A ausência de entrevistas,
com a consequente filiação ao cinema direto,
coloca Justiça no contrafluxo. Se o procedimento
hegemônico dos filmes documentais brasileiros
contemporâneos é calcado no "dar a
voz", seguindo e diluindo o método instaurado
por Jean Rouch, temos neste exemplar um dos raros casos
de uma busca de transparência de artifícios
na intervenção da câmera na cena
para se criar uma dramaturgia do real, como se as cenas
exibidas não fossem moldadas pela presença
de um aparelho "ignorado" por quem para ele fala e interpreta.
O procedimento gera dois tipos de efeitos: primeiro,
quando vemos detentos, advogados e juízes no
tribunal, não há indícios da percepção
deles da câmera, embora não saibamos qual
seriam seus comportamentos sem ela ali. O efeito, de
qualquer forma, é exitoso. Já quando a
câmera acompanha os personagens até seus
lares, de modo a nos colocar em contato com suas intimidades,
a operação é um fracasso na busca
da transparência. Não há verdade
alguma nas conversas durante as refeições,
nos momentos privados, e a câmera se faz notar
sem se tornar evidente, menos por culpa da direção,
mais por incapacidade dos personagens que, sabendo-se
observados, não entram no jogo da encenação
sem pudor algum: eles dão mostras visíveis
de viverem aquela situação com algum constrangimento.
O mesmo acontece nas cenas domésticas de Ser
e Ter, quando a frágil encenação
do real motiva um retorno ao real fora de quadro, revelando
(sem evidenciar) a presença da equipe. Nestes
momentos, a verossimilhança, meta visada pela
diretora Maria Augusto Ramos para suspender nossa descrença,
é aniquilada.
Da primeira à última instância,
em cada imagem e palavra, Justiça trata
de verossimilhança. Ela está em jogo nos
depoimentos dos detentos ao juiz, durante os quais a
construção de uma narrativa tem de se
tornar plausível (seja verdadeira ou não
em sua natureza factual), e também na percepção
do juíz como crítico da narrativa. Não
importa o que aconteceu de fato - isso implicaria a
necessidade de câmeras onividentes para testemunhar
a integralidade das ações julgadas. Importam,
portanto, as versões. Na guerra entre elas, somos
afastados de uma verdade absoluta (a qual só
teria acesso o tal olho onisciente) e entramos na rede
de dúvidas, cuja lógica é a da
descrença. Desconfiamos de todos até provas
em contrário. Que provas? Aquilo que dizem ser
as provas (os acusadores e os acusados). Ou seja: a
prova em contrário, nesse embate de narrativas,
é a contradição. No entanto, quando
uma versão narrada para o juiz difere da narrada
para a defensora pública, uma e outra captada
pela câmera que nos coloca em contato com os relatos,
temos algo mais complexo. O réu autoproclamado
inocente no tribunal diz que é culpado quando
está fora dele, não se importa com a câmera.
Ter sua confissão registrada por ela, suposta
detectora da verdade naquele momento, não parece
ter importância para o réu. Ele seria tão
descrente na imagem enquanto revelação
que, diante da captação da sua, diante
de sua revelação, apenas encara sua fala
e sua imagem como imagem e representação,
não como prova de culpa, porque parece supor
que ninguém acredita nas imagens. É só
um filme, afinal.
Quando sai dessa questão interior, a da imagem
e da representação (questão do
filme e do sistema judiciário), Justiça
torna-se apenas bem intencionado, com todo o maniqueísmo
contido nas boas intenções. Isso fica
evidente por meio de três personagens e dois tipos
de enfoque. Para mostrar que um juiz é gente
boa, em contraste com uma colega linha dura, a câmera
filma-o na rua, aproximando-se de um vendedor de jornal,
ao qual faz uma pergunta que, para bom entendedor, revela
sua postura crítica da boa causa: ele é
apresentado como cidadão e não já
como juiz. Busca-se uma imagem fora de sua função,
e nas cenas com a família, essa imagem é
salientada. A mesma operação é
conduzida para se acompanhar a defensora pública:
sua conversa durante o jantar em casa é empregada
para o filme colocar sua postura em relação
ao sistema judiciário. Não se dá
voz a um contraponto para essas colocações.
Quando se chega perto disso, ao se acompanhar a juíza
linha dura, é negada a ela a imagem privada,
limitando-se a mostrá-la como um uniforme, como
instituição, como vaidade do poder, sem
buscar algo além disso. Não haveria problema
algum se, em relação aos outros personagens,
esse procedimento tivesse sido o mesmo, o da concentração
na superfície e no símbolo da superfície
- em uma espécie de variação dos
filmes de Frederick Wiseman. Mas as opções
diferentes, para personagens inseridos em uma mesma
lógica, em lados diferentes, serve só
ao maniqueísmo. Muito pobre para um filme crítico
com a própria representação.
Cléber Eduardo
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