Viva Voz
Paulo Morelli, Brasil, 2003

O filme de Morelli não é sua estréia em longas por pequena questão de datas: ele estreou em Gramado, com O Preço da Paz, pouco menos de um mês antes de Viva Voz chegar às telas no Festival do Rio. Pois se seu primeiro filme foi filmado alguns anos antes e era um projeto de produtor onde Morelli apenas exercitou suas capacidades narrativas e dramatúrgicas, Viva Voz seria um produto mais autoral - expressão menos entendida aqui como gênero de cinema do que como gênese de projeto. Se assim for, preferimos ficar com o Morelli artesão do que com o criador: O Preço da Paz, salvo um conservadorismo discreto mas inconfundível, é um dos mais bem resolvidos produtos do chamado "cinema histórico" feitos recentemente no Brasil. Já este Viva Voz...

A idéia de Morelli é a de construir um universo dramatúrgico eminentemente farsesco para tecer comentários sobre o Brasil atual, a partir de alguns ícones de "modernidade" (desde o celular como estopim da trama até a futilidade das chamadas peruas paulistanas) e temas incorporados de "nacionalidade" (a violência urbana, a corrupção no empresariado, etc). Só que em Morelli a farsa equivale a tornar completamente palatáveis e inofensivos tais comentários sobre o Brasil de hoje, claramente tentando um contato direto com o mesmo público formado pelas elites que se pretende colocar em cena. Desta forma, busca-se um trabalho onde rir de si mesmo não é tanto um incômodo e sim uma gostosa palhaçada: "é, nos somos assim mesmo, não somos fogo?" Não existe proposta de cinema, portanto, mais conservadora e chapa branca. Que se busque o diálogo com o público (assumindo o fato de que este é o público atual do cinema), nada demais. Mas, que se busque este diálogo falando de uma suposta "realidade" atual, onde o retrato ficcional mais parece uma idealização, ou melhor, uma expurgação de pecadilhos deste mesmo público, isso é deplorável. Neste sentido, Viva Voz é quase inovador: cria um modelo novo, o da sátira "a favor" - onde o satirizado sai mais feliz do cinema do que entrou.

Não por acaso, então, tanto a corrupção quanto a violência urbana surgem no registro chanchadesco, onde roubar, matar ou assaltar é, antes de tudo, a maior diversão. E àqueles que argumentem que no final os personagens "se dão mal" e que quem fica com o dinheiro é o único "cara legal" do filme, só se pode dizer que não há nada mais conservador do que isso: registrado o estado de chanchada inofensiva onde vivemos, ainda saímos com a certeza de que pelo menos ninguém se aproveita disso. Então tá bom.

( Neste momento, é preciso inclusive fazer um mea culpa: se em Domésticas pedíamos aos diretores da O2 - no caso, Meirelles e Nando Olival - que voltassem suas câmeras para si mesmos e as relações de classe, o que evitavam de todas formas naquele filme, agora nos arrependemos. Se o olhar possível é este de Morelli, preferíamos não tê-lo visto.)

Claro que sempre se pode argumentar que é um filme que "diverte" o público, e não foi feito para os críticos. Embora isso não tenha nada a ver com nada (filmes que divertem podem ser fantásticos para os críticos, e críticos devem analisar todos os filmes), não serve neste caso porque mesmo nas categorias que escapam ao olhar sócio-político, o filme é muito fraco. A começar pelas atuações e diálogos, onde se mistura um tabititate onipresente (os personagens constantemente explicam e fazem a ação andar com diálogos) com um registro que se pode chamar da comicidade pela debilidade – todos são personagens de peça teatral escolar de segundo grau, e interpretados como tais. Notavelmente lamentável é o "tarantinismo" de terceira nas falas dos policiais – despropositados e sem qualquer humor verdadeiro.

Fora isso, é deplorável a linguagem cinematográfica, que se pretende moderna nos inexplicáveis avanços de velocidade em cenas de chegadas e saídas de automóvel, mas que é sim a mais televisiva realização do cinema de longa brasileiro até agora. Aqui fica claro qual a diferença entre um realizador de cinema, como é o Guel Arraes de Lisbela, para um de TV: a questão é muito mais dramatúrgica e de enfoque nos personagens do que uma simples medição de ritmo ou de rapidez de corte. Morelli apresenta uma mise-en-scène preguiçosa e óbvia, e um tratamento de personagens e situações completamente banal e repetidora de todos os modelos de humor das telenovelas e séries mais rasteiras. O fato é: pode-se esperar mais de Os Normais – o Filme do que se retira deste aqui, pois pelo menos lá a relação com o modelo televisivo é mais honesta, ao ser tão assumida. Já Viva Voz, como produto de cinema é quase nulo, mas é ainda pior como visão de mundo - sendo que a comédia sempre foi um dos campos mais ricos de contestação e discussão desta.

Eduardo Valente