Em uma primeira olhada, Homem-aranha
2 parece um filme pouco instigante. Mais (ou menos)
que isso, é portador de uma mecânica de
mão dupla que vem se tornando tendência
no cinema americano contemporâneo e que poderia
fazer dele um espetáculo mais para os cadernos
de cultura (e de economia) do que para as salas de cinema:
De um lado da operação está a trama
do filme, marcada pelo medo do risco: Homem-aranha
2 toma todo cuidado do mundo para não se
deixar fugir da ditadura do filme de herói. Não
é nem um filme de gênero. É um filme
daquele gênero mesmo e ponto. Até por isso,
e como típico blockbuster americano, tem
a trama constituída por tudo aquilo que pode
fazer o público se sentir familiarizado e os
produtores se sentirem seguros. A história é
aquela que se vê habitualmente em séries
depois que já se conhece o herói: ele
tem que se confrontar com as dificuldades que seu próprio
estatuto de herói lhe impõe. É
a mesma trama de Superman 2 e de tantos outros
filmes, se olhada bem de perto.
Do outro lado, fica um mecanismo de tentativa de purificação
que tenta ser operado nos últimos tempos um certo
cinema de ação/aventura. Enquanto vários
blockbusters têm apostado em uma fórmula
de tributo ao trash (O exterminador do futuro
3, As panteras), outros têm apostado
em um tipo de elegância baseado em uma afirmação
como filme "de arte" antes de como filme de
aventura. O mecanismo pode vir pela entrada de atores
de alto nível (o que já se tornou uma
tradição e não é um traço
novo e que, na verdade, afirma a obra mais como filme
"de qualidade" do que como filme "de
arte"), mas o elemento mais importante dessa operação
de busca por reputação tem vindo nas tramas:
é um desejo de aprofundamento psicológico
constante. As histórias de aventura querem deixar
de ser metáforas, querem abandonar a fábula,
querem perder a dimensão de sentido global, para
passar a ser histórias em que o dramas dos personagens,
esses sim, sejam centrais. Isso é forte, por
exemplo, na série X-Men, sobretudo no
segundo filme. E é de fato o que faz de O
Hulk o melhor dos filmes do gênero recentemente.
Mas diante de Homem-aranha 2 é difícil
não se ter a impressão de que o filme
parte do desejo dessa mecânica, antes de ter o
desejo de sua história. Quase tudo que se vê
no filme parece estar lá para dizer: "Sou
um blockbuster, mas posso ser também um
filme sério" ou "Sou um filme denso
apesar de ser um filme de super-herói".
É isso que está em jogo no drama amoroso
de Peter Parker e na problemática de seu rendimento
acadêmico e financeiro em oposição
a sua vida de justiceiro. Os sofrimentos de um rapaz
que tem que escolher entre se sacrificar pelos outros
ou pensar em si. Por algum motivo, os roteiristas de
Hollywood acreditam que a presença desse tipo
de trama faz o filme galgar um degrau, desculpa uma
eventual impressão de que aquele filme custou
milhões de dólares, que tem animação
por computador e que seria pouco importante como obra.
É um problema a ser pensado longamente hoje:
o roteiro de Homem-aranha 2 de certa forma carrega
em si o press-release do filme. O roteirista
é, ao mesmo tempo, assessor de imprensa.
Não precisariam disso. Pois há um outro
elemento no filme que faz dele um trabalho singular.
Homem-aranha 2 é um filme centrado na
filmagem, porque é um filme sobre a relação
entre indivíduo e espaço. E, é
preciso dizer, como filme de super-herói é
um marco nesse sentido.
Superman, Batman, Homem-aranha e Hulk são os
quatro super-heróis mais conhecidos e marcantes
da cultura pop. Dos três, apenas o monstro verde
não tem uma ligação central com
a cidade em que vive/atua. Curiosamente (ou não),
as três cidades são Nova York. Mesmo que
com outros nomes nos casos do Homem de Aço e
do Homem-morcego, as cidades são praticamente
personagens das histórias. Mas no caso do Superman
e Batman, esses personagens são coadjuvantes
de uma maneira particular: existem em função
de seus heróis. Talvez até por isso sejam
uma Nova York sem seu nome.
Metrópolis é a cidade de Superman. É
nela que vive e trabalha Clark Kent, o alter ego do
alienígena Kal-El. Lá ele vive como um
pacato repórter do jornal Daily Planet. Ora,
já levantei o tema da tendência
conservadora de Superman em outro momento, aqui
mesmo em Contracampo. Superman é um super-herói
da conservação, ele não quer que
a história mude. Ele é defensor, desde
os quadrinhos, "da verdade, da justiça e
do estilo americano". Estilo que é perfeito
e não deve mudar. Mas o importante a se reter
daquela discussão é justamente o papel
da cidade nela. Metrópolis é uma representação
de Nova York, idealizada a partir de sua imagem na Era
de Ouro: Nova York é a metrópole por definição.
A NY de Superman é uma cidade imutável,
totêmica, conservadora como ele. Ele é
herói para que ela não cesse de ser assim.
Nova York não muda porque é boa demais
para precisar mudar.
Sobre Batman, muito já se falou. O Homem-morcego
tem com Gotham uma relação de absoluta
desesperança. Ele é herói porque
a cidade é decadente. Nasceu de sua problemática
com o crime. Gotham é uma Nova York noturna e
depressiva, em que o crime se move e em que o lutador
contra o crime tem que ser notívago. Nova York
não muda porque é ruim demais para conseguir
mudar.
Mas parece surpreendente que essa dimensão mais
forte do Homem-Aranha tenha sido pouco explorada até
agora: do grupo desses super-heróis, o único
que tem uma ligação especular com a cidade
que elegeu como nicho é ele. A Nova York de Peter
Parker, o jovem fotógrafo que se torna super-herói
por acidente, para começar é Nova York
mesmo, sem subterfúgios. Mas a marca mais importante
é que o personagem é que é motivado
pela urbanidade e não o contrário. O Homem-Aranha
trafega pela cidade: atado a seus fios, ele flana por
Manhattan com um espírito de descoberta incomparável.
E é isso que dá ao filme de Sam Raimi
o tom singular que ele tem, sutilmente, em luta contra
seus gritantes efeitos de despiste. Ao contrário,
tudo no Homem-Aranha lembra sua relação
com a cidade (não é à toa que ele
é o "Friendly Neighbour").
Para pensar este elemento da continuação,
antes de uma descrição da câmera
de Raimi, que nos fará revisitar também
a história da cidade, uma boa lembrança
é o teaser
trailer que seria a cena final original de Homem-Aranha,
o primeiro filme, aquela que teria sido retirada da
montagem final por luto: ladrões engravatados
invadem um edifício e promovem um grande roubo.
Na fuga, saem de helicóptero, baixo, pelas ruas
da cidade. De repente, são impedidos de prosseguir
- algo os detêm. Em outro corte, o helicóptero
começa a retornar para trás e fica preso.
Ao final da seqüência, descobrimos que eles
estão atados a uma teia gigante, montada pelo
herói entre as torres gêmeas do World Trade
Center.
Ora, Nova York é uma cidade de mudanças.
A começar pela estrutura urbana de Manhattan,
que é o guia da câmera de Raimi. A cidade
como em sua conformação atual nasceu no
começo do século XIX. Tinha então
cerca de 200 mil habitantes, mas um grupo de planejamento
a vislumbrou com mais de um milhão. Um espaço
de vegetação e topografia irregulares,
a área foi, por força de um plano urbanístico,
terraplenada em toda sua extensão, para dar lugar
a um plano urbanístico que criou os sistema em
forma de grade que marca a cidade até hoje: grandes
avenidas paralelas que ligam norte a sul, cortadas por
um sistema numerado de ruas igualmente paralelas entre
si, definindo quarteirões retangulares e um corredor
livre que corta a cidade.
Pois é justamente em busca disso que a câmera
de Raimi está. Em vários momentos, vemos
o Aranha se balançar com o horizonte livre à
frente, o que parece fugir do imaginário de uma
cidade opressora e em que o crime é a marca.
O olhar de Raimi está, como já mostrei,
obcecado pela cidade desde o primeiro filme: a cidade
é quase a razão de ser de seu personagem.
Ora, o que define o Homem-Aranha é o fato de
que ele sobe pelas paredes. O que Raimi enxergou é
que a verticalidade, a parede, poderia ter dramaturgia,
dramaturgia visual.
Nesse sentido, se perde para o primeiro filme como trama,
Homem-Aranha 2 é uma vitória como
ensaio. Se sua história é uma repetição
(por vezes tediosa, é verdade) dos clichês
do episódio-de-história-de-herói-em-que-o-herói-perde-os-poderes,
sua filmagem e sua edição fazem da experiência
do filme um evento memorável. Isso porque Raimi
quer, antes de tudo, descobrir as possibilidades de
interação com o ambiente e quer explorar
as possibilidades de construção de um
objeto a partir de sua relação com o cenário.
Homem-Aranha 2 é um dos filmes que melhor
problematizaram o cenário nos últimos
anos.
O Homem-Aranha é a própria essência
de Manhattan, feita para mudar e para crescer, para
receber cada vez mais gente e cada vez mais gente diferente.
Peter Parker também muda, claro - ele é
adolescente, aliás. Está às voltas
com os desafios da mudança, e sua ação
justiceira é também ligada a essa onda
de transformação. Sua entrada na vida
de Nova York é ela própria uma mudança.
Sua aceitação pelo jornal Daily Buggle,
em que ele próprio trabalha, é difícil.
O Homem-Aranha é uma transgressão, como
transgressão geográfica é Manhattan.
Por isso mesmo, impressiona tanto a maneira como é
filmada a cidade. Ela não é apenas um
espaço de ação, mas um território
de definição. As longas avenidas singradas
pelo Aranha com seu fio são verdadeiros espaços
de significação - e não só
eles. A passagem de Parker pelo off-Broadway ou pela
Empire State são também demonstrações
de intimidade com o sítio.
Mas o que é mais central disso tudo é
que Raimi descobriu uma maneira de filmar a cidade sem
que ela fosse objeto de uma ode (como em Manhattan,
de Woody Allen) e, ao mesmo tempo, sem que ela pudesse
ser ignorada. Nova York é mais do que um cenário
e mais do que um assunto. É como se ela fosse
um campo de forças. A cidade é o filme.
Alexandre Werneck
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