CONTRA-REGRA
coluna semanal de televisão

Viagens Fantásticas, Parte 2 + Celebridade

Já falamos das viagens de Zeca Camargo na outra semana...E os capítulos que se seguiram dali só vieram me reiterar as idéias. É difícil, porém, comentar os passeios de Zeca sem se lembrar das desventuras de sua colega, Glória Maria, no estapafúrdio quadro Passaporte Fantástico, do mesmo programa dominical. Se a gratuidade das viagens de Zeca incomodam, o seu inverso, ou seja, a tentativa de encontrar motivações nobres para o perambular audiovisual da figura do repórter, é certamente ainda mais terrível: ver Glória Maria tratando um passista-gari e um baterista-mirim (Fantástico nos dias 13 e 27/06) como espécies de pequenos animais de estimação, "convidados" a conhecer as maravilhas do Canadá e das Cataratas do Niágara (respectivamente), alcançou níveis de ridículo e de hipocrisia insuportáveis. Patética a forma como a repórter tratava seus convidados"como pequenos selvagens diante das maravilhas do primeiro mundo, querendo extrair deles todo o tempo, exclamações de arrebatamento diante das belezas onde o tal "Passaporte Fantástico" podia levar aqueles legítimos representantes do povo brasileiro...À pobreza de sentido das viagens de Zeca Camargo, Glória Maria atrelava uma tentativa débil de criar uma identificação direta entre o espectador-comum e aqueles personagens anônimos, agraciados por poderem visitar aqueles espaços. Engraçado (ou quase) era perceber as tentativas hiperbólicas da repórter em tentar fazer tudo parecer incrível, diante das feições um tanto apáticas de convidados que não pareciam exatamente extasiados pelo que viam... "É lindo, não é?!", pergunta a repórter ao menino diante das quedas d`água do Niágara – ao que ele responde: "É...é muita água". Ou ainda: "Toronto é linda aqui do alto, não?!", seguida de uma resposta em um meio-sorriso do gari-passista: "É, é...só não tem mar..."

É claro que depois de muita insistência melodramática ("Você já havia se imaginado num lugar desses?!") Glória Maria até conseguiu algumas lágrimas de seus convidados, logo cooptadas como a imagem de pessoas "simples" que foram agraciadas pelo convite da bondosa produção do Fantástico...E que se emocionavam por poderem viver "tudo aquilo"...Tudo aquilo o quê?! – pergunto eu.

Haja paciência...

* * *

Eu ia escrever um artigo longo, mas a Televisão é um bicho que come os dias de forma frenética e é preciso responder a tudo muito rápido...Pois bem: Celebridade. Último capítulo. Não preciso repetir aqui minha admiração pela telenovela de Gilberto Braga, mas faço questão de pontuar algumas coisas sobre a forma como a novela encontrou seu desfecho:

Ao longo desses oito meses, Celebridade se destacou no marasmo na teledramaturgia global pelo raro interesse pela reflexividade de gêneros, e ao mesmo tempo um distanciamento completo daqueles dispositivos farsescos típicos do "nicho" Guel Arraes. Diante de um panorama das telenovelas em que o vigor das "realidades" expostas se sobrepunhas às possibilidades do gênero (vide os mega sucessos da assistencialista Mulheres Apaixonadas e do oportunismo de O Clone), Celebridade apareceu como a grande telenovela brasileira dos últimos 10 anos, justamente por saber se interessar pelo próprio formato já cristalizado, fazendo de seus problemas/limitações, objeto de comentários, de auto-críticas, de jogos narrativos.

À despeito da correria como alguns personagens e elementos da novela foram fechados na última 6a feira, o último capítulo de Celebridade não ficou atrás de tudo o que veio acumulando, moldando ao longo de oito meses de uma trama que conseguiu atrelar thriller e melodrama de forma a criar uma narrativa de personagens ao mesmo tempo cativantes e capazes de protagonizar as mais inebriantes viradas, jogadas e "implausibilidades". É uma pena que um personagem como o de Renato Mendes (o melhor papel da vida de Fábio Assunção – que teve seu alto "potencial de canastrice" muito bem aproveitado para construir as máscaras do vilão), ter um desfecho simples, muito mais "contado" do que vivenciado em cena. Houve, claramente, um certo desleixo na forma como Gilberto Braga entregou os pontos num certo momento da trama e preferiu multiplicar os casamentos felizes e redenções ao gosto do público (Darlene acabou sendo "premiada" por sua popularidade e foi protagonista mais de uma sátira moral do que de um desfecho impactante...), mas nada que tirasse de Celebridade seus pontos mais altos e relevantes:

A forma com que Gilberto Braga construiu o trio de vilões Laura-Marcos-Renato foi de uma maestria e provocação ímpar, conseguindo inverter as expectativas ao construir as relações mais "verdadeiras" justamente entre aqueles que tinham as vestes do antagonismo. A paixão doentia de Renato por Laura, e a relação desta com Marcos, ganhou, ao final da novela, o verdadeiro espaço de "protagonismo" que a personagem de Abreu, no fundo, sempre procurou ao longo da trama – criando um curto-circuito entre a motivação psicológica dos personagens e a motivação narrativa das cenas.

Quando Maria Clara, diz que ela estava procurando por isso", após o Plano Geral de Laura morta ao lado de Marcos (e dos flashbacks deles na piscina), para além de uma leitura direta do "castigo justo", há, imbricado, um comentário sobre a própria função dramática de Laura na novela, ou seja: a da personagem que queria se tornar a heroína de uma telenovela (roubando o lugar da própria Maria Clara). Ainda que morta, é inegável que ela conseguiu o que queria, se tornando a personagem mais cativante, mais importante, mais intensa da história ("terminamos juntos", citada por ele no leito de morte, é frase-clichê de herói romântico, não de uma vilã). Nessa camada dupla de sentido (como o personagem foi tratado em toda novela: o mais cruel e o mais frágil de todos a um só tempo) que reside a riqueza do texto de Braga.

Quando nos é apresentada a cena do assassinato de Lineu (flash back), como numa historinha narrada num livro-de-detetive fuleira, essa idéia é reiterada: Laura é a personagem que "quer-a-trama" ao longo da novela, é ela quem "instaura" a novela desde seu início...Mais-que-verossímel, a explicação de Laura no final reafirma o lugar dela como a dona-da-história: o personagem que, ao longo de toda a trama, viveu exatamente de seus feitos e da glória deles, desestruturando a  rotina de uma narrativa de banalidades que nunca interessou à esta novela.

O círculo se fecha perfeitamente com a confirmação de Laura como a assassina, indo contra a corrente do "quem matou Lineu" dos bolões de aposta – desestruturando o próprio suspense que alavancou a novela na última semana. Deixando de lado qualquer tipo de "sacada", o que impreciona é como essa solução se encaixa perfeitamente na estrutura geral da novela, onde o "whodunit" sempre perpassava o espaço de ação da personagem de Laura. A personagem de Abreu funcionava antes de tudo como um elemento de emergência e narração das tramas, de todas as tramas da novela. Dar a outro personagem o lugar de "quem fez", logo no último capítulo, seria um desvio pobre, uma entrega banal ao desejo geral de imaginar "o mais improvável possível" dos personagens como o culpado.

Inesperadamente óbvio. Para quem gostou ou não gostou... 

Obs: Uma nota mais Global, do que autoral, digamos assim...Chamou atenção o show de Gilberto Gil ao final da novela – na verdade mais um pós-trama do que um elemento de dramaturgia. Havia um certo "quê" de celebração de uma certa "produção cultural brasileira" – reiterada com a presença do ministro (o poder oficial) e aqueles planos intermináveis das centenas de rostos de maquinistas, figurinistas, cenógrafos, contra-regras da novela, etc...Um elogio um tanto exacerbado à idéia de uma "indústria cultural brasileira" – construída por aquela série de anônimos (numa novela com nome de "Celebridade", a jogada se justifica...)...Mais do que chegar a conclusões, essa cena final, quase-bizarra, nos faz pensar sobre as estranhas relações que a iniciativa privada no Brasil cultiva com o espaço público, em especial no meio da produção, dita, "artística". Aqueles olhos arregalados, mostrados num travelling sem fim, em contracampo a um cantante ministro da cultura, prestes a assinar (na vida off-palcos) a criação da Ancinav (agência que vai regular o audiovisual brasileiro – leia-se: TVs incluídas) é, no mínimo, um gesto a se anotar com um misto de curiosidade e desconfiança. Como disse o moço Godard certa vez: o travelling é uma questão de moral...Resta-nos saber qual a moral da madame Rede Globo.

Felipe Bragança

Textos da semanas anteriores:
Terapeuta JK (por Francisco Guarnieri)
Viagens Fantásticas (parte 1) (por Felipe Bragança)
Coito de Cachorro, Otávio Mesquita, Sônia Abrão e outras sumidades televisivas (por Francisco Guarnieri)
Pânico! (por Felipe Bragança)
Notas, notas, notas (por Francisco Guarnieri)
Da TV e dos corpos humanos, parte 2 (por Felipe Bragança)
Da TV e dos corpos humanos, parte 1 (por Felipe Bragança)
Violência da edição, edições da violência (por Felipe Bragança)
Fauna in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa (por Francisco Guarnieri)
Semana de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 – Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva 2003 (por Felipe Bragança)
A Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos treze (por Roberto Cersósimo)
Algum começo... (por Felipe Bragança)
Uma novela de... (por Roberto Cersósimo)
O canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe Bragança)
O fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos (por Felipe Bragança)