Depoimento de Marcos Bonisson
câmera em O Signo do Caos e em outros projetos, co-roteirista

Rogério foi um grande amigo e, penso, um grande artista do cinema. Produziu filmes de linguagem contundente, experimental, de vertigem. Um cinema sem limite, único na cinematografia brasileira. Eu conheci o Rogério por volta de 1987, 1988, apresentado pela Helena Ignez. Nessa época ele estava envolvido com o projeto de um filme patrocinado pela Rioarte sobre a obra do artista plástico Antonio Manoel. A coisa estava meio estacionada, e eu tinha trazido um equipamento, na época a coisa mais avançada, uma Sony. Não existia nem Hi-8, era Video-8. Nós começamos a trabalhar e a coisa clicou de uma forma muito legal. Depois colaboramos em vários outros projetos. Depois fizemos o do Newton Cavalcanti, A Alma do Povo Vista Pelo Artista, e nesses anos todos estivemos muito próximos, numa relação de troca. Rogério era uma pessoa muito generosa, gostava muito de conversar, conversávamos à beça, um brainstorm de idéias.

* * *

O Signo do Caos e Tudo é Brasil iam ser um filme só, e esse filme terminou sendo dividido em duas partes. No Signo do Caos eu fiz a direção de fotografia, juntamente com o fotógrafo Nélio Ferreira, e eu dirigi grande parte do núcleo preto-e-branco do filme. O Nélio fez mais a parte de cor. Mas eu nunca tive essa coisa de direção de fotografia, era uma coisa muito próxima do Rogério, era mais "Vamos filmar? Vamos..." Filmamos em 16mm com uma Arriflex. Foi o meu primeiro trabalho com fotografia em cinema, ele botou a câmera na minha mão e falou, "vamos rodar". Aprendi o rudimento e rodamos. Foi uma filmagem muito complicada. Eu penso muito no Rogério trabalhando: definitivamente é um poeta do cinema, e como poeta, num certo sentido, é muito mais um escritor, muito mais um pintor do que propriamente um diretor no sentido de comandar a equipe. Rogério trabalhava de uma forma muito íntima, muito pessoal, e muitas vezes o pessoal é complexo e difícil de ser transferível. Acho que ele se sentia à vontade com gente mais próxima. Nesses projetos todos, os últimos projetos, eu sempre estive muito perto, na montagem, na feitura do filme.

* * *

Em 2002 fomos Helena, Rogério e eu para Nova York. Era um projeto da Helena chamado, se não me engano, A Reinvenção da Rua, sobre o trabalho do artista Vito Aconti. A Helena tinha visto a exposição do Aconti na região do Glicério em São Paulo e ficou encantada com aquilo, porque era uma espécie de um trêiler adaptado para as pessoas que viviam na rua pela região do Glicério. O Vito Aconti é um artista que eu sempre admirei muito, vivi dez anos em Nova York, e ele era um artista ligado a um tipo de arte transgressora, experimental. Viajamos, fizemos contato, o Vito Aconti foi gentilíssimo e fizemos a entrevista. Paralelamente, foram rodadas muitas coisas em Nova York que seriam editadas junto com o bloco filmado no Brasil. E, claro, porque estávamos rodando, rodamos mais algumas coisas. Por exemplo, uma das coisas em que eu e o Rogério começamos a trabalhar era um segmento sobre Jimi Hendrix. Conseguimos entrar no estúdio em que o Hendrix tinha gravado muitas coisas, o estúdio Electric Ladyland, ali na West Eighth Street. Filmamos no estúdio e na rua. O que ia se tornar, provavelmente uma poética visual, metáforas, relacionar Jimi Hendrix. Na montagem, certamente, aconteceria alguma coisa interessante. Foi feito em vídeo digital. Numa constelação de artistas inventores, Rogério tinha uma certa ligação com Oswald de Andrade na literatura, Welles no cinema, Hélio Oiticica nas artes plásticas, Jimi Hendrix e João Gilberto na música, correlatos de verve.

* * *

Eu tenho um roteiro escrito a quatro mãos com o Rogério chamado O Favorito, escrito se não me engano em 1997, também inédito, e todo fundamentado no universo do turfe, uma comédia de ação. Esse trabalho foi escrito a partir de uma idéia minha, centrada na minha dmiração pelo filme do Kubrick, O Grande Golpe, que o Rogério adorava também. Eu ainda pretendo algum dia filmar esse roteiro como uma homenagem ao Rogério.

* * *

Rogério era um profundo conhecedor de cinema, um cinéfilo, as referências eram muitas, mas na hora de filmar não havia muitas orientações específicas sobre o clima a ser atingido, essas coisas. Eu acho que o filme do Rogério acontece fundamentalmente na montagem. O Rogério transcende essa idéia de cinema de autor, acho que ele está mais além, numa simbiose de sujeito, filme, idéias seminal, muito além da idéia de cinema autoral. Rogério escrevia muito, sempre estava anotando alguma coisa, os roteiros são cheios de mudanças, sempre o tempo todo mudando. O trabalho de equipe muitas vezes era uma coisa difícil para quem não entendia esse processo, que é uma verve muito particular. O roteiro, na verdade, é uma espinha dorsal que se desdobra. Se desdobra com idéias muito ligadas ao acaso, a situações do momento. Não é aquela coisa pão-pão, queijo-queijo. E aí na montagem já virava uma outra coisa. Acho que o tempo do artista-Rogério era uma coisa muito particular, o tempo dele, da idéia, da execução de muitos elementos relacionais. Não conheci o Rogério na época do Bandido, era um menino, mas eu sei que o filme foi rodado bem rápido. Os filmes em que eu trabalhei com ele, foi diferente, era outro tipo de timing.

* * *

As preparações dos filmes do Rogério, no sentido de roteiro – não de produção mas de visualização –, sempre foi extremamente acuidosa, precisa. Era um exímio dialoguista, como poucos no Brasil. Se você pegar alguns dos diálogos de O Favorito, é de dar gargalhadas, você se contorce. É assim em O Bandido da Luz Vermelha, A Mulher de Todos, pra citar alguns. Mas como isso era organizado em termos de produção, é uma outra coisa. Muitas vezes até mesmo pela própria situação do recurso. Esses últimos filmes foram filmes difíceis em termos de recursos. Eu acho absolutamente genial a idéia de O Signo do Caos, de um antifilme, é uma das coisas mais emocionantes. Eu sinto muita saudade do Rogério, e penso nele muito, porque tem alguns artistas cruciais que foram emblemáticos na minha percepção de vida e linguagem, e o Rogério, pela proximidade, sem dúvida foi um deles. E penso sempre coisas muito felizes. Sinto saudades. Morreu jovem, tinha muito mais coisa pra produzir. Isso foi de fato uma tragédia.O legado é excepcional, e deve ser pesquisado, desdobrado. Porque foi um artista prolífico. Talvez nem tanto no sentido de produção de filmes como outros cineastas, mas no sentido de textos. E com algumas coisas inéditas que com certeza serão possíveis de ser realizadas, como o Luz nas Sombras...

* * *

Mais sobre o acaso. Quando estávamos filmando para o Tudo É Brasil, muito antes de se tornar O Signo do Caos, o Rogério ficou enlouquecido por um papagaio que tinha na base da aeronáutica, e rodou extensivamente o papagaio, rodou e rodou, até ninguém mais agüentar, ele queria pegar uma certa luz e tal. O Nélio já estava meio puto. E acabou que esse momento de acaso se transformou nessa espécie de narrador do Signo.

* * *

No livro Por um Cinema sem Limite tem uma coisa que eu acho emblemática pra quem quer ter uma visão do processo de trabalho do Rogério que é espetacular, até mesmo porque é cheia de humor: "O impossível faça na hora, o milagre consinto que demore um pouco mais". Isso pra mim era o Rogério. Agora, com acaso não é todo artista que pode trabalhar. O Rogério não é cineasta, o Rogério é artista. Isso faz uma diferença radical na minha concepção.
* * *

Acho que o processo criativo de um artista vai mudando. Um jovem artista de 22 anos fazendo O Bandido da Luz Vermelha é bem diferente de outro artista produzindo O Signo do Caos. A própria ligação com o universo do Welles, eu acho que foi ao mesmo tempo uma etapa de transcendência e de aprisionamento. Welles era um artista obsessivo, Rogério também. Aquela coisa de investigar, desmembrar, aquilo ali foi fascinando o Rogério. Nós trabalhamos juntos no It’s All True, Rogério como assistente de direção e eu como still. Era o projeto de reconstituir o filme que o Welles não conseguiu terminar no Brasil. Ele ficou encantado de estar trabalhando ali como assistente, um interlocutor de certas informações que ele já havia pesquisado para o Nem Tudo É verdade. Mas muita coisa que o Rogério foi descobrindo, dava tangencialmente material que poderia ser desdobrado em outros projetos. Uma das coisas que o Rogério produziu que eu acho mais lindas é o curta Linguagem de Welles, é uma pérola. Num certo sentido eu gosto bem mais do que o Nem Tudo É Verdade. É de uma leveza, com o João Gilberto cantando, umas imagens lindas. E antecipa o Tudo É Brasil. Tinha uma época em que eu estava fascinado por uma música que o João Giberto cantava, "Adeus América", do disco duplo ao vivo em Montreux, e eu dizia pro Rogério que essa música tinha que estar no filme. O Rogério tinha também uns materiais de arquivo em 35mm de várias partes da cidade do Rio filmada do alto, umas imagens da Vieira Souto de madrugada, a Lagoa, o Morro Dois Irmãos. Uma vez, vendo juntos essas imagens, eu falei: "Aquela música tem que ir com aquela imagem". E ele acabou colocando. Foi uma contribuição legal naquele filme.

Marcos Bonisson
(depoimento a Ruy Gardnier no dia 28 de abril de 2004. Transcrição e adaptação de Ruy Gardnier)