Abandonemos
a óbvia tentação de remeter o novo
cinema argentino à situação política
do país. De bobagens comercialóides brincando
de Chinatown como Nove Rainhas até
filmes vigorosos esteticamente como O Pântano,
o cinema argentino levanta muito mais questões
do que a quebra do país e, a rigor, estaria se
dando até com maior força caso não
estivesse sendo realizado num país falido (como,
ademais, o Brasil é, mesmo sem ter jogado a toalha).
Ainda mais por não se tratar de uma estética
derivada imediatamente da experiência local, a
se julgar por El Bonaerense e O Pântano,
mas de filmes que dialogam com o cinema contemporâneo
inteiro, de Arturo Ripstein a Hou Hsiao-hsien, de Claire
Denis a Frederick Wiseman. Um cinema que se apropria
do vivo, do bruto de maneira quase documentária
mas que não prescinde em nenhum momento do poder
de expressão e criação plástica
caros ao cinema.
El Bonaerense nos abre num subúrbio pobre
numa cidade distante do centro argentino. Conhecemos
Mendoza, um chaveiro que é contratado para abrir
um cofre ilegalmente. O negócio está todo
armado: ele fará o trabalho, será denunciado,
e de dentro da polícia alguém o levará
para Buenos Aires, onde terá as costas quentes
para perseguir uma carreira ascendente. Desde o começo,
se estabelece o signo da corrupção como
uma entidade endêmica no seio da sociedade (e
não só da corporação policial),
e o filme flagra isso tudo quase como um antropólogo:
filma as mesas de família, os estranhos rituais
que devem ficar em segredo, as festas do clã,
os estranhos códigos de relacionamento e as leis
de convivência.
Se o filme tem uma precisão do registro, uma
veracidade quase documentária, não é
tanto por ceder à moda de fazer a câmera
balançar como um fetiche (como em Domingo
Sangrento), mas na escolha do "o que"
filmar e na proximidade com que filma tudo que rodeia
aquele mundo. Pensemos numa das cenas mais impactantes
do filme: num plantão de dia de Natal, depois
de uma alcoolizada festinha interna, Mendoza se ocupa
de tarefas burocráticas dentro do distrito enquanto
dois policiais param uma motocicleta em que os dois
passageiros estão absolutamente bêbados.
A cena é filmada do ponto de vista de Mendoza,
através de uma fresta de janela: o policial afasta
a persiana e um naco de espaço revela a falta
de cuidado dos policiais numa situação-limite.
A motoca parte em frente e a desgraça se dá,
fora do plano. Só a partir daí a câmera
deixa o recinto e parte para a rua, onde constata o
saldo do ocorrido. Quanto a nós, espectadores,
estamos numa posição delicada: ao mesmo
tempo presenciamos (junto com Mendoza, estamos com
ele) uma barbaridade (atirarem para matar em desobedientes
desarmados) e a penúria daqueles que a cometeram
(passaram a noite de Natal em claro, foram objeto de
desobediência, tiveram parco treinamento).
Mas se o filme consegue esquadrinhar um diagrama do
ambiente policial, é por conseguir ao mesmo tempo
filmar seus personagens como pessoas e como posições
institucionais. Mostra como um se imbrica no outro.
De um sujeito embrutecido porém terno, Mendoza
vai entrando no esquema do distrito policial e, à
medida que lhe são atribuídas responsabilidades
(colher a propina, sobretudo), passa a querer exercer
mais poder na relação amorosa (mandar
no filho dela, passar mais tempo em sua casa...). A
passagem do individual ao coletivo, e vice-versa, se
torna a grande força de El Bonaerense:
quando observamos a precariedade e falta de preparo
de Mendoza para fazer parte daquela corporação
que tem por função defender a sociedade,
ou seja, ocupar um papel decisivo da sociedade, nasce
um espanto de ordem social: como é possível
a infalibilidade se lidamos com material humano tão
delicado? Da mesma forma, o transbordamento da posição
social para o comportamento individual é particularmente
forte: ele tenta invadir a casa da amante, delega tarefas
no que é prontamente desobedecido. Ele
se sente desabonado no plano individual ou social? A
câmera perscruta, mas mantém a ambigüidade.
Cruzar o artista e o policial, que tour de force. A
polícia como instituição é
o eterno outro do cinema. Instituição
esotérica (as informações jamais
circulam para fora dela) e autoprotetora, ela é
opaca na exata medida em que o cinema é transparente
(mesmo que as corporações cinematográficas
possam ser, nesse sentido e especialmente no Brasil,
muito policialescas): ele exibe imagens ao passo que
a polícia não as deixa sair. O cinema
procura as imagens em fuga enquanto a polícia
duvida delas tanto que os pronunciamentos só
existem como "oficiais", e subordinados nunca
estão aptos a falar. Desse cruzamento, Pablo
Trapero sabe tirar imagens sem no entanto desrespeitar
aquele universo filmado, tão avesso ao cinema
(e não é à toa que até hoje
um tal filme nunca havia sido feito, à exceção
de Lei e Ordem de Frederick Wiseman). As imagens
são de uma textura forte, de uma beleza tão
dura quanto a vida do distrito umas primeiras
imagens recheadas por uma calorosa luz dourada (que
fazem possivelmente os momentos mais fracos do filme)
logo no início são substituídas
por um azul muito frio, muito assemelhado esteticamente
ao verde piscina de O Pântano, provocando
distanciamento e expressando a secura psicológica
dos personagens. A grande aposta do filme reside em
seu protagonista: e se Mendoza fosse nós? O espectador
na pele do policial treme e teme, por ele e por causa
dele. Nessa impressionante habilidade em mesclar uma
e outra reside a beleza de El Bonaerense.
Ruy Gardnier
|