Estranhas Ligações
Delphine Gleize, Carnages, França/Bélgica/Suiça/Espanha, 2002

Pode um filme enfileirar problemas e, apesar disso ou até por isso, despertar interesse para suas imagens e, de forma mais ampla, para o futuro de um autor? Sem dúvida. E esse é o caso de Estranhas Ligações e, por extensão, da diretora Delphine Gleize - mestranda em letras, com pequena carreira de curtas-metragens festejados, que tinha 27 anos quando estreou no longa. Exibido na mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes de 2003, Carnage (carnificina, em francês) a princípio diferencia-se por suas opções, por não ligar uma coisa à outra, mas com o tempo perde seu fôlego, em parte por sua própria visão fatalista do humano (e não uma visão do humano na configuração específica do mundo nesse momento histórico, mas dentro de uma chave mais abstrata e menos materialista da espécie), em parte pela obsessão em se tornar singular.

Vemos nos primeiros minutos a abertura do leque de personagens que a diretora vai acompanhar nas duas horas seguintes: temos um toureiro iniciante ferido em sua estréia na arena, uma professora preocupada com uma aluna esquisita, essa aluna marcada por uma apreensão mórbida da vida, uma atriz cheia de esparadrapos pelo corpo e frequentadora de uma terapia aquática onde todos ficam nús em uma piscina, um homem com a mulher grávida apresentado em uma cena de sexo com uma amante circunstancial. Emprega-se montagem paralela para acompanhar as ações e aflições mais ou menos simultâneas de personagens situados em espaços físicos diferentes. Não vemos nesse painel humano, movido pelas ações que geram reações, uma organização dentro da aparente desorganização (como no Robert Altman de Short Cuts), tampouco um visão mais ou menos homogênea sobre as motivações do mal estar dos personagens (como no Paul Thomas Anderson de Magnólia). A disposição parecer ser quase oposta: temos a impressão de assistir a um permanente prológo após o qual não há mais nada para se mostar. Nenhuma possibilidade de encadeamento de signos para se transmitir a sensação de uma evolução de personagens e acontecimentos até se chegar à conclusões sobre esses personagens e acontecimentos.

O olho que tudo vê, olho da câmera, não enxerga nada. Apenas corpos em movimentos, a dificuldade de mantê-los integrados e em equilíbrio com o espaço, superfícies sendo alteradas, a caminho da degradação e do fim. A câmera persegue a relação dos corpos uns com outros e consigo mesmos: corpos que caem, corpos que se esfregam, nos quais se intervém cirurgicamente, abertos e fatiados, empalhados, corpos ao quais se come, que alimentam outros corpos. E o corpo ao qual tudo está indiretamente conectado é o de um touro, símbolo da derrotada inevitável, independente do destino do toureiro, pois a morte o espera no fim do embate.

Temos assim mortos e feridos, cadáveres e cicatrizes, mas, ao contrário dos contemporâneos O Pântano, de Lucrecia Martel, e Respiro, de Emanuele Crialese, ambos também atentos às marcas da vida na superfície dos corpos, predomina a morbidez e não a energia vital (presente mesmo no ceticismo, como bem sabe Lucrecia Martel). Tudo remete à idéia de fim, apesar de uma grávida em cena – e o uso da música "Valsinha", de Chico Buarque e Vinicius de Moares, em três interpretações (Chico, Antonio Chainho, Ney Matogrosso), ressalta a idéia de fim. Se existe alguma totalidade, no caso de ordem metafísica que une as diferentes geografias (Espanha, França, Bélgica), essa totalidade recusa decifração. Pelo contrário: a visão de conjunto possível dessas experiências individuais é a visão do absurdo, de uma falta de lógica no movimento do universo, que aproxima em certa medida Dephine Gleize e Julio Medem, mas sem a poesia astrológica contida nos filmes do cineasta espanhol. Os personagens se analisam, psicologizam-se, cultuam seus problemas, vítimas de si mesmos e do mundo, de si mesmos no mundo, mas não há alvo definido, tampouco diagnóstico. As razões da infelicidade estão na experiência de se estar vivo, na inevitabilidade do fim, no destino de touro de cada ser humano em cena.

Há afetação anêmica na transformação em imagens dessa visão de carnificina metafísica (com inevitável senso de tragédia grega aqui em moldura fashion, tragédia grega em geral associada à touradas). Para se embrenhar em enfermidades (da ordem do espiritual, mas expressas na ordem do físico), o próprio filme coloca-se como enfermo. Nenhuma potência ou vitalidade. Produz-se cinzas e não faíscas. O esforço dos diálogos em ser inteligentes e profundos não resulta em consequências outras além de agressões ao ouvido. A repetição obsessiva de alguns elementos, em geral dispostos a normalizar o bizarro sem deixar de mostrá-los como bizarros (ao contrário, por exemplo, de um Alejando Jodorowski), vai sendo esvaziado até se perder o fôlego completamente. Para um filme supostamente sobre a valorização de instantes, este deixa de esticar o tempo de algumas cenas para os multiplicar em fatias, em uma exibição de quantidade sem soma, talvez para se acentuar a impossibilidade de erguer um tema, substituído pela sucessão de fragmentos.

E onde estaria o interesse por Delphine Gleize? Certamente, em seu desejo de, mesmo abusando aqui e asfixiando-se ali, correr riscos. Ela explicita a construção de um estilo não naturalista, quer se fazer notar, colar uma marca em sua encenação, dar seu grito estético. Emprega alguns cortes para gerar efeito espertinho (do touro em uma cena para um cachorro em outra), usa câmera lenta em um trecho, investe nos planos próximos para captar detalhes do espaço físico, acumula amadas sonoras na imagem para criar estranhamento, busca o mistério cultivado na articulação entre as imagens. "Não sei nada, nunca sabemos", diz uma personagem. Se existe uma lógica, seja na ligação entre os personagens, seja no significado dessa ligação, ela é sempre rarefeita - é da ordem do abstrato, do simbolismo movediço. Mas seu maior mérito, embora esse julgamento seja muito pessoal, está em provocar, ao final da sessão, o repúdio a muitas de suas opções e, ao mesmo tempo, seduzir expectativas em relação à sua continuidade. Surge assim uma diretora cheia de imperfeições, muito deslumbrada consigo mesmo, mas com potencial para por os pés no chão, sem com isso fechar os olhos, os dela e os nossos, para as ricas possibilidades do audiovisual. Esperemos, portanto.

Cléber Eduardo