Matadores de Velhinhas
Joel e Ethan Coen, The ladykillers, EUA, 2004

O cinema dos irmãos Coen sempre foi uma questão de linguagem: antes de tudo, de linguagem cinematográfica; mas também, e de forma essencial, da língua (no caso, a inglesa) e seus meandros. Matadores de Velhinhas, neste sentido, marca um retorno dos irmãos a momentos mais felizes do que seus dois últimos filmes, em termos de os sentirmos mais livres e despreocupados, e com isso chegando a melhores resultados.

A impressão que deu foi que, no jogo (fundamental para o seu cinema) de questionamentos sobre narrações, adaptações, releituras e possibilidades da enunciação, após adaptarem a Odisséia para o sul dos EUA em E Aí Meu Irmão Cadê Você?, os irmãos encontraram uma parede: para onde mais se poderia ir? Quão mais absurda se pode tornar a problematização da possibilidade de uma criação "original" a essas alturas do campeonato? Então, eles fizeram dois filmes incrivelmente frios (o que nem seus trabalhos anteriores mais formalistas nunca foram): duas retomadas de gêneros (O Homem que não Estava Lá e o noir; O Amor Custa Caro e a "screwball comedy") que pareciam ter muito pouco a dizer sobre porquê retomar esses gêneros agora, para além de exercitar a já conhecida habilidade cinematográfica dos autores.

Quando se anunciou Matadores de Velhinhas, por se tratar de uma refilmagem (a matriz do passado do cinema não consegue nunca estar distante dos irmãos), confesso que esperei pelo pior: mais uma fria tentativa de emulação de gêneros, de jogo com o passado. Pois o filme tem muito pouco disso, e muito mais da retomada de um simples prazer de filmar, de encenar, de "colocar em cena". O que os irmãos Coen retomam aqui é uma liberdade quase insana de relação com a idéia de narrativa e de enredo dramático, onde toda a abstração de uma trama quase inexistente, insípida, e propositalmente mal desenvolvida serve para os fins do deleite puro e simples de criar um universo audiovisual, de brincar com tipos, com atores, com encenação, com o mundo do cinema, em suma.

E nisso nós precisamos voltar para a questão da língua inglesa. Matadores de Velhinhas é um filme onde a palavra falada, e a declamação desta pelos atores, possui papel central na fruição do espetáculo. Não por acaso o personagem de Tom Hanks praticamente só existe pela sua maneira de estruturar o discurso, que é em si uma forma de ordenar o mundo, de colocar em cena (papel que ele exerce em toda a narrativa). Sem dúvida há resquícios na interpretação de Hanks do excesso de "auto-congratulação" pela genialidade dos diálogos que tem marcado o trabalho recente dos Coen. No entanto, nos momentos mais funcionais (que se dão em especial nas belas cenas dos duelos falados com a velhinha dona da casa), há o simples prazer de ouvir a língua inglesa e usá-la como meio de revelação de personalidade, de multiplicidade de sentidos e significados, e de recriação do mundo. Algo que também está presente na fala de todos os outros, desde o General monossilábico ao brutamontes quase incapaz da fala, até principalmente o personagem de Marlon Wayans e sua "gíria" exagerada.

Sobre este exagero, aqui se constrói uma volta dos Coen ao melhor de sua capacidade de criação de tipos no limite do absurdo. Wayans parece interpretar, se isso é possível, uma paródia da paródia que ele fazia dos "negros do gueto" na série Todo Mundo em Pânico. Só no universo audiovisual dos Coen pode fazer sentido parodiar uma paródia: o que resta depois disso? A encenação dos irmãos nos traz à lembrança uma série de outros filmes, como não podia deixar de ser (desde John Landis e seu Príncipe em Nova York nas cenas gospel ao Tarantino da reunião dos bandidos num restaurante), mas acima de tudo nos faz ingressar num universo unicamente audiovisual, que não faz o menor sentido fora das telas - o que sempre foi uma capacidade toda deles. Neste sentido, as cenas de introdução dos personagens do bando lembram muito alguns dos expedientes usados pelo mesmo Tarantino em Kill Bill e seu isolamento de situações/gêneros/ambiências - mas não se trata aqui de falar de influência e sim de expediente parecido, para fins completamente diferentes.

Por isso tudo, assistir a Matadores de Velhinhas é um prazer - além de muito, muito engraçado (o que andava em falta no cinema deles). Mas, acima de tudo, é um prazer muito ousado, porque os irmãos fazem questão de diminuir ao mínimo a noção de lógica narrativa, de construção de personagens, de desenvolvimento dramatúrgico. O filme funciona como uma série quase autônoma de sketches (nos quais uma constante é o jogo com o tempo cômico), alguns especialmente hilários (o da loja de waffles é desde já um clássico), onde o que fica claro desde o início é que as únicas regras que valem são as da manipulação da língua e da linguagem do cinema. Quem quiser embarcar no jogo proposto, porém, terá retorno garantido em diversão e simples prazer cinematográfico.

Eduardo Valente