Depoimento de Carlos Ebert
câmera de O Bandido da Luz Vermelha

Em 1966, deixei o curso de arquitetura no Rio de Janeiro e fui para São Paulo estudar cinema na Escola de Cinema da Faculdade São Luís. Desta turma inicial, faziam parte, entre outros, Carlão Reichenbach, Ana Carolina, Paulo Rufino, João Callegaro e Cláudio Polópoli. Eu era um duro empolgado. Trabalhava como revisor numa enciclopédia juvenil editada por um grupo de portugueses exilados, e morava com minha irmã casada no Brooklin. Já fotografava still, e era desde sempre um cinéfilo fanático.

Meses depois, minha irmã se separou, voltou para o Rio, e eu fui morar de favor no apartamento sala-e-quarto de um colega na Praça Roosevelt (que era mesmo uma praça, e não esse monstrengo de concreto em que os milicos e o Maluf a transformaram depois.)

Um belo dia, caminhando pelo centro, encontro José Alberto Reis, amigo do Rio, ex-gerente do Banco Mineiro do Oeste e produtor do primeiro filme que dirigi, ainda na faculdade de arquitetura, chamado Mar Morto (nada a ver com o romance homônimo), fotografado pelo Carlos Egberto (origem de uma confusão de nomes que perdura até hoje...). Pergunta vai, pergunta vem, e ele conta que estava em São Paulo para implantar e dirigir a sucursal da Difilm, a distribuidora dos filmes do cinema novo. Pergunta onde estou morando e, ao se dar conta da minha total disponibilidade naquele momento, propõe que dividamos um apê no centro. Após me informar que a divisão não seria por dois, mas "segundo a capacidade de cada um" naquele momento, aceitei o convite. Passamos então a residir na rua General Jardim, esquina de Rego Freitas. O prédio velhusco e estiloso (está lá até hoje...) tinha apartamentos enormes. Logo viramos um point dos cineastas em potencial. Até onde me lembro foi ali que conheci o Rogério. Ele circulava pela Vila Buarque (que era na época o que a Madalena é hoje), de jaqueta jeans, camisa florida e gravata azul-piscina, tendo embaixo do braço um calhamaço de papel amarfanhado, que logo vim a saber ser o enésimo tratamento do roteiro de O Bandido da Luz Vermelha.

Rogério a esta altura já era respeitado como crítico de cinema do Jornal da Tarde e do Estadão. Presenciei mais de uma vez o espanto das pessoas que, ao serem apresentadas a ele , constatavam meio sem jeito que o feroz e brilhante crítico cinematográfico era na realidade um garoto tímido recém chegado de Joaçaba, Santa Catarina. Rogério vivia então num estado permanente de exaltação. Seu assunto invariável era o cinema e, dentro dele, os autores da sua (nossa) predileção: Welles, Fuller, Godard, Imamura, Ulmer, Lang eram os mais citados de uma constelação que não incluía muitas outras estrelas. A "política dos autores" era o tema invariável de longas discussões, que começavam na saída do Cine Belas Artes, passavam pelo Bar Riviera, e se prolongavam pela madrugada no Gigetto e na galeria Metrópole.

Rogério só interrompia sua argumentação entusiasmada para anotar alguma coisa por debaixo da mesa em seu alfarrábio/roteiro. O calhamaço, antes de se desmilingüir de vez, era passado a limpo e encadernado por iniciativa de uma devotada secretária do Estadão. A leitura por terceiros não era permitida, mas em algumas ocasiões – nem tão especiais assim –, ele fazia uma leitura entremeada de rubricas, observações, citações e muitas risadas, que deixavam entrever o tamanho da encrenca que ele estava armando.

Se hoje, ao assistir ao filme, alguns espectadores imaginam que a fluidez da narrativa se deve a improvisações feitas ao sabor do momento, está enganado. Estava tudo escrito lá no roteiro, inclusive rubricas de interpretação, posições de câmera, música e até ruídos. Não que não improvisássemos durante a filmagem, mas a improvisação estendia e ampliava uma sofisticada e elaborada mise-en-scène preexistente no roteiro. A partir do Bandido – personagem emblemático da época, que se encaixava na tradição cinematográfica brasileira do herói-lúmpem/marginal, Rogério comentava tudo: da culinária à política internacional, passando pela sexualidade, hábitos e costumes da burguesia paulista, mídia etc. O tom da narrativa ecoava Oswald de Andrade e Nelson Rodrigues (de quem, sempre achei, Rogério deveria filmar uma obra). "Esculhambação, deboche, cafonália" uma rubrica do Rei da Vela, se encaixava perfeitamente no Bandido.

O começo da filmagem de O Bandido da Luz Vermelha

Começamos a filmar meio na marra. Arranjamos uma Cineflex no Honório Marin com duas lentes Schneider e uma Zeiss, compramos três latas de 300 metros de Gevapan 30, alugamos uma kombi com motorista e saímos: Rogerio, Paulo Vilaça, eu, Wladimir Warnowsky (assistente de câmera/maquinista) e o motorista da Kombi pela cidade de São Paulo, filmando cenas do bandido solitário, perambulando e interagindo com personagens anônimos da cidade.

São cenas semi-documentais, e podem ser facilmente identificadas no filme porque o Paulo nelas ostenta um soberbo bigode de vilão mexicano (herança do Vado, o personagem que ele fazia na peça Navalha na Carne).

Éramos tão "sem noção do perigo" que, em plena ditadura (1967), saímos filmando pelo centro da cidade, com o Paulo empunhando uma carabina de verdade! Como Deus protege os inocentes, nada nos aconteceu. Mais tarde, já com a equipe formada, fizemos loucuras bem maiores, como passar à noite dando tiros em frente ao portão do QG do 2º Exército, na Rua Conselheiro Crispiniano. Na segunda passada, o sentinela levantou o fuzil e apontou, não atirando porque na hora H viramos a esquina (isso dizem os presentes, eu estava ocupadissimo, sentado no bagageiro da kombi, filmando os policiais da patrulhinha atirando na minha direção). Numa dessas, fiquei com o rosto queimado pela pólvora do festim... Acidentes de trabalho. Julinho Calasso, nosso diretor de produção, filho de policial, conseguia informalmente que a polícia colaborasse nas filmagens. Como? Macetes de produtor...

Depois dessa semana documental, a filmagem parou. Nos demos conta que a coisa toda era bem mais complicada do que imaginávamos... Zé Alberto Reis – o único da turma com algum sentido da realidade – nos apresentou então a José da Costa Cordeiro, o "Deca", gerente da distribuidora Uranio Filmes na boca, que topou produzir "a obra". Compramos mais negativo para começar a filmar as cenas com o resto do elenco, e aí caiu a ficha: teríamos, a partir de então, interiores e noturnas, e a minha experiência aos 19 anos deste tipo de filmagem era quase nula – para dizer o mínimo. Rogério concordou que não dava para encarar essa, e partimos para achar um fotografo que "comprasse" o projeto. Falamos com Hélio Silva – grande figura, que adorou o roteiro, mas que já tinha compromisso. Não me lembro mais quem indicou o Peter Overbeck, mas sem dúvida foi a escolha mais acertada que poderíamos ter feito. Peter, que vinha da cenografia e da arte da Vera Cruz, era, além de um iluminador talentoso, um profissional com profundo conhecimento de estética e história da arte e, mais do que isso, uma pessoa suficientemente generosa a ponto de se submeter ao ego de dois pirralhos metidos a gênios, para embarcar junto numa aventura fílmica que ninguém sabia ao certo onde iria dar. Deve ter sido a mão de Santa Clara.

As filmagens do Bandido foram uma delícia. Nunca me diverti tanto trabalhando. Não tínhamos horários nem normas fixas. Parece que antecipamos de alguma maneira a anarquia que tomaria conta da nossa geração a partir de maio do ano seguinte. Minha relação profissional com ele era de total confiança. Na época não existia video-assist, e o olho do câmera era a garantia da cena. "Ficou bom? Ficou." Ponto final. Nunca houve surpresa na Líder ao assistir o copião no dia seguinte (perderam dois rolos filmados, mas isso é uma outra história). Fomos até o lançamento do filme numa ótima. Aí, quando vi a primeira cópia e percebi que meu nome constava apenas como operador de camera, embora as cenas da primeira semana que eu havia fotografado estivessem todas na montagem, azedei. Fiquei na minha, não reclamei, mas o episódio deu uma esfriada na relação. Logo em seguida embarquei no meu primeiro projeto de longa como DF (uma co-produção Brasil, Portugal, França), e esqueci as mágoas.

Reencontro de trabalho em Nem Tudo É Verdade.

Quando em 86 (será esse o ano?) ele já no Rio me chamou para fazer o Nem Tudo é Verdade, já não havia mais nenhum ressentimento . Entretanto, eu tinha mudado bastante profissionalmente. Aprendera a utilizar os meios da cinematografia e quando me deparei com o pauperismo e a improvisação do set, fiquei decepcionado. A produção de Nem Tudo era em tudo inferior à do Bandido. Ao menos em termos de produção, Rogério involuíra. Mesmo assim, aceitei o desafio, e hoje quando assisto no Canal Brasil (longa vida ao Canal Brasil!) os trechos que filmei (divido a fotografia com Edson Batista, Victor Diniz, Zé Medeiros, Edson Santos e Afonso Viana. Ufa!), acho que funcionou. Na paisagem carioca, tentei citar a fotografia technicolor da época em que Welles filmou com Fante, polarizando os céus e saturando a cor. Com o Arrigo e o resto do elenco, me aproximei com a 18mm, e busquei resolver na composição a movimentação dos atores na cena.

Acredito que o Bandido é um marco no cinema brasileiro. Mais do que romper com a hegemonia do cinema novo, que havia se transformado num sonolento cinema de teses socio-políticas, O Bandido incorpora definitivamente à nossa cinematografia a "contribuição milionária de todos os erros" de que falava Oswald de Andrade – o chefe dos antropófagos e pai dos tropicalistas.

O Bandido da Luz Vermelha é Ademar de Barros, Chateaubriand, Anísio Silva, Menininha do Gantois, Chacrinha, Adelaide Carraro, Tenório Cavalcanti ,Félix Caignet, Rádio Nacional, Adelino Moreira, Cara de Cavalo, Jânio, Gibi Mensal, Hora do Brasil, Mineirinho, Patrulha da Cidade, O Cruzeiro, Imprensa Marron, As Aventuras do Anjo, Esculhambação, Deboche e Cafonice.

Fico feliz de ter tido a sorte de participar dessa aventura cinematográfica. Valeu Rogério!

Carlos Ebert

 

 





O motorista, Sganzerla segurando a Cineflex e Ebert com o fotômetro: a equipe da primeira semana de filmagem