CONTRA-REGRA
coluna semanal de televisão

Gomes Vs. Coen

Um comercial se destacou muito nas últimas duas semanas: foi o trailer, para TV, do filme Matadores de Velhinha, de Joel e Ethan Coen. As imagens eram as normais de um trailer: uma montagem com cenas escolhidas para passar uma boa imagem do filme; a narração, porém, era feita pelo repórter policial Gil Gomes, e o caso do filme era narrado como uma reportagem de Repórter Cidadão, fazendo nascer uma dramatização interessantíssima.

O interesse primeiro vem da dramatização por si só. Porque só essa idéia já é muito divertida e torna o trailer muito mais do que apenas um sub-produto a serviço do filme; ele vira um outro filme (ou, no caso, vídeo), um curta-metragem (lembrando o também dramatizado e genial trailer de Ritual dos Sádicos, de José Mojica Marins).

Mas a graça maior vem ao analisá-lo mesmo como um objeto próprio, à parte do filme. Temos Gil Gomes dramatizando cenas originalmente dramatizadas pelos irmãos Coen. Tanto os Coen como Gomes, em linguagens diferentes (os Coen como cineastas e Gomes como repórter "jornalístico"), têm em suas carreiras uma relação intensa com a criminalidade; ambos têm os "marginais" como protagonistas de suas dramaturgias, ambos necessitam desses bandidos; afinal, o que seria dos Coen sem os personagens de Tom Hanks (em Matadores de Velhinha) e de Michael Caine (em Na Roda da Fortuna) ou o que seria de Gil Gomes sem a menina que matou os pais ou sem o "motoboy do parque"?

Obviamente, existe uma grande diferença em como se manifesta essa necessidade e interesse de cada um por essa "bandidagem". Ambos colocam o bandido em primeiro plano e ressaltam várias das suas qualidades para atrair a atenção do espectador; porém, enquanto os Coen possuem um verdadeiro interesse por aquele ser que atua fora da lei e faz o espectador ver nele um personagem farsesco, criando uma simpatia pelos roubos e trapaças, Gil Gomes não tem nenhum verdadeiro interesse naquela pessoa, o interesse é sempre em passar como correta uma idéia de moralidade. O bandido não é nada mais que parte de uma engrenagem criada por Gomes para convencer o espectador de que "marginais" têm que ser execrados e repudiados pelas pessoas "de bem".

Ter esses dois posicionamentos, dependentes do mesmo bandido, tendo uma relação direta de imagem e som, cria uma fissura em ambos. Serão esses bandidos tão legais assim? E tão maus? Claro que há o fato de que os Coen lidam com ficção total e que Gomes ficcionaliza a partir de fatos jornalísticos (outra curiosidade surge da relação entres eles aqui: enquanto Gil Gomes parte de um fato acontecido para criar uma dramaturgia, um discurso, muitas vezes mais ficcional do que qualquer novela; os Coen, em Fargo, criaram o fato a partir da ficção – ou seja, caminhos, na mesma reta, mas totalmente opostos). Mas, mesmo assim, essa quebra que um causa na dramaturgia do outro continua sendo interessantíssima, fazendo com que o trailer mais atraente até que o próprio filme.

São Romário: perdoai-nos!

Esse mês se completam dez anos da conquista pela seleção brasileira do tetracampeonato de futebol, nos Estados Unidos. E a Rede Globo está fazendo uma enormidade de reportagens em que parece que o único objetivo é heroicizar Romário. Por ser do Rio, a emissora sempre tendeu a proteger e levantar o futebol carioca, criando emoções questionáveis no campeonato estadual, destacando e tentando criar dali possíveis ídolos. Romário sempre foi um dos mais queridos. Bastava ele estar em campo que, para a Globo, o jogo já era interessante: se saísse um gol e Romário tivesse participado do lance, muitas vezes um toque dado por ele era mais lembrado que o autor do gol. Só que Romário hoje é um jogador de quase 40 anos que, obviamente, não rende nada perto do craque que foi; faz um gol de pênalti de vez em quando e olhe lá. Não tendo motivo algum para adorá-lo, parece que a Globo aproveitou a época da comemoração do tetra (em que Romário realmente foi imprescindível) para vendê-lo novamente como grande herói salvador. Foram três reportagens no mesmo fim de semana, e Romário protagonizava todas num tom de endeusamento total. Uma delas iniciava-se com imagens dos jogadores e uma narração dizendo que a seleção tinha um predestinado, um mito, deixando a entender que Romário era um emissário de Deus, um messias que veio para livrar a seleção brasileira do jejum de 24 anos. Numa outra reportagem, tínhamos quase todo o tempo Romário descrevendo sua emoção em nos dar o tetra.

Romário foi sim uma grande jogador (para muitos um dos maiores do mundo), mas vendê-lo como predestinado, com a pecha de salvador de uma população carente de um título mundial, beira o patético.

Abortar Missão!

Essa semana a MTV lança seu novo programa, Missão MTV, comandado por Fernanda Tavares. A proposta do programa é que alguém peça à MTV para "transformar" o visual de um(a) amigo(a) ou namorado(a). Logo no início do programa, veio a primeira seqüência repugnante. Era a apresentadora com as pessoas que pediram a transformação analisando um vídeo com a pessoa a ser transformada. A pessoa no vídeo era tratada como uma palhaça, sendo observada e "avacalhada" em todas as características que a apresentadora achava brega, cafona ou fora de moda. Logo depois víamos Fernanda Tavares na casa da "vítima"; o tempo todo a apresentadora vendia os "defeitos de visual" dela como grandes pecados morais. Dizia, por exemplo, ser o maior absurdo ela como menina ter sapatos velhos e escolher para vestir a primeira roupa que via. E soltou a frase: "vou mudar esse estilo mixuruquinha para uma coisa mais mulher". Então ser "mixuruquinha" faz alguém ser menos mulher? E Fernanda Tavares acha que mulher é só o ideal estereotipado que ele acredita?

No segundo programa, era um rapaz querendo que ela transformasse o visual desleixado do seu companheiro de banda no visual de um roqueiro. Fernanda Tavares novamente queria de qualquer maneira enquadrar a "vítima" num estereótipo. Ela chegou a ficar sem reação quando ele disse que não era de estilo nenhum, que pra ele tanto fazia. A apresentadora achava absurdo que o visual dele não correspondesse ao que ele era (desde quando alguém é apenas uma coisa?), soltando frases como: "ele não pode usar cueca aparecendo porque é coisa de rapper e não de roqueiro".

O Missão MTV parte do princípio de que a sociedade é uma grande engrenagem e que todos precisam se enquadrar nela, aceitando viver como se tudo fosse uma questão de múltipla escolha; você pode decidir o que fazer (o que vestir), mas dentro dessas opções que correspondem ao que foi decidido que você é. Absoluta simplificação e estereotipia.

De novo ele

Torna-se repetitivo falar novamente de João Kleber e de seu Teste de Fidelidade, mas é que a cada semana surge uma novidade pior, tornando inevitável o comentário.

Essa semana foi a participação dos telespectadores por telefone no que ele chama de "Terapia de Casal" – inserção preocupada em "ajudar as pessoas" –: se metendo, xingando, defendendo, criando mais uma algazarra em meio à briga do casal no palco. Em certo momento as agressões verbais foram tantas, o clima era tão pesado e desesperador que a namorada (que havia pedido o Teste) acertou a cara do namorado com um tapa. Nesse momento, o público inteiro de pôs de pé, vibrando aos berros, com a câmera filmando tudo, quase vibrando junto.

Depois de tudo isso, João Kleber vira e diz: "deixa ele falar, senão isso aqui vira uma bagunça".

Francisco Guarnieri

Textos da semanas anteriores:
Viagens Fantásticas (parte 2) (por Felipe Bragança)
Terapeuta JK (por Francisco Guarnieri)
Viagens Fantásticas (parte 1) (por Felipe Bragança)
Coito de Cachorro, Otávio Mesquita, Sônia Abrão e outras sumidades televisivas (por Francisco Guarnieri)
Pânico! (por Felipe Bragança)
Notas, notas, notas (por Francisco Guarnieri)
Da TV e dos corpos humanos, parte 2 (por Felipe Bragança)
Da TV e dos corpos humanos, parte 1 (por Felipe Bragança)
Violência da edição, edições da violência (por Felipe Bragança)
Fauna in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa (por Francisco Guarnieri)
Semana de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 – Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 (por Felipe Bragança)
A Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos treze (por Roberto Cersósimo)
Algum começo... (por Felipe Bragança)
Uma novela de... (por Roberto Cersósimo)
O canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe Bragança)
O fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos (por Felipe Bragança)