Do Outro Lado da Lei
Pablo Trapero, El Bonaerense, Argentina/França/Chile, 2004

Abandonemos a óbvia tentação de remeter o novo cinema argentino à situação política do país. De bobagens comercialóides brincando de Chinatown como Nove Rainhas até filmes vigorosos esteticamente como O Pântano, o cinema argentino levanta muito mais questões do que a quebra do país e, a rigor, estaria se dando até com maior força caso não estivesse sendo realizado num país falido (como, ademais, o Brasil é, mesmo sem ter jogado a toalha). Ainda mais por não se tratar de uma estética derivada imediatamente da experiência local, a se julgar por El Bonaerense e O Pântano, mas de filmes que dialogam com o cinema contemporâneo inteiro, de Arturo Ripstein a Hou Hsiao-hsien, de Claire Denis a Frederick Wiseman. Um cinema que se apropria do vivo, do bruto de maneira quase documentária mas que não prescinde em nenhum momento do poder de expressão e criação plástica caros ao cinema.

El Bonaerense nos abre num subúrbio pobre numa cidade distante do centro argentino. Conhecemos Mendoza, um chaveiro que é contratado para abrir um cofre ilegalmente. O negócio está todo armado: ele fará o trabalho, será denunciado, e de dentro da polícia alguém o levará para Buenos Aires, onde terá as costas quentes para perseguir uma carreira ascendente. Desde o começo, se estabelece o signo da corrupção como uma entidade endêmica no seio da sociedade (e não só da corporação policial), e o filme flagra isso tudo quase como um antropólogo: filma as mesas de família, os estranhos rituais que devem ficar em segredo, as festas do clã, os estranhos códigos de relacionamento e as leis de convivência.

Se o filme tem uma precisão do registro, uma veracidade quase documentária, não é tanto por ceder à moda de fazer a câmera balançar como um fetiche (como em Domingo Sangrento), mas na escolha do "o que" filmar e na proximidade com que filma tudo que rodeia aquele mundo. Pensemos numa das cenas mais impactantes do filme: num plantão de dia de Natal, depois de uma alcoolizada festinha interna, Mendoza se ocupa de tarefas burocráticas dentro do distrito enquanto dois policiais param uma motocicleta em que os dois passageiros estão absolutamente bêbados. A cena é filmada do ponto de vista de Mendoza, através de uma fresta de janela: o policial afasta a persiana e um naco de espaço revela a falta de cuidado dos policiais numa situação-limite. A motoca parte em frente e a desgraça se dá, fora do plano. Só a partir daí a câmera deixa o recinto e parte para a rua, onde constata o saldo do ocorrido. Quanto a nós, espectadores, estamos numa posição delicada: ao mesmo tempo presenciamos (junto com Mendoza, estamos com ele) uma barbaridade (atirarem para matar em desobedientes desarmados) e a penúria daqueles que a cometeram (passaram a noite de Natal em claro, foram objeto de desobediência, tiveram parco treinamento).

Mas se o filme consegue esquadrinhar um diagrama do ambiente policial, é por conseguir ao mesmo tempo filmar seus personagens como pessoas e como posições institucionais. Mostra como um se imbrica no outro. De um sujeito embrutecido porém terno, Mendoza vai entrando no esquema do distrito policial e, à medida que lhe são atribuídas responsabilidades (colher a propina, sobretudo), passa a querer exercer mais poder na relação amorosa (mandar no filho dela, passar mais tempo em sua casa...). A passagem do individual ao coletivo, e vice-versa, se torna a grande força de El Bonaerense: quando observamos a precariedade e falta de preparo de Mendoza para fazer parte daquela corporação que tem por função defender a sociedade, ou seja, ocupar um papel decisivo da sociedade, nasce um espanto de ordem social: como é possível a infalibilidade se lidamos com material humano tão delicado? Da mesma forma, o transbordamento da posição social para o comportamento individual é particularmente forte: ele tenta invadir a casa da amante, delega tarefas – no que é prontamente desobedecido. Ele se sente desabonado no plano individual ou social? A câmera perscruta, mas mantém a ambigüidade.

Cruzar o artista e o policial, que tour de force. A polícia como instituição é o eterno outro do cinema. Instituição esotérica (as informações jamais circulam para fora dela) e autoprotetora, ela é opaca na exata medida em que o cinema é transparente (mesmo que as corporações cinematográficas possam ser, nesse sentido e especialmente no Brasil, muito policialescas): ele exibe imagens ao passo que a polícia não as deixa sair. O cinema procura as imagens em fuga enquanto a polícia duvida delas – tanto que os pronunciamentos só existem como "oficiais", e subordinados nunca estão aptos a falar. Desse cruzamento, Pablo Trapero sabe tirar imagens sem no entanto desrespeitar aquele universo filmado, tão avesso ao cinema (e não é à toa que até hoje um tal filme nunca havia sido feito, à exceção de Lei e Ordem de Frederick Wiseman). As imagens são de uma textura forte, de uma beleza tão dura quanto a vida do distrito – umas primeiras imagens recheadas por uma calorosa luz dourada (que fazem possivelmente os momentos mais fracos do filme) logo no início são substituídas por um azul muito frio, muito assemelhado esteticamente ao verde piscina de O Pântano, provocando distanciamento e expressando a secura psicológica dos personagens. A grande aposta do filme reside em seu protagonista: e se Mendoza fosse nós? O espectador na pele do policial treme e teme, por ele e por causa dele. Nessa impressionante habilidade em mesclar uma e outra reside a beleza de El Bonaerense.


Ruy Gardnier