M/OTHER
Nobuhiro Suwa, Japão, 1999
 

A afetação de colocar uma barra, para criar um trocadilho já no título, indispõe. Nasce um medo que entretanto os primeiros momentos do filme irão logo afastar de vista. Não se trata aqui, como se poderia supor, de um joguinho de referências bem-antenadas ou de um manejo espertinho de técnicas de uma certa videoarte ou arte contemporânea. Filme conceitual que é, M/Other não é um filme-instalação, mas um filme de instalação. Instalação num lugar (a casa de Aki), instalação na intimidade de uma relação homem-mulher, instalação na vida pessoal de uma mulher e em seus dilemas. Instalação, mais profundamente – e é daí que surge o nome do filme, que a partir da experiência nos parece muito apropriado –, na problemática dos valores contemporâneos de um duplo papel atribuído à mulher: um, imemorial, de mãe e dona de casa, e outro, recente, de profissional independente, que cria seu sustento fora dos afazeres domésticos. M/Other nos ganha exatamente no momento em que as fórmulas mais batidas para o tratamento de questões como essas, o filme-de-tese, o drama interior, o melodrama de questionamento da sociedade, parecem todas ausentes da captação que a câmera faz de todos os momentos que constituem a narração do filme.

A primeira coisa que o filme faz situar é uma casa. É de manhã cedo, nos encontramos num corredor vazio, até que uma porta se abre e vemos passar um, depois o outro, membros do casal. Discussão cotidiana, café da manhã, sair para trabalhar. A apreensão dos detalhes de uma vida cotidiana, tantas vezes vistas no cinema, mesmo que parcialmente, parece aqui inédita: a caracterização dos personagens e a instalação do drama caem para o segundo plano e o registro puro e simples do transcorrer de um espaço de tempo parece nos dominar a ponto de parecer que pertencemos àquele lugar, àquela hora e àquele casal. Pertencemos até certo ponto: a câmera, casta, insiste em nos manter como espectadores, guardando sempre uma certa distância da cena que transcorre, preferindo sempre cortar muito pouco de um plano para outro, operando movimentos apenas quando se faz necessário manter alguma coisa presente no quadro (não necessariamente uma pessoa), captando a imagem sempre a partir da luz possível, o que implica dizer que, por diversas vezes, os personagens são tomados em zonas de sombra que o filme nunca fará questão de iluminar (tanto no sentido luminoso quanto no narrativo).

História: a designer Aki vive com Tetsuro, dono de uma pequena cadeia de restaurantes em crise. Os dois vivem maritalmente mas sem compromisso religioso ou jurídico. Num belo dia, Tetsuro recebe atende seu telefone celular e recebe a notícia que sua ex-esposa, com quem teve um filho, acaba de sofrer um acidente de trânsito que a deixará por cerca de um mês no hospital. Só resta a Tetsuro a opção de abrigar o filho na casa de sua nova parceira. O mal-estar se instala: Aki não foi consultada na decisão, ela nunca foi apresentada à criança, e – pior que tudo –, ocupados como os dois são, vai acabar cabendo a Aki fazer concessões profissionais para cuidar de um filho que não é seu. É nessa metamorfose de papéis que se constrói o conflito do filme: uma outra (other) terá que fazer o papel da mãe (mother), ao passo que mãe (mother) até então é para Aki um papel outro aos que ela desempenha (other). Fricção de papéis que instala a ficção: num primeiro momento Aki tenta viver e desempenhar ambas as funções; num segundo a estratégia se revela insuficiente, surge o incômodo, o casal briga, ensaia a separação, discute, volta e assim por diante.

Ainda assim, todo esse relato só conta metade – ou até menos – da história. Uma ficção de reconciliação consigo mesmo ou com o outro, de conciliação de papéis está no filme, mas não é o único objetivo do projeto. É, ao contrário, mais o ponto de partida para o verdadeiro projeto que paira por baixo de M/Other mas que acaba, para nosso deleite, por dominá-lo por completo: a curiosidade por captar os movimentos de uma família durante uma refeição que se mostra traumática ou uma sessão de lavagem de pratos que transforma-se numa violenta briga de casal, ou até – e talvez principalmente – momentos mais prosaicos, como uma reunião de crianças brincando ou um fim de noite. Estamos aqui tão perto de um dos melhores Bergman – Cenas de um Casamento – quanto de um tremendo episódio em tempo real de um Big Brother, recheado com algumas cenas de corpos imprevisíveis à Pialat. Um gosto pelo questionamento dos papéis femininos numa relação que se alia sem contradição ao gosto por uma sensação, um transcorrer de tempo que vem sendo um dos principais eixos de interesse do cinema contemporâneo mais interessante (de Hou Hsiao-hsien a Vincent Gallo, de Naomi Kawase a Apichatpong Weerasethakul, de Gus Van Sant a Claire Denis), e por fim uma vontade de registrar como um corpo vai do zero absoluto de movimentos até a velocidade infinita de um espasmo. À crise reinante de ficção que paira sobre muito do cinema que se faz hoje, que se percebe em filmes que contam sempre o mesmo cenário arquetípico ou naqueles, mais vivazes, que ficcionalizam a própria impossibilidade de ficção, o Nobuhiro Suwa de M/Other parece dizer que, da mesma forma que uma mulher consegue fazer viver simultaneamente os valores velhos e os novos, um cineasta pode reavivar a velha dramaturgia utilizando novos procedimentos que partem de uma diferente vontade de registro.

Se há um protagonista em M/Other, é justamente a casa. Não só porque cerca de 80% do filme transcorre nela, mas principalmente porque é ela que dá tom ao filme, é ela que a câmera insiste em capturar sempre através de ângulos distintos, nem sempre os mais "legíveis" (no sentido de mostrar mais espaço ou mostrar os espaços mais iluminados), mas os que instauram mais atmosfera, que mais preenchem a tela de intimidade e clima. Uma casa com paredes envidraçadas na sala de estar, que tornam desnecessária a luz incidente para filmar e criam uma ambiência de meia-luz perfeita – e nisso o filme se distingue totalmente do "tudo luz" das iluminações de reality shows – para que transcorram os eventos do filme. Isso dá, não custa dizer, uma naturalidade surpreendente a tudo aquilo que vemos encenado no filme. Tanto a criança Shunsuke (Takahashi Ryudai) quanto o casal (ela Watanabe Makiko, ele Miura Tomokazu) desenvolvem-se na frente da câmera com uma naturalidade impressionante, sem os tons a mais que caracterizam geralmente a interpretação naturalista e sem os tons a menos que costumeiramente têm as atuações não-profissionais (ou anti-naturalistas). O que, aliado com um afiado senso de timing, faz com que determinadas cenas pareçam nunca ter sido vistas em cinema antes, ou ao menos nunca com essa contundência: a última discussão de relacionamento do casal, na cama, tem silêncios que parecem escavar o fundo da alma dos dois. Cinema do entre, da imbricação do tradicional e do novo, na temática ou em sua própria forma, M/Other dramatiza a possibilidade das formas de convivência de opostos (mother e other) e sai-se com um resultado inestimável.

Ruy Gardnier

 

 




M/Other de Nobuhiro Suwa