Ficha Técnica
Direção: Joel Coen (com Ethan Coen, mas
sem crédito oficial). Produção:
Ethan Coen, Roteiro: Joel Coen e Ethan Coen. Fotografia:
Roger Deakins. Montagem: Joel Coen e Ethan Coen (creditados
como Roderick Jaynes).
Texto de Apresentação
O cinema dos irmãos
Coen é marcado pela construção
de sistemas, sistemas de cinema. Isso fica transparente
no fato de que, veja-se a filmografia como um mapa,
seus filmes são geralmente filmes de gênero.
Nem sempre um gênero só, e nem sempre gêneros
habituais, mas sempre filmes que usam a maneira tradicional
de se contar uma história em Hollywood segundo
algumas regras tradicionais como uma fonte de inspiração.
Em seus sistemas, um traço habitual: um personagem
central que se vê desafiado por sua incapacidade
de lidar justamente com o sistema. Sem jogo de palavras
aqui. Não é uma luta (em princípio,
embora, no fundo seja sempre) política. O sistema
contra o qual um personagem dos Coen se bate é
invariavelmente a própria construção
do filme, construção essa que, como é
de gênero, é alimentada por uma simplicidade
elementar: os Coen são cineastas tipicamente
americanos. Seu cinema, ousado, é johnfordiano,
hitchcockiano (no que o britânico mais tem de
americano), scorsesiano, ou seja, funciona dentro de
dogmas narrativos estritos. Modernos, nem tão
clássicos, mas nunca desconstrutivos (como um
David Lynch, por exemplo). Nouvelle sim, mas
nunca vague.
Até por isso (mais
um motivo para se saltar novamente para a filmografia-mapa,
que assume agora a função de laureagrafia),
são diretores lotados de prêmios que apontam
para esse comportamento típico. Em Cannes, viram
uma espécie de totem da aceitação
do cinema made in USA pelo mundo do cinema europeu,
no Oscar, viram uma imagem de um cinema profundo e culto,
mas cheio de bom humor. No fundo, os Coen são
um pouco até onde Hollywood acha que pode ir
sem deixar de ser Hollywood.
Barton Fink é a
quintessência da construção de estrutura
dos Coen: um filme sobre um roteirista que não
consegue fazer um filme popular, em princípio
porque é um escritor erudito. Mas não
só por isso. Barton não consegue entender
que existam regras de gênero. Para ele, a existência
de um sistema em que se preenchem lacunas de um roteiro
com um órfão excepcional de um lado, uma
viúva indefesa do outro, um lutador de luta livre
fazendo cara de mau no meio, é um desafio maior
do que a leitura de qualquer clássico. A repetição
seguida (outra coisa que ele não entende muito
bem é o cinema, com suas regras de artificialidade
industrial) da imagem do homem careca de colant que
anuncia: "I will destroy him" enquanto move
os braços de maneira quase circense soa como
a prova da insanidade de um mundo que deveria ser perfeito,
segundo seu olhar filtrado por óculos circulares.
Muito se falou sobre o
problema de bloqueio narrativo dos próprios Coen
na escrita de Ajuste Final, o que acabou criando Barton
Fink. O filme seria o 8 ½ dos irmãos que se tornaram
famosos por sua parceria quase simbiótica. Os
dois escrevem, um produz, ou outro dirige. Mas ambos
dirigem, ambos produzem, ambos editam. Tanto é
que hoje os dois assinam a mise-em-scéne.
Mas, visto de perto, o processo de esvaziamento do personagem
Barton Fink não é diferente do da esperança
quase weberiana de Norville Barnes com seu bambolê,
do cinismo de Dude Lebowski ou da expressão
de looser de Ed Crane, o homem que não
estava lá. São todos elementos para opor
esses personagens ao mundo como ele deve ser em torno
deles, um mundo feito, e aí vem a grande curiosidade
(e intelectualidade) do cinema dos Coen, com regras
de cinema.
Pois bem, Barton é
um teatrólogo de Nova York celebrado como o novo
grande nome do cenário artístico da cidade.
É 1941. Seu grande trunfo é o fato de
que ele trabalha, em suas peças, com o cidadão
comum, com a "verdade". Por conta do sucesso
da peça, é contratado por um estúdio
de Hollywood para fazer um filme. Ao lá chegar,
o choque: o filme que ele vai fazer não é
Cidadão Kane (que é de 1941, o que deixa
bem claro do que os irmãos estão falando).
Ele foi contratado para fazer um filme para o
cidadão comum, aquele mesmo que ele conhece tão
bem, já que elegeu como centro de sua dramaturgia.
Barton se isola do mundo em quarto de hotel (mixuruca,
claro, porque os grandes escritores sofrem para escrever)
e mergulha na tarefa de escrever um filme de luta livre.
Daí para frente,
o filme vira jogo de palavras. Visto de perto, Barton
Fink é uma espécie de máquina de
trocadilhos. Da idéia de liberar a mente à
de cortar cabeças. Dos tipos que atravessam o
caminho de Barton (um produtor de fala doentia, um chefe
de estúdio megalômano, uma dupla arquetípica
de investigadores) à relação com
o romancista picareta e sua amante/secretária/ghost
writer. E o maior deles é a própria posição
de Barton: ambicioso intelectualmente, arrogante, não
admite que o problema esteja em sua incompetência
para entender seu objeto. Não, ele está
acometido de uma febre de falta de criatividade.
E os elementos de gênero
se sobrepõem como em outros filmes. Como o sistema
do cinema de gângsteres é subvertido em
Ajuste Final, assim como o western é a
verdadeira fonte do drama em Arizona, Nunca Mais, assim
como o filme de tribunal é a fonte de O Amor
Custa Caro, assim também os traços de
um filme noir começam a se sobrepor em
uma estrutura de comédia, aquela em que o jogo
entre protagonista, antagonista e objetivo são
subvertidos.
Três falas são
chaves para Barton Fink.
Duas são do personagem
de John Goodman, Charlie Meadows, o vendedor de seguros,
que depois é revelado como homicida decapitador.
A primeira define o personagem Barton Fink: "Você
nunca ouve!". De fato, Barton é surdo aos
apelos da classe que jura defender. Faz pose de entender
o povo, mas, no fundo, é um scoolar com
ar superior. Eles só lhe importam como objeto
estético, não como contraponto ético.
Ele é o gênio, ele cria. Os outros são
monstros. A segunda define a lógica do filme.
Meadows (então já Mad Man Mundt), de metralhadora
nas mãos, no corredor em chamas do hotel, várias
vítimas decapitadas em seu currículo:
"Olhe para mim! Eu vou lhe mostrar a vida da mente".
É ele, que corta cabeças, que sabe como
elas funcionam.
A terceira fala, talvez
a melhor para dar conta de como o filme pensa, é
dita pelo próprio Fink (cujo nome não
deixa de ser um jogo de palavras também) diante
da pergunta escandalosa do investigador sobre a relação
entre ele e Meadows: "Sexo? Ele é um homem!
Nós lutamos!". Duplo sentido é aquilo
para o que as palavras servem.
Por isso mesmo, elas se
prestam como ferramenta. E é só quando
entende esse jogo, quando Meadows o faz entender que
a cabeça pode ser levada em pacotes, supremo
trocadilho do texto, que Barton é capaz de fazer
sua luz. Cada palavra em seu lugar, como deve ser. Tão
no seu lugar que, por algum motivo, ao ouvir, achamos
a fala final do filme de Barton um tanto parecida com
a que ouvimos no final da peça que abre o filme.
Parecida nada. A fala é rigorosamente a mesma.
Será que Barton escreve e escreverá para
sempre a mesma obra?
Parece que sim, porque
ele faz (agora apenas?) parte do sistema. Entrou "no
quadro" ("em quadro"?), como a cena final
parece gritar. Escravo da máquina de produção
em série, ele não poderá filmar
seu roteiro. Não poderá ser Orson Welles,
não poderá mostrar ao mundo a vida da
mente.
Alexandre Werneck
Citações
"A nossa maior inspiração
para fazer filmes são livros. Não que
os adaptemos (a frase foi dita antes da adaptação
de Odisséia em E aí, meu Irmão,
Cadê Você?). Eles são a base
de nosso raciocínio. Um filme nosso pode ser
inspirado em uma série de contos ou em um ensaio."
(Ethan Coen)
"Não
se pode definir Barton Fink como uma comédia,
embora eu talvez o definisse como uma comédia
de humor negro. Mas o filme tem elementos psicológicos
que não cabem muito na definição
clássica de uma comédia. Mas se você
quiser definir mesmo o filme, acho que a melhor maneira
de dizer é que ele parece um filme de Roman Polanski."
(Ethan Coen)
"Psicologicamente,
há alguma importância para nós nessa
definição de papéis de que eu sou
o diretor e o Ethan é o produtor, no sentido
de demarcar que eu não quero trabalhar com outro
produtor e ele não quer trabalhar com outro diretor."
(Joel Coen)
"A
história da caixa é mais como uma regra
de gênero: não abra a caixa, não
mostre o conteúdo da maleta etc." (Joel
Coen).
"Recebemos
uma carta da Sociedade Protetora de Animais ou coisa
parecida. Eles tinha recebido uma cópia do roteiro
e queriam saber como íamos tratar os mosquitos,
se teríamos um dublê para eles. É
sério." (Joel Coen).
Filmografia
1.
Paris, je t'aime, FRA, 2005. (Projeto apenas anunciado
de filme francês).
2.
Matadores de Velhinha (The Ladykillers), EUA, 2004.
(Prêmio do Júri no Festival de Cannes)
3.
O Amor Custa Caro (Intolerable Cruelty), EUA, 2003.
4.
O Homem que não Estava Lá (The Man Who
Wasn't There), EUA, 2001. (Prêmio de melhor diretor
no Festival de Cannes, uma indicação ao
Oscar, três ao Globo de Ouro e vários outros
prêmios).
5.
E aí, meu Irmão, Cadê Você?
(O Brother, Where Are Thou?), EUA, 2000. (Exibido no
Festival de Cannes, duas indicações ao
Oscar, Globo de Ouro de melhor ator, além de
duas outras indicações, e vários
outros prêmios).
6.
O Grande Lebowski (The Big Lebowski), EUA, 1998. (Exibido
no Festival de Berlim).
7.
Fargo (Idem), EUA, 1996. (Prêmio de melhor diretor
no Festival de Cannes, Oscars de atriz e roteiro e mais
cinco indicações, quatro indicações
ao Globo de Ouro e vários outros prêmios).
8.
A Roda da Fortuna (The Hudsucker Proxy), EUA, 1994.
(Exibido no Festival de Cannes)
9. Barton Fink – Delírios em Hollywood (Barton
Fink), EUA, 1991. (Palma de Ouro e prêmios de
melhor ator e diretor no Festival de Cannes, três
indicações ao Oscar, uma ao Globo de Ouro
e vários outros prêmios)
10.
O Ajuste Final (Miller's Crossing), EUA, 1990.
11.
Arizona, Nunca Mais (Raising Arizona), EUA, 1987.
12.
Gosto de Sangue (Blood Simple), EUA, 1984. (Grande Prêmio
do Júri, Sundance)
|