O que leva Andrei Rublev a pintar a célebre "Trindade",
que sintetiza os ideais de fraternidade, de amor e de
serena santidade? Da mesma forma que o monge do século
XV, Andrei Tarkovski se lança na tortuosa busca
espiritual pela verdade: trata-se de conhecer o mundo
a ponto de descobrir-lhe a beleza oculta, cuja revelação
através da complexidade da criação
artística é o momento único e extraordinário
que justifica toda a existência e, por conseguinte,
a vida.
Andrei Rublev não possui caráter
histórico ou biográfico. Dividido em episódios,
dos quais nem sempre o monge-pintor participa, o filme
abdica da ordem cronológica clássica para
se moldar às intenções subjetivas
do cineasta de analisar e de compreender a natureza
poética de seu personagem. Como o escultor que,
do bloco de mármore, retira o excesso até
chegar à obra, Tarkovski esculpe o tempo, centrando-se
apenas nos acontecimentos fundamentais da vida de Rublev
que possam expressar as relações entre
o mundo e a arte, entre a exterioridade e a interioridade,
bem como as dúvidas e os tormentos do criador
na sua procura pelo conhecimento e pela verdade.
Assim, Rublev se afasta do personagem tradicional, cujas
ações sobre o mundo determinam a trama
e a movem à frente. O monge-pintor, ao contrário,
comporta-se como observador da realidade, incapaz de
com ela interagir: exteriormente estático, o
interior do protagonista arde de paixão pelo
que se lhe apresentam aos sentidos do corpo. De fato,
o interesse primordial de Tarkovski está na eterna
dicotomia entre o Dentro e o Fora, ou seja, quando a
alma descobre, perplexa, a insuficiência do "eu"
e, em conseqüência, esquadrinha o visível
para encontrar o "outro" que a complemente.
A arte como ato de fé, que reconcilia o subjetivo
e o objetivo a fim de celebrar o mistério da
vida.
No entanto, o movimento de apreensão sensível
da experiência empírica não se dá
sem conflito, sem tensão, pois o desejo da alma
de se fundir ao mundo pressupõe, inevitavelmente,
o medo de ser por ele corrompida. Em Andrei Rublev,
a realidade medieval russa, vista pelo monge, é
sórdida, violenta, cruel: as invasões
tártaras que destroem a cidade de Vladimir, os
ritos pagãos na floresta que aniquilam a fé,
os ciúmes do assistente Kirill quanto à
arte do mestre, os desmandos da nobreza feudal que oprime
os camponeses, a jovem que se entrega aos soldados de
ocupação. Abalado por este profundo caos
e pelo conhecimento abjeto que ele dissemina, Rublev
se perde, mata um homem, iguala-se à barbárie
que o cerca.
Confrontado à terrível tangibilidade do
real, onde buscar, neste exterior, a verdade, o sentido
da existência que satisfaça ao espírito?
Sem respostas para tamanho paradoxo, Rublev isola-se
do mundo, fecha-se em sua interioridade para se purificar
da corrupção na qual está mergulhado:
ao renegar a pintura e a fala, o monge reforça
o personagem observador e passivo proposto por Tarkovski.
Como acreditar no Fora, como voltar a ter fé?
Segundo Andrei Rublev, por meio da criação
artística, demonstrada no maravilhoso episódio
em que Boriska deve construir um sino para seu senhor,
sob pena de decapitação caso o objeto
não badale. Seguindo sua intuição,
rechaçando as opiniões alheias, mantendo
a integridade da idéia original, não fornecendo
concessões de qualquer espécie, Boriska
encarna um legítimo "autor", cuja inabalável
crença em sua arte (que se mostra pura fé,
visto que não embasada na técnica ou na
ciência) contamina Rublev, o qual retorna, a partir
do processo de identificação com o jovem
sineiro, à pintura de ícones.
A tensão permanente entre interior e exterior,
entre o Dentro e o Fora, explode na profusão
de cores da seqüência final, que explora,
em detalhes, a "Trindade" de Rublev. Mais
do que revelar a beleza escondida do mundo, a arte a
constrói, inventa-a por seus próprios
meios, funda o instante que permite não ver de
novo, e sim olhar o novo, momento ímpar que oferece
razões para se continuar a viver. A questão,
enfim, é manter a fé em um Dentro co-presente
ao Fora, como indica o último plano do filme,
no qual a realidade, a cores tal como a pintura que
o precede, torna-se ela mesma uma obra-de-arte.
Paulo Ricardo de Almeida
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