Homem-Aranha 2
Sam Raimi, Spider-man 2, EUA, 2004

Em uma primeira olhada, Homem-aranha 2 parece um filme pouco instigante. Mais (ou menos) que isso, é portador de uma mecânica de mão dupla que vem se tornando tendência no cinema americano contemporâneo e que poderia fazer dele um espetáculo mais para os cadernos de cultura (e de economia) do que para as salas de cinema:

De um lado da operação está a trama do filme, marcada pelo medo do risco: Homem-aranha 2 toma todo cuidado do mundo para não se deixar fugir da ditadura do filme de herói. Não é nem um filme de gênero. É um filme daquele gênero mesmo e ponto. Até por isso, e como típico blockbuster americano, tem a trama constituída por tudo aquilo que pode fazer o público se sentir familiarizado e os produtores se sentirem seguros. A história é aquela que se vê habitualmente em séries depois que já se conhece o herói: ele tem que se confrontar com as dificuldades que seu próprio estatuto de herói lhe impõe. É a mesma trama de Superman 2 e de tantos outros filmes, se olhada bem de perto.

Do outro lado, fica um mecanismo de tentativa de purificação que tenta ser operado nos últimos tempos um certo cinema de ação/aventura. Enquanto vários blockbusters têm apostado em uma fórmula de tributo ao trash (O exterminador do futuro 3, As panteras), outros têm apostado em um tipo de elegância baseado em uma afirmação como filme "de arte" antes de como filme de aventura. O mecanismo pode vir pela entrada de atores de alto nível (o que já se tornou uma tradição e não é um traço novo e que, na verdade, afirma a obra mais como filme "de qualidade" do que como filme "de arte"), mas o elemento mais importante dessa operação de busca por reputação tem vindo nas tramas: é um desejo de aprofundamento psicológico constante. As histórias de aventura querem deixar de ser metáforas, querem abandonar a fábula, querem perder a dimensão de sentido global, para passar a ser histórias em que o dramas dos personagens, esses sim, sejam centrais. Isso é forte, por exemplo, na série X-Men, sobretudo no segundo filme. E é de fato o que faz de O Hulk o melhor dos filmes do gênero recentemente. Mas diante de Homem-aranha 2 é difícil não se ter a impressão de que o filme parte do desejo dessa mecânica, antes de ter o desejo de sua história. Quase tudo que se vê no filme parece estar lá para dizer: "Sou um blockbuster, mas posso ser também um filme sério" ou "Sou um filme denso apesar de ser um filme de super-herói".

É isso que está em jogo no drama amoroso de Peter Parker e na problemática de seu rendimento acadêmico e financeiro em oposição a sua vida de justiceiro. Os sofrimentos de um rapaz que tem que escolher entre se sacrificar pelos outros ou pensar em si. Por algum motivo, os roteiristas de Hollywood acreditam que a presença desse tipo de trama faz o filme galgar um degrau, desculpa uma eventual impressão de que aquele filme custou milhões de dólares, que tem animação por computador e que seria pouco importante como obra. É um problema a ser pensado longamente hoje: o roteiro de Homem-aranha 2 de certa forma carrega em si o press-release do filme. O roteirista é, ao mesmo tempo, assessor de imprensa.

Não precisariam disso. Pois há um outro elemento no filme que faz dele um trabalho singular. Homem-aranha 2 é um filme centrado na filmagem, porque é um filme sobre a relação entre indivíduo e espaço. E, é preciso dizer, como filme de super-herói é um marco nesse sentido.

Superman, Batman, Homem-aranha e Hulk são os quatro super-heróis mais conhecidos e marcantes da cultura pop. Dos três, apenas o monstro verde não tem uma ligação central com a cidade em que vive/atua. Curiosamente (ou não), as três cidades são Nova York. Mesmo que com outros nomes nos casos do Homem de Aço e do Homem-morcego, as cidades são praticamente personagens das histórias. Mas no caso do Superman e Batman, esses personagens são coadjuvantes de uma maneira particular: existem em função de seus heróis. Talvez até por isso sejam uma Nova York sem seu nome.

Metrópolis é a cidade de Superman. É nela que vive e trabalha Clark Kent, o alter ego do alienígena Kal-El. Lá ele vive como um pacato repórter do jornal Daily Planet. Ora, já levantei o tema da tendência conservadora de Superman em outro momento, aqui mesmo em Contracampo. Superman é um super-herói da conservação, ele não quer que a história mude. Ele é defensor, desde os quadrinhos, "da verdade, da justiça e do estilo americano". Estilo que é perfeito e não deve mudar. Mas o importante a se reter daquela discussão é justamente o papel da cidade nela. Metrópolis é uma representação de Nova York, idealizada a partir de sua imagem na Era de Ouro: Nova York é a metrópole por definição. A NY de Superman é uma cidade imutável, totêmica, conservadora como ele. Ele é herói para que ela não cesse de ser assim. Nova York não muda porque é boa demais para precisar mudar.

Sobre Batman, muito já se falou. O Homem-morcego tem com Gotham uma relação de absoluta desesperança. Ele é herói porque a cidade é decadente. Nasceu de sua problemática com o crime. Gotham é uma Nova York noturna e depressiva, em que o crime se move e em que o lutador contra o crime tem que ser notívago. Nova York não muda porque é ruim demais para conseguir mudar.

Mas parece surpreendente que essa dimensão mais forte do Homem-Aranha tenha sido pouco explorada até agora: do grupo desses super-heróis, o único que tem uma ligação especular com a cidade que elegeu como nicho é ele. A Nova York de Peter Parker, o jovem fotógrafo que se torna super-herói por acidente, para começar é Nova York mesmo, sem subterfúgios. Mas a marca mais importante é que o personagem é que é motivado pela urbanidade e não o contrário. O Homem-Aranha trafega pela cidade: atado a seus fios, ele flana por Manhattan com um espírito de descoberta incomparável. E é isso que dá ao filme de Sam Raimi o tom singular que ele tem, sutilmente, em luta contra seus gritantes efeitos de despiste. Ao contrário, tudo no Homem-Aranha lembra sua relação com a cidade (não é à toa que ele é o "Friendly Neighbour").

Para pensar este elemento da continuação, antes de uma descrição da câmera de Raimi, que nos fará revisitar também a história da cidade, uma boa lembrança é o teaser trailer que seria a cena final original de Homem-Aranha, o primeiro filme, aquela que teria sido retirada da montagem final por luto: ladrões engravatados invadem um edifício e promovem um grande roubo. Na fuga, saem de helicóptero, baixo, pelas ruas da cidade. De repente, são impedidos de prosseguir - algo os detêm. Em outro corte, o helicóptero começa a retornar para trás e fica preso. Ao final da seqüência, descobrimos que eles estão atados a uma teia gigante, montada pelo herói entre as torres gêmeas do World Trade Center.

Ora, Nova York é uma cidade de mudanças. A começar pela estrutura urbana de Manhattan, que é o guia da câmera de Raimi. A cidade como em sua conformação atual nasceu no começo do século XIX. Tinha então cerca de 200 mil habitantes, mas um grupo de planejamento a vislumbrou com mais de um milhão. Um espaço de vegetação e topografia irregulares, a área foi, por força de um plano urbanístico, terraplenada em toda sua extensão, para dar lugar a um plano urbanístico que criou os sistema em forma de grade que marca a cidade até hoje: grandes avenidas paralelas que ligam norte a sul, cortadas por um sistema numerado de ruas igualmente paralelas entre si, definindo quarteirões retangulares e um corredor livre que corta a cidade.

Pois é justamente em busca disso que a câmera de Raimi está. Em vários momentos, vemos o Aranha se balançar com o horizonte livre à frente, o que parece fugir do imaginário de uma cidade opressora e em que o crime é a marca. O olhar de Raimi está, como já mostrei, obcecado pela cidade desde o primeiro filme: a cidade é quase a razão de ser de seu personagem. Ora, o que define o Homem-Aranha é o fato de que ele sobe pelas paredes. O que Raimi enxergou é que a verticalidade, a parede, poderia ter dramaturgia, dramaturgia visual.

Nesse sentido, se perde para o primeiro filme como trama, Homem-Aranha 2 é uma vitória como ensaio. Se sua história é uma repetição (por vezes tediosa, é verdade) dos clichês do episódio-de-história-de-herói-em-que-o-herói-perde-os-poderes, sua filmagem e sua edição fazem da experiência do filme um evento memorável. Isso porque Raimi quer, antes de tudo, descobrir as possibilidades de interação com o ambiente e quer explorar as possibilidades de construção de um objeto a partir de sua relação com o cenário. Homem-Aranha 2 é um dos filmes que melhor problematizaram o cenário nos últimos anos.

O Homem-Aranha é a própria essência de Manhattan, feita para mudar e para crescer, para receber cada vez mais gente e cada vez mais gente diferente. Peter Parker também muda, claro - ele é adolescente, aliás. Está às voltas com os desafios da mudança, e sua ação justiceira é também ligada a essa onda de transformação. Sua entrada na vida de Nova York é ela própria uma mudança. Sua aceitação pelo jornal Daily Buggle, em que ele próprio trabalha, é difícil. O Homem-Aranha é uma transgressão, como transgressão geográfica é Manhattan.

Por isso mesmo, impressiona tanto a maneira como é filmada a cidade. Ela não é apenas um espaço de ação, mas um território de definição. As longas avenidas singradas pelo Aranha com seu fio são verdadeiros espaços de significação - e não só eles. A passagem de Parker pelo off-Broadway ou pela Empire State são também demonstrações de intimidade com o sítio.

Mas o que é mais central disso tudo é que Raimi descobriu uma maneira de filmar a cidade sem que ela fosse objeto de uma ode (como em Manhattan, de Woody Allen) e, ao mesmo tempo, sem que ela pudesse ser ignorada. Nova York é mais do que um cenário e mais do que um assunto. É como se ela fosse um campo de forças. A cidade é o filme.

Alexandre Werneck