Tróia
Wolfgang Petersen, Troy, EUA, 2004

As várias e repetitivas falas de Aquiles, personagem de Brad Pitt em Tróia, não deixam dúvida: o filme é sobre a manutenção do valor de um nome ao longo do tempo. É sobre o mito em seu sentido mais originário, a fala que sobrevive à história. Nesse sentido, Tróia é um pouco um filme sobre a cultura da celebridade. Claro, a história é, em si mesma, um mito, o mito de origem do Ocidente. É a versão maior e, curiosamente, mais famosa de que já se falou da operação de varrer para baixo do tapete. A destruição de Tróia, deixa-se bem claro em Homero e fica bem claro no filme, é feita "pelos gregos": não por Esparta, não por Micenas, mas pela nova cultura, unificada, centralizada, universalizante. E é justamente para que esta cultura mesma seja possível é que se varre a cidade do mapa. Ela é o antigo, ela é a ligação com os deuses, ela é o oriente.

Por isso mesmo, é uma contradição em si mesma a história da Ilíada: é a narração da própria operação de esquecimento. Ora, já que é narração, é tudo menos esquecimento. É memória, rememoramento, reencenação. Cada vez que se lê a saga homérica, por mais conteúdo fantástico que ela tenha, é a historiografia que se queria ocultar que se celebra. E a morte mesma de Aquiles é o maior ícone dessa operação: morto o guerreiro fantástico, e queimado o enorme arquivo que é a cidade, a antiga ordem está em definitivo sepultada, salvo pela lembrança afetiva que o próprio nome de Aquiles, herói, sugere.

O que permite finalmente falar do filme. Há uma estranha forma de sutileza nesta obra de Wolfgang Petersen. Uma sutileza que se inicia gritante, por ser este um típico blockbuster e um típico filme de grandes efeitos de computador e que, diferentemente de pares recentes - dos quais a representante mais barulhenta é a trilogia de O Senhor dos Anéis - é um filme visualmente discreto como construção (os milhares de guerreiros que marcham pelas praias parecem, invariável e simplesmente, guerreiros, e não objetos animados produto da era dos figurantes virtuais, por mais que de fato o sejam). Mas a sutileza maior é a da construção mesma do mito: quando Aquiles morre, a mensagem sobre seu calcanhar-de-aquiles está implícita. Quando ele fala a seus homens: "Imortalidade, vão e a agarrem", tudo está decidido. O grande objetivo de Aquiles é morrer, para que seu nome seja levado à eternidade. E isso, para ele, que viu os deuses e com eles falou, nada tem a ver com vida depois da morte no sentido que o ocidente inauguraria depois.

Mas isso é o que se pode dizer da história do filme, não o que se pode dizer do próprio filme. Radicalmente diferente do que já se fez em cinema sobre mitologia grega, inclusive sobre a Ilíada e a Odisséia (salvo ser, como a maioria dos filmes, igualmente um filme popular) Tróia não é centrado no conteúdo heróico e fantasioso da história, mas em uma estranha busca por sua veracidade, um desejo de descinematografização de algo que se fez mito justamente por ser sempre fantasia no cinema.

O que limita Tróia àquela reencenação de que se falava linhas atrás. De todos os Harryhausens que construíram Tróia, Petersen foi o que menos deu essência troiana a ela. Seu filme é, como queria Menelau, a própria operação de apagamento de Tróia. Porque para ele o mito não pode ser mito, ele tem que ter acontecido, na forma de um mito, mas na história. Por isso Aquiles morre sem magia. Em seu conto homérico, o guerreiro nunca fora imortal de fato, simplesmente não morria porque sua combatividade era perfeita. A flecha de Paris encontrou-o não em seu ponto fraco físico, o calcanhar, mas em seu ponto fraco histórico, a queda do antigo regime de que ele é essência ambulante. Com Tróia de pé, Aquiles seria impossível.

É também o que torna curiosa a posição do filme como produção em si: perfeitamente palatável, eficiente como filme de aventura (como poucos filmes recentes têm sido capazes), Tróia traz em si o Apolo e o Dionísio de uma impossibilidade. Para ser assim, nega-se a si mesmo como estrutura. Para ter grandes barcos singrando os mares e aportando na praia qual numa versão milenar do desembarque da Normandia de O Resgate do Soldado Ryan, de Spielberg, o filme acerta no calcanhar da único sistema de pensamento que o justifica. Nesse sentido, ele se irmana ao único grande senão de A Paixão de Cristo, a incoerência com sua própria radiação de fundo.

É que não se abre a Caixa de Pandora do mito Homérico sem pagar o tributo de que aquela história é toda simbologia. E não se dá forma a um símbolo sem que seus referentes sejam estabelecidos. Por isso mesmo, acaba por valer a derradeira contradição do discurso de celebridade do filme: morto (por si mesmo, em certo sentido) para permanecer célebre, Aquiles é relembrado como queria, mas não como era. Revivido, Aquiles é um Aquiles outro, uma celebridade bem ao estilo das atuais, uma celebração da pura forma, sem que seus feitos a justifiquem.

Alexandre Werneck