Pode um filme enfileirar problemas
e, apesar disso ou até por isso, despertar interesse
para suas imagens e, de forma mais ampla, para o futuro
de um autor? Sem dúvida. E esse é o caso
de Estranhas Ligações e, por extensão,
da diretora Delphine Gleize - mestranda em letras, com
pequena carreira de curtas-metragens festejados, que
tinha 27 anos quando estreou no longa. Exibido na mostra
Um Certo Olhar, no Festival de Cannes de 2003, Carnage
(carnificina, em francês) a princípio diferencia-se
por suas opções, por não ligar
uma coisa à outra, mas com o tempo perde seu
fôlego, em parte por sua própria visão
fatalista do humano (e não uma visão do
humano na configuração específica
do mundo nesse momento histórico, mas dentro
de uma chave mais abstrata e menos materialista da espécie),
em parte pela obsessão em se tornar singular.
Vemos nos primeiros minutos a abertura do leque de personagens
que a diretora vai acompanhar nas duas horas seguintes:
temos um toureiro iniciante ferido em sua estréia
na arena, uma professora preocupada com uma aluna esquisita,
essa aluna marcada por uma apreensão mórbida
da vida, uma atriz cheia de esparadrapos pelo corpo
e frequentadora de uma terapia aquática onde
todos ficam nús em uma piscina, um homem com
a mulher grávida apresentado em uma cena de sexo
com uma amante circunstancial. Emprega-se montagem paralela
para acompanhar as ações e aflições
mais ou menos simultâneas de personagens situados
em espaços físicos diferentes. Não
vemos nesse painel humano, movido pelas ações
que geram reações, uma organização
dentro da aparente desorganização (como
no Robert Altman de Short Cuts), tampouco um
visão mais ou menos homogênea sobre as
motivações do mal estar dos personagens
(como no Paul Thomas Anderson de Magnólia).
A disposição parecer ser quase oposta:
temos a impressão de assistir a um permanente
prológo após o qual não há
mais nada para se mostar. Nenhuma possibilidade de encadeamento
de signos para se transmitir a sensação
de uma evolução de personagens e acontecimentos
até se chegar à conclusões sobre
esses personagens e acontecimentos.
O olho que tudo vê, olho da câmera, não
enxerga nada. Apenas corpos em movimentos, a dificuldade
de mantê-los integrados e em equilíbrio
com o espaço, superfícies sendo alteradas,
a caminho da degradação e do fim. A câmera
persegue a relação dos corpos uns com
outros e consigo mesmos: corpos que caem, corpos que
se esfregam, nos quais se intervém cirurgicamente,
abertos e fatiados, empalhados, corpos ao quais se come,
que alimentam outros corpos. E o corpo ao qual tudo
está indiretamente conectado é o de um
touro, símbolo da derrotada inevitável,
independente do destino do toureiro, pois a morte o
espera no fim do embate.
Temos assim mortos e feridos, cadáveres e cicatrizes,
mas, ao contrário dos contemporâneos O
Pântano, de Lucrecia Martel, e Respiro,
de Emanuele Crialese, ambos também atentos às
marcas da vida na superfície dos corpos, predomina
a morbidez e não a energia vital (presente mesmo
no ceticismo, como bem sabe Lucrecia Martel). Tudo remete
à idéia de fim, apesar de uma grávida
em cena – e o uso da música "Valsinha",
de Chico Buarque e Vinicius de Moares, em três
interpretações (Chico, Antonio Chainho,
Ney Matogrosso), ressalta a idéia de fim. Se
existe alguma totalidade, no caso de ordem metafísica
que une as diferentes geografias (Espanha, França,
Bélgica), essa totalidade recusa decifração.
Pelo contrário: a visão de conjunto possível
dessas experiências individuais é a visão
do absurdo, de uma falta de lógica no movimento
do universo, que aproxima em certa medida Dephine Gleize
e Julio Medem, mas sem a poesia astrológica contida
nos filmes do cineasta espanhol. Os personagens se analisam,
psicologizam-se, cultuam seus problemas, vítimas
de si mesmos e do mundo, de si mesmos no mundo, mas
não há alvo definido, tampouco diagnóstico.
As razões da infelicidade estão na experiência
de se estar vivo, na inevitabilidade do fim, no destino
de touro de cada ser humano em cena.
Há afetação anêmica na transformação
em imagens dessa visão de carnificina metafísica
(com inevitável senso de tragédia grega
aqui em moldura fashion, tragédia grega em geral
associada à touradas). Para se embrenhar em enfermidades
(da ordem do espiritual, mas expressas na ordem do físico),
o próprio filme coloca-se como enfermo. Nenhuma
potência ou vitalidade. Produz-se cinzas e não
faíscas. O esforço dos diálogos
em ser inteligentes e profundos não resulta em
consequências outras além de agressões
ao ouvido. A repetição obsessiva de alguns
elementos, em geral dispostos a normalizar o bizarro
sem deixar de mostrá-los como bizarros (ao contrário,
por exemplo, de um Alejando Jodorowski), vai sendo esvaziado
até se perder o fôlego completamente. Para
um filme supostamente sobre a valorização
de instantes, este deixa de esticar o tempo de algumas
cenas para os multiplicar em fatias, em uma exibição
de quantidade sem soma, talvez para se acentuar a impossibilidade
de erguer um tema, substituído pela sucessão
de fragmentos.
E onde estaria o interesse por Delphine Gleize? Certamente,
em seu desejo de, mesmo abusando aqui e asfixiando-se
ali, correr riscos. Ela explicita a construção
de um estilo não naturalista, quer se fazer notar,
colar uma marca em sua encenação, dar
seu grito estético. Emprega alguns cortes para
gerar efeito espertinho (do touro em uma cena para um
cachorro em outra), usa câmera lenta em um trecho,
investe nos planos próximos para captar detalhes
do espaço físico, acumula amadas sonoras
na imagem para criar estranhamento, busca o mistério
cultivado na articulação entre as imagens.
"Não sei nada, nunca sabemos", diz
uma personagem. Se existe uma lógica, seja na
ligação entre os personagens, seja no
significado dessa ligação, ela é
sempre rarefeita - é da ordem do abstrato, do
simbolismo movediço. Mas seu maior mérito,
embora esse julgamento seja muito pessoal, está
em provocar, ao final da sessão, o repúdio
a muitas de suas opções e, ao mesmo tempo,
seduzir expectativas em relação à
sua continuidade. Surge assim uma diretora cheia de
imperfeições, muito deslumbrada consigo
mesmo, mas com potencial para por os pés no chão,
sem com isso fechar os olhos, os dela e os nossos, para
as ricas possibilidades do audiovisual. Esperemos, portanto.
Cléber Eduardo
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