Xuxu
Merzak Allouache, Chouchou, França, 2003

O homossexual afeminado e caricato sempre foi uma figura bastante recorrente em comédias de alcance popular, como as pornochanchadas brasileiras dos anos 70. Não se discute que sempre foram vistos e retratados por uma ótica preconceituosa, mas não se deve deixar de considerar que é uma característica essencial do cômico que muitas vezes este seja construído sobre estereótipos e pré-conceitos. É tudo uma questão de, como disse Henri Bergson em seu ensaio sobre o riso, "anestesiar as emoções" e achar graça. Mas foi da França que veio a mais notória – e também a mais engraçada – das "comédias de bicha", A Gaiola das Loucas de Edouard Molinaro (1979), que, apesar de uma visão simpática a seus protagonistas, ignorava qualquer possível sombra de correção política, com uma escrachada e bem amarrada trama de equívocos oriundos do choque entre personagens que não partilhavam os mesmos códigos.

Eis que, 24 anos depois, surge na França este Xuxu, uma nova comédia sobre um protagonista homossexual. E os primeiros minutos, com o personagem título se apresentando como refugiado chileno ou e entrando na igreja durante uma missa sem saber como se conduzir, deixam a impressão que o filme irá seguir uma trilha de mal-entendidos herdada de A Gaiola das Loucas. Impressão esta que logo se esvai, pois, a partir do momento em que se instala na igreja, Xuxu (Gad Elmaleh) parece não enfrentar qualquer obstáculo a assumir de forma digna suas opções pessoais e sexuais. Quase todos o compreendem e o encaram com naturalidade e sem repressões, o que parece uma incoerência numa França provinciana (o filme se passa num subúrbio de Paris), ignorando o fenômeno de uma ascendente onda de um discurso preconceituoso de direita, com o qual sem dúvida Xuxu – além de travesti, imigrante argelino – deveria em algum momento se confrontar.

Não obstante a quase inépcia do diretor Merzak Allouache para com o artesanato cinematográfico – construção de planos e seqüências, montagem, etc. – isto poderia ser compensado por um bom roteiro, que envolvesse a personagem em situações de alguma comicidade. Só que o roteiro de Xuxu, escrito por Allouache e Elmaleh, é marcado por uma total ausência de conflitos. O protagonista consegue, com absurda facilidade, arrumar trabalho, se enturmar no mundo gay de Paris, encontrar o sobrinho que não via há anos ou viver um grande amor, sendo aceito sem problemas pela família do rapaz. Seu único oponente, um policial, é apresentado como um doente mental e o embate entre os dois se resolve num piscar de olhos. Para piorar, os únicos momentos nos quais Xuxu pretende enveredar por um humor mais descarado, com o padre que tem visões eróticas com a vírgem Maria, se mostram no mínimo grotescos.

Por tudo isso, custa-me acreditar que alguém possa se divertir com este paradoxo que é uma "comédia de bicha" politicamente correta e absolutamente sem graça. Só que esta tese cai por terra quando temos a informação que Xuxu foi uma das maiores bilheterias domésticas do cinema francês no ano passado. Explica-se: Gad Elmaleh é figurinha fácil em clubes de comédia e na televisão francesa e a personagem Xuxu seu principal cavalo de batalha. Ou seja: o público comparece em massa aos cinemas para ver aquilo que já conhece da TV, razões as mesmas que levaram ao êxito popular de, por exemplo, Os Normais – o Filme aqui no Brasil. Isso explica, porém não justifica.

Gilberto Silva Jr.