O filme de Morelli não é
sua estréia em longas por pequena questão
de datas: ele estreou em Gramado, com O Preço
da Paz, pouco menos de um mês antes de Viva
Voz chegar às telas no Festival do Rio. Pois
se seu primeiro filme foi filmado alguns anos antes
e era um projeto de produtor onde Morelli apenas exercitou
suas capacidades narrativas e dramatúrgicas,
Viva Voz seria um produto mais autoral - expressão
menos entendida aqui como gênero de cinema do
que como gênese de projeto. Se assim for, preferimos
ficar com o Morelli artesão do que com o criador:
O Preço da Paz, salvo um conservadorismo
discreto mas inconfundível, é um dos mais
bem resolvidos produtos do chamado "cinema histórico"
feitos recentemente no Brasil. Já este Viva
Voz...
A idéia de Morelli é a de construir um
universo dramatúrgico eminentemente farsesco
para tecer comentários sobre o Brasil atual,
a partir de alguns ícones de "modernidade"
(desde o celular como estopim da trama até a
futilidade das chamadas peruas paulistanas) e temas
incorporados de "nacionalidade" (a violência
urbana, a corrupção no empresariado, etc).
Só que em Morelli a farsa equivale a tornar completamente
palatáveis e inofensivos tais comentários
sobre o Brasil de hoje, claramente tentando um contato
direto com o mesmo público formado pelas elites
que se pretende colocar em cena. Desta forma, busca-se
um trabalho onde rir de si mesmo não é
tanto um incômodo e sim uma gostosa palhaçada:
"é, nos somos assim mesmo, não somos
fogo?" Não existe proposta de cinema, portanto,
mais conservadora e chapa branca. Que se busque o diálogo
com o público (assumindo o fato de que este é
o público atual do cinema), nada demais. Mas,
que se busque este diálogo falando de uma suposta
"realidade" atual, onde o retrato ficcional
mais parece uma idealização, ou melhor,
uma expurgação de pecadilhos deste mesmo
público, isso é deplorável. Neste
sentido, Viva Voz é quase inovador: cria
um modelo novo, o da sátira "a favor"
- onde o satirizado sai mais feliz do cinema do que
entrou.
Não por acaso, então, tanto a corrupção
quanto a violência urbana surgem no registro chanchadesco,
onde roubar, matar ou assaltar é, antes de tudo,
a maior diversão. E àqueles que argumentem
que no final os personagens "se dão mal"
e que quem fica com o dinheiro é o único
"cara legal" do filme, só se pode dizer
que não há nada mais conservador do que
isso: registrado o estado de chanchada inofensiva onde
vivemos, ainda saímos com a certeza de que pelo
menos ninguém se aproveita disso. Então
tá bom.
( Neste momento, é preciso inclusive fazer um
mea culpa: se em Domésticas pedíamos
aos diretores da O2 - no caso, Meirelles e Nando Olival
- que voltassem suas câmeras para si mesmos e
as relações de classe, o que evitavam
de todas formas naquele filme, agora nos arrependemos.
Se o olhar possível é este de Morelli,
preferíamos não tê-lo visto.)
Claro que sempre se pode argumentar que é um
filme que "diverte" o público, e não
foi feito para os críticos. Embora isso não
tenha nada a ver com nada (filmes que divertem podem
ser fantásticos para os críticos, e críticos
devem analisar todos os filmes), não serve neste
caso porque mesmo nas categorias que escapam ao olhar
sócio-político, o filme é muito
fraco. A começar pelas atuações
e diálogos, onde se mistura um tabititate onipresente
(os personagens constantemente explicam e fazem a ação
andar com diálogos) com um registro que se pode
chamar da comicidade pela debilidade – todos são
personagens de peça teatral escolar de segundo
grau, e interpretados como tais. Notavelmente lamentável
é o "tarantinismo" de terceira nas
falas dos policiais – despropositados e sem qualquer
humor verdadeiro.
Fora isso, é deplorável a linguagem cinematográfica,
que se pretende moderna nos inexplicáveis avanços
de velocidade em cenas de chegadas e saídas de
automóvel, mas que é sim a mais televisiva
realização do cinema de longa brasileiro
até agora. Aqui fica claro qual a diferença
entre um realizador de cinema, como é o Guel
Arraes de Lisbela, para um de TV: a questão
é muito mais dramatúrgica e de enfoque
nos personagens do que uma simples medição
de ritmo ou de rapidez de corte. Morelli apresenta uma
mise-en-scène preguiçosa e óbvia,
e um tratamento de personagens e situações
completamente banal e repetidora de todos os modelos
de humor das telenovelas e séries mais rasteiras.
O fato é: pode-se esperar mais de Os Normais
– o Filme do que se retira deste aqui, pois pelo
menos lá a relação com o modelo
televisivo é mais honesta, ao ser tão
assumida. Já Viva Voz, como produto de
cinema é quase nulo, mas é ainda pior
como visão de mundo - sendo que a comédia
sempre foi um dos campos mais ricos de contestação
e discussão desta.
Eduardo Valente
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