64 e 68 não foram suficientes
ainda para a inteligência brasileira (a estas
alturas pode-se ler burrice) superar o culturalismo
e o liberal-reformismo institucionalizado a partir de
1922 por Mário de Andrade.
Longe das metrópoles ocidentais que tentam se
libertar da moral e da cultura opressivas do passado,
nas colônias distantes os culturalistas continuam
sabotando toda invenção em nome da "cultura
brasileira" e da Arte com A maiúsculo para
tranqüilizar o ocupante. Oswald de Andrade (1894-1954)
continua sendo tabu pois fora do revisionismo oficial
ninguém admite a invenção considerada
"irresponsável".
(os culturalistas que tentaram matar Oswald vão
pagar em futuro próximo a dívida histórica;
jamais conseguirão substituí-lo por Mário,
o diluidor, o bibliotecário erudito.)
Sabotando toda criação fora dos moldes
oficiais em nome de "uma frente única contra
o inimigo", os culturalistas se esquecem de que
o inimigo está também entre nós.
Defender a cultura nacional equivale a imitar a remota
cultura ocidental e outras noções importadas
das metrópoles que há muito tempo jogou-a
no lixo. "Um dos maiores erros", assinala
Fanon, "é tentar revalorizar a cultura no
quadro de dominação cultural".
A cultura, objeto de segunda mão ainda em uso
em certas colônias distantes no tempo e no espaço,
continua sendo expressão da classe possuidora
e exploradora que a criou.
Trótski: "Cada classe dominante cria a sua
cultura e em conseqüência sua arte. A história
conheceu as culturas escravistas da antigüidade
clássica e do Oriente, a cultura feudal da Europa
medieval e a cultura burguesa que hoje domina o mundo.
Daí a dedução de que o proletariado
deva tentar criar a sua cultura e a sua arte (...) É
fundamentalmente falso opor a cultura e a arte burguesas
à cultura e à arte proletárias.
Essas últimas, de fato, não existirão
jamais porque o regime proletário é temporário
e transitório. A significação histórica
e a grandeza moral da revolução proletária
residem no fato de que esta planta os alicerces de uma
cultura que não será de classe mas pela
primeira vez verdadeiramente humana (...) Contrariamente
ao regime dos possuidores de escravos, dos senhores
feudais e dos burgueses, o proletariado considera a
sua ditadura como um breve período de transição.
Pode-se portanto concluir que não haverá
cultura proletária. E para dizer a verdade, não
existe motivo para lamentar isso. O proletariado tomou
o poder precisamente para acabar com a cultura de classe
e abrir caminho a uma cultura da humanidade. Esquecemos
isso, ao que parece, com muita freqüência".
A cultura em si – a própria idéia de cultura
– já apresenta um caráter de classe e
é preciso acabar, dissolver com a noção
de cultura – seja cultura feudal, burguesa ou proletária.
"Prefiro um bom poema de amor a um mau poema político,
porque o mau poema político desserve a revolução".
Nem a classe intelectual, os poetas e os camponeses
têm qualquer chance histórica de tomar
o poder num contexto subdesenvolvido. Pois foi exatamente
em torno desses falsos dilemas que a inteligência
subdesenvolvida adjetivou, mentiu, enganou e perseguiu
uma estética aristocratizante-sentimental-europeizante.
São as alegorias camponesas, as vocações
reformistas de maus poetas, as heranças cultivadas
que – mais do que ninguém – intoxicam, deturpam
e exploram o público brasileiro, Ninguém
pode, em momento nenhum e em qualquer país, negar
que a obra de Arte com A maiúsculo não
seja comprometida com o sistema – a não ser que
seja burro ou desonesto.
Ao contrário do que pensam os piedosos culturalistas,
não existe obra política reacionária
na forma e progressista na mensagem. Na verdade, o equívoco
não é um equívoco, mas uma contrafação
ideológica a oferecer prestígio, dinheiro
e má consciência aos responsáveis
não só pela "cultura nacional brasileira"
mas pela infra-estrutura intelectual que oprime o colonizado.
Quanto a mim, há muito tempo luto não
só contra a cultura ocidental mas contra a criação
de uma cultura subalterna nos moldes ocidentais como
também contra a comprometedora idéia
de cultura.
Diante do incêndio universal, é mesquinho,
provinciano e reacionário querer defender o que
é nosso; a partir da destruição
da cultura dos outros, tentar salvar o nosso pequenino
patrimônio de idéias. Ao mesmo tempo não
deixo de rir antropofagicamente e dar mais um tchau
cultura. Ou como ameaçava Maiakóvski:
"acabaremos contigo, mundo romântico!"
Quem é, então, o inimigo mortal do cinema
novo?
Os produtores independentes, os não-reformistas,
os radicais, os profetas, os criadores.
(É preciso ficar mais uma vez claro que isso
tudo pega mal para eles, que o problema é deles,
quem passará o vexame histórico serão
eles, aliás como prevíamos desde 1968)
Quem ganhou quase todos os prêmios oferecidos
pelo Instituto Nacional de Cinema no Brasil de 1970?
Antônio das Mortes e a pobre cúpula
do cinema novo. E pronto.
Consciência dividida e má consciência
Agora nós tocamos no problema chave e na vida
íntima de cada um deles: a má consciência.
A consciência dividida entre a vanguarda e a reação
os estagnou na tradicional má consciência
formalmente traduzida por um esteticismo autocomplacente
e tardio.
Ninguém do cinema novo pode tratar de outro tema
que não seja a má consciência. Impossível
deixar de fazer filmes de má consciência
(Antônio das Mortes, Macunaíma,
Os Herdeiros, Brasil Ano 2000, a má
consciência aflorando principalmente na safra
colorida "grande produção",
onde a concessão chega a ser escandalosa e poderia
paradoxalmente dar em bom cinema se não fosse
o complexo de culpa e o arrependimento sobrecarregados)
Ainda em 1970 a técnica principal do stalinismo
latino-americano continua sendo a conciliação
– principalmente com a burguesia nacional.
Lenin convidou o proletariado a estender a luta de classes
ao plano da moral. "Aquele que se inclina perante
as regras estabelecidas pelo inimigo jamais vencerá!"
(Trótski)
No Brasil, a conciliação continua sendo
a estratégia vital do culturalismo stalinista.
O deslumbramento constitui forma de impulso de ascensão
social para a classe média colonizada que "quer
fazer cinema de autor" precisamente depois da falência
total deste último respiro liberal da social-democracia
ocidental.
Reduzidas as devidas proporções, este
movimento é um meio de alguns ascenderem socialmente
satisfazendo seu deslumbramento dentro de uma moral
paternalista e repressiva (por exemplo: as pessoas e
obras não-desejáveis ao movimento, por
determinação expressa da cúpula,
são sistematicamente sabotadas, caluniadas, queimadas
e denunciadas).
Trágica é a vocação do brasileiro
para a conciliação, a bajulação
e o paternalismo repressivos.
Como toda diluição, não vale a
pena falar mal do cinema novo. É como criticar
a censura: ninguém por dentro tem coragem de
gostar da censura ou do cinema novo.
O que nos interessa é destruir a infra-estrutura
intelectual que oprime o colonizado: o culturalismo
ainda poderoso nas províncias distantes ainda
não atingidas pela revolução industrial,
onde predomina o autoritarismo paternalista e/ou populista.
À teoria ingênua de que "o elemento
nacional já nos basta" somam-se os preconceitos
e os complexos de culpa, o deslumbramento, o sentimentalismo
discursivo e a tradicional má consciência,
disfarçados pela política do culturalismo,
da cultura nacional, da colaboração com
a burguesia nacional e da teoria stalinista da revolução
num só país.
A América Latina continua sendo um dos últimos
redutos internacionais do stalinismo. Os PCs só
formalmente apoiaram a luta armada entre nós.
O intelectual latino-americano, quando se julga "participante",
é um cristão ingênuo, deslumbrado
e auto-complacente, exclusivamente racional e auto-censurado
(seu grande inimigo não é a ditadura mas...
o irracional) com acentuada tendência ao stalinismo
que na América Latina acomodou-se maravilhosamente
ao tradicional populismo. Daí a criação
de uma cultura centralizada, "nacional", populista
e de preconceitos, liberal-humanitária-estetizante,
conteudística, sentimental, individual, anti-industrial,
anti-antropofágica, anti-internacionalista.
Diariamente a realidade continental se encarrega de
destruir tais preconceitos mas cabe a nós extirpar
definitivamente o culturalismo de nosso subconsciente
explorado e subdesenvolvido. Cabe a nós extirpar
a moral stalinista, o culturalismo e o reformismo populista
– deformações inseparáveis, que
precisam ser destruídas de um só golpe
internacionalista.
Todo mundo tem direito de fazer abacaxis. Principalmente
nós, cineastas brasileiros, podemos experimentar
à vontade sem se preocupar com a qualidade de
nossos filmes voluntariamente impuros, anormais, subdesenvolvidos
por condição e escolha. Qualquer um pode
fazer seus abacaxis. Não é contra a qualidade
de alguns filmes do Cinema Novo que chamamos
a atenção; pelo contrário, o insucesso
de um abacaxi não quer dizer nada nem responsabiliza
o seu autor, pois cada filme é uma unidade diferente,
uma nova aventura.
Quando começamos o ataque contra os culturalistas,
procurei deixar bem claro: não era contra a qualidade
de um ou outro filme que nos dirigíamos mas contra
o projeto geral, a política do Cinema Novo, aprioristicamente,
globalmente reacionária nas suas intenções,
na moral de grupo, no paternalismo familiar, no que
se quer de um filme no resultado, na baixa densidade
criativa desses filmes. Eles não são ruins
somente por problemas de produção, mas
principalmente porque o diretor, há muito tempo
atrás, antes de começar a fazer cinema,
ele já estava conciliando, traindo o irracional,
se comportando perante o Cinema Novo. Os filmes são
aprioristicamente ruins e deixamos claro que, quando
criticamos, não é o filme mas todo o Cinema
Novo, seus filmes todos em bloco não conseguem
sobreviver à castração imposta
pelos quadros cinemanovistas. Atacamos simbolicamente
todos os filmes do cinema novo, em bloco, principalmente
os vexames mais vulneráveis da cúpula,
na verdade, a única responsável pelos
seus próprios abacaxis e pelos abacaxis de outros.
A cúpula é quem mata os filmes muito tempo
antes de ser escrita a primeira linha do roteiro. É
essa cúpula que vamos destruir. Ou destruí-la
ou o cinema brasileiro afunda de uma vez.
Todos sabem que mexer na infra-estrutura intelectual
é dinamizar (isto é, incomodar; pois é
o que fizemos, incomodamos, abrimos a polêmica),
a infra-estrutura política do subdesenvolvido.
Discutir cinema oficial é abrir fogo contra o
partido e os stalinistas, não há dúvida.
O que eles fingem não saber é que o culturalismo
perderá mais terreno ainda com a falência
do liberalismo e da social-democracia. Maio, o terrorismo
e a extrema-esquerda se encarregam de tirar-lhes todo
sentido.
Não será mais possível ilustrar
demagogicamente mensagens populistas para a burguesia
nacional aplaudir, caricatura sórdida e dependente
da burguesia ocidental. Os cúmplices da burguesia
nacional estarão fora das decisões reais
do futuro.
A incômoda radicalização atual destruirá
suas principais forças de apoio; o resto deixo
para a história contar. Acabou. Fim de papo.
Não darei mais nenhuma colher de chá.
Chega, Brasil!
fim
Rogério Sganzerla
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