O cinema dos irmãos Coen sempre
foi uma questão de linguagem: antes de tudo,
de linguagem cinematográfica; mas também,
e de forma essencial, da língua (no caso, a inglesa)
e seus meandros. Matadores de Velhinhas, neste
sentido, marca um retorno dos irmãos a momentos
mais felizes do que seus dois últimos filmes,
em termos de os sentirmos mais livres e despreocupados,
e com isso chegando a melhores resultados.
A impressão que deu foi que, no jogo (fundamental
para o seu cinema) de questionamentos sobre narrações,
adaptações, releituras e possibilidades
da enunciação, após adaptarem a
Odisséia para o sul dos EUA em E Aí
Meu Irmão Cadê Você?, os irmãos
encontraram uma parede: para onde mais se poderia ir?
Quão mais absurda se pode tornar a problematização
da possibilidade de uma criação "original"
a essas alturas do campeonato? Então, eles fizeram
dois filmes incrivelmente frios (o que nem seus trabalhos
anteriores mais formalistas nunca foram): duas retomadas
de gêneros (O Homem que não Estava Lá
e o noir; O Amor Custa Caro e a "screwball comedy")
que pareciam ter muito pouco a dizer sobre porquê
retomar esses gêneros agora, para além
de exercitar a já conhecida habilidade cinematográfica
dos autores.
Quando se anunciou Matadores de Velhinhas, por
se tratar de uma refilmagem (a matriz do passado do
cinema não consegue nunca estar distante dos
irmãos), confesso que esperei pelo pior: mais
uma fria tentativa de emulação de gêneros,
de jogo com o passado. Pois o filme tem muito pouco
disso, e muito mais da retomada de um simples prazer
de filmar, de encenar, de "colocar em cena". O que os
irmãos Coen retomam aqui é uma liberdade
quase insana de relação com a idéia
de narrativa e de enredo dramático, onde toda
a abstração de uma trama quase inexistente,
insípida, e propositalmente mal desenvolvida
serve para os fins do deleite puro e simples de criar
um universo audiovisual, de brincar com tipos, com atores,
com encenação, com o mundo do cinema,
em suma.
E nisso nós precisamos voltar para a questão
da língua inglesa. Matadores de Velhinhas
é um filme onde a palavra falada, e a declamação
desta pelos atores, possui papel central na fruição
do espetáculo. Não por acaso o personagem
de Tom Hanks praticamente só existe pela sua
maneira de estruturar o discurso, que é em si
uma forma de ordenar o mundo, de colocar em cena (papel
que ele exerce em toda a narrativa). Sem dúvida
há resquícios na interpretação
de Hanks do excesso de "auto-congratulação"
pela genialidade dos diálogos que tem marcado
o trabalho recente dos Coen. No entanto, nos momentos
mais funcionais (que se dão em especial nas belas
cenas dos duelos falados com a velhinha dona da casa),
há o simples prazer de ouvir a língua
inglesa e usá-la como meio de revelação
de personalidade, de multiplicidade de sentidos e significados,
e de recriação do mundo. Algo que também
está presente na fala de todos os outros, desde
o General monossilábico ao brutamontes quase
incapaz da fala, até principalmente o personagem
de Marlon Wayans e sua "gíria" exagerada.
Sobre este exagero, aqui se constrói uma volta
dos Coen ao melhor de sua capacidade de criação
de tipos no limite do absurdo. Wayans parece interpretar,
se isso é possível, uma paródia
da paródia que ele fazia dos "negros do gueto"
na série Todo Mundo em Pânico. Só
no universo audiovisual dos Coen pode fazer sentido
parodiar uma paródia: o que resta depois disso?
A encenação dos irmãos nos traz
à lembrança uma série de outros
filmes, como não podia deixar de ser (desde John
Landis e seu Príncipe em Nova York nas
cenas gospel ao Tarantino da reunião dos bandidos
num restaurante), mas acima de tudo nos faz ingressar
num universo unicamente audiovisual, que não
faz o menor sentido fora das telas - o que sempre foi
uma capacidade toda deles. Neste sentido, as cenas de
introdução dos personagens do bando lembram
muito alguns dos expedientes usados pelo mesmo Tarantino
em Kill Bill e seu isolamento de situações/gêneros/ambiências
- mas não se trata aqui de falar de influência
e sim de expediente parecido, para fins completamente
diferentes.
Por isso tudo, assistir a Matadores de Velhinhas
é um prazer - além de muito, muito engraçado
(o que andava em falta no cinema deles). Mas, acima
de tudo, é um prazer muito ousado, porque os
irmãos fazem questão de diminuir ao mínimo
a noção de lógica narrativa, de
construção de personagens, de desenvolvimento
dramatúrgico. O filme funciona como uma série
quase autônoma de sketches (nos quais uma constante
é o jogo com o tempo cômico), alguns especialmente
hilários (o da loja de waffles é desde
já um clássico), onde o que fica claro
desde o início é que as únicas
regras que valem são as da manipulação
da língua e da linguagem do cinema. Quem quiser
embarcar no jogo proposto, porém, terá
retorno garantido em diversão e simples prazer
cinematográfico.
Eduardo Valente
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