COME DRINK WITH ME
King Hu, Da zui xia, Hong Kong, 1966
 

Come Drink With Me está para o wu xia pian (gênero chinês de "capa e espada") assim como A Aventura (Antonioni) está para o cinema moderno. No filme de King Hu, de 1966, a linguagem do cinema de ação se vê diante de uma contribuição incontestável, ao passo que as imagens alcançam uma beleza que beira a pictorialidade e não esbarra em excessos. Ápice da passagem de King Hu pelo grande estúdio Shaw Brothers, de Hong Kong, o filme tem motivos em estoque para ser admirado sem ressalvas.

No número da revista Cahiers du Cinéma intitulado "Made in Hong Kong", de 1984, Olivier Assayas divide a obra de King Hu entre os filmes de interior e os de exterior, Come Drink With Me pertencendo ao primeiro grupo. É, de fato, numa cena de interior, a do albergue, que o filme apresenta seus personagens principais, planta seus artifícios mais evidentes, organiza sua mecânica de ação, constrói seu dispositivo. Como está já no título, o filme é um convite – do cineasta ao espectador e, na diegese, dos personagens entre si. Cada cena de luta em Come Drink With Me surge menos pela provocação hostil do que pelo sorriso ambíguo (um dos vilões se chama justamente Tigre Sorridente) que convida ao combate. Os dois protagonistas de Come Drink With Me são Andorinha de Ouro (também conhecida como Srta. Chang) e Gato Beberrão (também conhecido, por poucos, como Fan Ta Pei). Nessa história (de amor?) filmada por Hu, Frajola não enxerga Piu-piu como banquete: muito pelo contrário, ele é seu protetor atento. A andorinha é interpretada por Cheng Pei-pei, grandiosa atriz de artes marciais que aparece em uma penca de filmes entre 1963 e 1970 (data de sua emigração aos EUA) e que mais recentemente participou de O Tigre e o Dragão, de Ang Lee. Na época medieval em que Come Drink With Me se passa, ela interpreta uma guerreira que tem por missão libertar seu irmão Mestre Chang das garras de Liao Kung, poderoso opositor do Governador. Ela é uma espécie de agente especial do governo que, ao contrário da fórmula James Bond (em que a bond-girl é marcadamente coadjuvante), compõe um dos dois pólos condutores do filme em seus aspectos tanto narrativos quanto estéticos e, por que não dizer, filosóficos (é reconhecido o destaque que Hu concedia aos papéis femininos). Ela representa a ação em estágio nobre: movimentos elegantes e bem estudados (Cheng Pei-pei era dançarina antes de ser atriz de kung fu), manejo de armas, extrema disciplina. Sua mestria é palpável, enquanto a do ébrio, o outro pólo que completa a harmonia perfeita sustentada pelo filme, se mostrará cada vez mais próxima de uma dimensão fantástica, sobrenatural. A superioridade dela numa suposta escala humana – e a inferioridade dele, nessa mesma escala – se contrabalança à superioridade dele como mestre do intangível, verdadeiro herói transformador do filme. O encontro desses dois personagens é também o encontro da "seriedade" do drama com a comédia. A relação deles, embora nenhum ato de amor seja consumado, é como um romance latente – a cena na casa dele, depois dela ser ferida pela flecha envenenada, funciona como idílio (e a floresta em torno é mesmo construída como espaço de fábula). O equilíbrio que o filme estabelece se dá entre a sobriedade e a embriaguez, a guerreira profissional e o herói despretensioso, a suavidade e o burlesco, o golpe com os pés e as mãos e os poderes mágicos. Verdadeira "geografia química" do corpo; a começar pela bebida alcoólica, o filme se baseia naquilo que passa pelo corpo e induz alterações na mente.



Na cena do albergue, terceira seqüência do filme, encontram-se fatores cruciais para um cinema que se admite fundamentalmente físico: disposição precisa de corpos no espaço, escolha de lugares, geometria de olhares, troca de sinais visuais (seja através do olhar, seja através de objetos – o leque de Tigre Sorridente). Plástica e narrativamente, a cena estabelece o jogo primordial do filme: a câmera se move com uma suntuosidade que se complementa na elegância da andorinha e tem sua contrapartida na intromissão do gato (crucial, pois ela estava prestes a ser atacada por trás). A entrada dele em cena, com os dedos presos na fresta da porta que estava para ser trancada, mostra que sua função é justamente a do já citado equilíbrio, a de arejar o ambiente, abrir brecha para o oxigênio, e impedir que ela seja engaiolada. Um alívio cômico do filme que é também um alívio verdadeiro para a personagem de Cheng pei-pei. Em certo sentido, a seqüência do albergue lembra dois dos melhores John Ford, No Tempo das Diligências e O Homem que Matou o Facínora, filmes que trazem como nó central exatamente uma cena de rancho/restaurante em que a decupagem não obedece a uma hierarquia interna à diegese. Existe a tensão de uma diferença precisamente demarcada no espaço dramático, mas a mise en scène e a montagem, ao não assimilar qualquer privilégio de classe ou estrutura hierarquizada, provam que só é possível perceber essa diferença uma vez que se estabelece previamente a igualdade. O Gato Beberrão, aparentemente um vagabundo que vai de bar em bar à procura de uma alma caridosa que lhe pague uma bebida, anda acompanhado de um grupo de crianças e canta músicas de rimas fáceis e mensagens em favor da vida simples e contra a rigidez das honrarias e das ordens oficiais. Ele utiliza a famosa receita do "se faz de bobo para sobreviver". Sua posição dentro da narrativa faz dele como que a versão frívola dos personagens soturnos de John Wayne, não só por sua inclusão fronteiriça num imaginário de "pré-civilização" – o Velho Oeste nos EUA, a Idade Média na China –, mas também pelo papel que desenvolve dentro do sistema de ação: o personagem recluso, que detém uma destreza (o pistoleiro em Ford, as artes marciais em Hu), que se distanciou da sociedade por não acreditar nos seus cânones – mas que no fim das contas ajuda o assentado a estabelecer a ordem.

A ação em Come Drink With Me se desenvolve em focos múltiplos, não aspira a uma forma unívoca, não obedece à lógica solitária do individualista radical (herói ocidental típico). Se todos sabem lutar, é porque o filme precisa elaborar uma ação coletiva que ultrapasse os duelos, as oposições individuais. Como Liao Kung – aliado do passado e antagonista do presente – diz ao Gato Beberrão, mesmo à beira da morte este ainda se mete em assuntos dos outros: sua vocação é para a solidariedade. Não à toa, a postura de King Hu em Come Drink With Me é de fazer uma espécie de raccord solidário, a passagem de um plano a outro visando a facilitar e potencializar o movimento do personagem (sem poupar o espectador de um resultado volta-e-meia desnorteante): uma cumplicidade coreográfica cujo maior paralelo no cinema são os filmes musicais americanos. O enquadramento em cinemascope favorece planos de conjunto que reforçam esse perfil coletivista das cenas de ação; o kung fu em Come Drink With Me é uma brincadeira para muitos, mas que só alguns sabem jogar de verdade (os que literalmente sobram nas cenas). Alguns plongés de Come Drink With Me, por sinal, desenham arabescos através de figuras humanas que lembram, ainda que em menor grau de complexidade visual, as composições dos musicais de Busbey Berkeley nos anos trinta, um efeito-cinema em cuja base está o desarranjo formal (um plano se soma ao outro muito mais para buscar caminhos psicotrópicos do que para encadear sentido).

Assim como os corpos, os objetos no cinema de kung fu perdem a gravidade, são deslocados em função do desejo de superar qualquer limite por parte dos lutadores. Com o poder da concentração e do pensamento, Gato Beberrão/Fan Ta Pei transforma a simples queda d’água em frente à sua choupana em poderosa cachoeira (uma panorâmica vai do rosto dele à cachoeira e volta, até a perda da concentração, sendo a transição da queda violenta ao fluir tranqüilo da água somente sonora, uma vez que a imagem está no rosto dele nesse momento). Come Drink With Me é uma fábula, a um só tempo, da dispersão (no plano da decupagem e da ação não hierarquizada) e da reunião (que começa no caráter congregário do título, condensa-se na seqüência do albergue, passa pela relação entre Fan Ta Pei e Srta. Chang e se fecha na unidade global que o filme atinge pouco a pouco).

Há uma coisa de profecias que se confirmam, de destino já escrito, mas que necessita de esforço supremo para se concretizar. Nesse universo ao mesmo tempo plenamente dinâmico (portanto, passível de várias mudanças) e fortemente marcado por tradições, tudo requer firmeza moral e disciplina para acontecer. Que não se confunda, em hipótese alguma, essa dimensão moral do código infalível mobilizado pelos mestres da arte marcial com condutas pessoais tacanhas. Trata-se antes de uma questão que, no fundo, reconecta-se à própria parcela física desse cinema: é a colocação de uma "base" (termo corrente entre os lutadores) que seja posição de alerta defensivo e ataque iminente (fincar os pés no chão mas ainda assim poder alçar vôo na ofensiva ao adversário) e a "tomada de vista" em relação ao inimigo, o lugar de onde se enxerga (e se enuncia) o outro. Quando um personagem monta a base, significa que aceitou lutar, aceitou o convite.

Uma cena que diz muito sobre o filme é a da casca de banana que Fan Ta Pei joga no chão, fazendo com que o opositor de Srta. Chang escorregue antes de atingi-la, na seqüência em que ela depois recebe uma flechada envenenada e terá de se embrenhar na selva. Essa intrusão do pastelão tem origem histórica conhecida: a herança da ópera de Pequim, de onde surgiram muitos dos profissionais do cinema de Hong Kong, é mais do que perceptível nos filmes de kung fu. Acrobacia, dança, música, poesia, observação de costumes, maquiagem, noção de máscara (impressa no personagem do bêbado que depois se revela mestre/herói em Come Drink With Me): tudo isso é transmitido ao cinema. A ópera de Pequim se dividiu após 1949, a China popular ficando com o lado abstrato, "artístico" (numa acepção mais tradicional), didático nas temáticas e abordagens, enquanto Hong Kong abraçou justamente a parcela lúdica, física – e potencialmente comercial: a ação (todo seu aspecto acrobático e malabarístico), o humor (a comicidade em Come Drink With Me tem papel determinante), a vulgaridade, o elogio do artifício. A banana atirada ao chão metonimiza toda essa carga emprestada à ópera teatral em sua versão mais popular (e Come Drink With Me de fato se origina de um texto escrito para o teatro): é o artifício mais baixo possível, literalmente rés do chão, provocando o humor mais transparente (o escorregão do adversário de Cheng Pei-pei). No meio da luta "séria", entra a brincadeira.

Da mesma forma que o espaço oscila entre a construção fantasiosa (a floresta onde ele mora por vezes parece decalcada de desenho animado) e o aproveitamento de um espaço histórico digno da expressão "filme de época", a ação em Come Drink With Me documenta os movimentos humanamente possíveis dos lutadores na mesma medida em que fabula saltos extremos, manobras mirabolantes, sopros mortais, raios que saem das mãos. E a soma de tudo é essa obra-prima que, em tempos de Kill Bill, se faz peça mais que obrigatória na estante (real e/ou virtual) da cinefilia.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 




Come Drink With Me de King Hu