é um filme-instalação, mas um filme
de instalação. Instalação
num lugar (a casa de Aki), instalação
na intimidade de uma relação homem-mulher,
instalação na vida pessoal de uma mulher
e em seus dilemas. Instalação, mais profundamente
e é daí que surge o nome do filme,
que a partir da experiência nos parece muito apropriado
, na problemática dos valores contemporâneos
de um duplo papel atribuído à mulher:
um, imemorial, de mãe e dona de casa, e outro,
recente, de profissional independente, que cria seu
sustento fora dos afazeres domésticos. M/Other
nos ganha exatamente no momento em que as fórmulas
mais batidas para o tratamento de questões como
essas, o filme-de-tese, o drama interior, o melodrama
de questionamento da sociedade, parecem todas ausentes
da captação que a câmera faz de
todos os momentos que constituem a narração
do filme.
A primeira coisa que o
filme faz situar é uma casa. É de manhã
cedo, nos encontramos num corredor vazio, até
que uma porta se abre e vemos passar um, depois o outro,
membros do casal. Discussão cotidiana, café
da manhã, sair para trabalhar. A apreensão
dos detalhes de uma vida cotidiana, tantas vezes vistas
no cinema, mesmo que parcialmente, parece aqui inédita:
a caracterização dos personagens e a instalação
do drama caem para o segundo plano e o registro puro
e simples do transcorrer de um espaço de tempo
parece nos dominar a ponto de parecer que pertencemos
àquele lugar, àquela hora e àquele
casal. Pertencemos até certo ponto: a câmera,
casta, insiste em nos manter como espectadores, guardando
sempre uma certa distância da cena que transcorre,
preferindo sempre cortar muito pouco de um plano para
outro, operando movimentos apenas quando se faz necessário
manter alguma coisa presente no quadro (não necessariamente
uma pessoa), captando a imagem sempre a partir da luz
possível, o que implica dizer que, por diversas
vezes, os personagens são tomados em zonas de
sombra que o filme nunca fará questão
de iluminar (tanto no sentido luminoso quanto no narrativo).
História: a designer
Aki vive com Tetsuro, dono de uma pequena cadeia de
restaurantes em crise. Os dois vivem maritalmente mas
sem compromisso religioso ou jurídico. Num belo
dia, Tetsuro recebe atende seu telefone celular e recebe
a notícia que sua ex-esposa, com quem teve um
filho, acaba de sofrer um acidente de trânsito
que a deixará por cerca de um mês no hospital.
Só resta a Tetsuro a opção de abrigar
o filho na casa de sua nova parceira. O mal-estar se
instala: Aki não foi consultada na decisão,
ela nunca foi apresentada à criança, e
pior que tudo , ocupados como os dois são,
vai acabar cabendo a Aki fazer concessões profissionais
para cuidar de um filho que não é seu.
É nessa metamorfose de papéis que se constrói
o conflito do filme: uma outra (other) terá que
fazer o papel da mãe (mother), ao passo que mãe
(mother) até então é para Aki um
papel outro aos que ela desempenha (other). Fricção
de papéis que instala a ficção:
num primeiro momento Aki tenta viver e desempenhar ambas
as funções; num segundo a estratégia
se revela insuficiente, surge o incômodo, o casal
briga, ensaia a separação, discute, volta
e assim por diante.
Ainda assim, todo esse
relato só conta metade ou até menos
da história. Uma ficção
de reconciliação consigo mesmo ou com
o outro, de conciliação de papéis
está no filme, mas não é o único
objetivo do projeto. É, ao contrário,
mais o ponto de partida para o verdadeiro projeto que
paira por baixo de M/Other mas que acaba, para
nosso deleite, por dominá-lo por completo: a
curiosidade por captar os movimentos de uma família
durante uma refeição que se mostra traumática
ou uma sessão de lavagem de pratos que transforma-se
numa violenta briga de casal, ou até e
talvez principalmente momentos mais prosaicos,
como uma reunião de crianças brincando
ou um fim de noite. Estamos aqui tão perto de
um dos melhores Bergman Cenas de um Casamento
quanto de um tremendo episódio em tempo
real de um Big Brother, recheado com algumas cenas de
corpos imprevisíveis à Pialat. Um gosto
pelo questionamento dos papéis femininos numa
relação que se alia sem contradição
ao gosto por uma sensação, um transcorrer
de tempo que vem sendo um dos principais eixos de interesse
do cinema contemporâneo mais interessante (de
Hou Hsiao-hsien a Vincent Gallo, de Naomi Kawase a Apichatpong
Weerasethakul, de Gus Van Sant a Claire Denis), e por
fim uma vontade de registrar como um corpo vai do zero
absoluto de movimentos até a velocidade infinita
de um espasmo. À
crise reinante de ficção que paira sobre
muito do cinema que se faz hoje, que se percebe em filmes
que contam sempre o mesmo cenário arquetípico
ou naqueles, mais vivazes, que ficcionalizam a própria
impossibilidade de ficção, o Nobuhiro
Suwa de M/Other parece dizer que, da mesma forma
que uma mulher consegue fazer viver simultaneamente
os valores velhos e os novos, um cineasta pode reavivar
a velha dramaturgia utilizando novos procedimentos que
partem de uma diferente vontade de registro.
Se há um protagonista
em M/Other, é justamente a casa. Não
só porque cerca de 80% do filme transcorre nela,
mas principalmente porque é ela que dá
tom ao filme, é ela que a câmera insiste
em capturar sempre através de ângulos distintos,
nem sempre os mais "legíveis" (no sentido
de mostrar mais espaço ou mostrar os espaços
mais iluminados), mas os que instauram mais atmosfera,
que mais preenchem a tela de intimidade e clima. Uma
casa com paredes envidraçadas na sala de estar,
que tornam desnecessária a luz incidente para
filmar e criam uma ambiência de meia-luz perfeita
e nisso o filme se distingue totalmente do "tudo
luz" das iluminações de reality shows
para que transcorram os eventos do filme. Isso
dá, não custa dizer, uma naturalidade
surpreendente a tudo aquilo que vemos encenado no filme.
Tanto a criança Shunsuke (Takahashi Ryudai) quanto
o casal (ela Watanabe Makiko, ele Miura Tomokazu) desenvolvem-se
na frente da câmera com uma naturalidade impressionante,
sem os tons a mais que caracterizam geralmente a interpretação
naturalista e sem os tons a menos que costumeiramente
têm as atuações não-profissionais
(ou anti-naturalistas). O que, aliado com um afiado
senso de timing, faz com que determinadas cenas
pareçam nunca ter sido vistas em cinema antes,
ou ao menos nunca com essa contundência: a última
discussão de relacionamento do casal, na cama,
tem silêncios que parecem escavar o fundo da alma
dos dois. Cinema do entre, da imbricação
do tradicional e do novo, na temática ou em sua
própria forma, M/Other dramatiza a possibilidade
das formas de convivência de opostos (mother e
other) e sai-se com um resultado inestimável.
Ruy Gardnier
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