As várias e repetitivas falas
de Aquiles, personagem de Brad Pitt em Tróia,
não deixam dúvida: o filme é sobre
a manutenção do valor de um nome ao longo
do tempo. É sobre o mito em seu sentido mais
originário, a fala que sobrevive à história.
Nesse sentido, Tróia é um pouco
um filme sobre a cultura da celebridade. Claro, a história
é, em si mesma, um mito, o mito de origem do
Ocidente. É a versão maior e, curiosamente,
mais famosa de que já se falou da operação
de varrer para baixo do tapete. A destruição
de Tróia, deixa-se bem claro em Homero e fica
bem claro no filme, é feita "pelos gregos":
não por Esparta, não por Micenas, mas
pela nova cultura, unificada, centralizada, universalizante.
E é justamente para que esta cultura mesma seja
possível é que se varre a cidade do mapa.
Ela é o antigo, ela é a ligação
com os deuses, ela é o oriente.
Por isso mesmo, é uma contradição
em si mesma a história da Ilíada:
é a narração da própria
operação de esquecimento. Ora, já
que é narração, é tudo menos
esquecimento. É memória, rememoramento,
reencenação. Cada vez que se lê
a saga homérica, por mais conteúdo fantástico
que ela tenha, é a historiografia que se queria
ocultar que se celebra. E a morte mesma de Aquiles é
o maior ícone dessa operação: morto
o guerreiro fantástico, e queimado o enorme arquivo
que é a cidade, a antiga ordem está em
definitivo sepultada, salvo pela lembrança afetiva
que o próprio nome de Aquiles, herói,
sugere.
O que permite finalmente falar do filme. Há uma
estranha forma de sutileza nesta obra de Wolfgang Petersen.
Uma sutileza que se inicia gritante, por ser este um
típico blockbuster e um típico
filme de grandes efeitos de computador e que, diferentemente
de pares recentes - dos quais a representante mais
barulhenta é a trilogia de O Senhor dos Anéis
- é um filme visualmente discreto como construção
(os milhares de guerreiros que marcham pelas praias
parecem, invariável e simplesmente, guerreiros,
e não objetos animados produto da era dos figurantes
virtuais, por mais que de fato o sejam). Mas a sutileza
maior é a da construção mesma do
mito: quando Aquiles morre, a mensagem sobre seu calcanhar-de-aquiles
está implícita. Quando ele fala a seus
homens: "Imortalidade, vão e a agarrem",
tudo está decidido. O grande objetivo de Aquiles
é morrer, para que seu nome seja levado à
eternidade. E isso, para ele, que viu os deuses e com
eles falou, nada tem a ver com vida depois da morte
no sentido que o ocidente inauguraria depois.
Mas isso é o que se pode dizer da história
do filme, não o que se pode dizer do próprio
filme. Radicalmente diferente do que já se fez
em cinema sobre mitologia grega, inclusive sobre a Ilíada
e a Odisséia (salvo ser, como a maioria dos filmes,
igualmente um filme popular) Tróia não
é centrado no conteúdo heróico
e fantasioso da história, mas em uma estranha
busca por sua veracidade, um desejo de descinematografização
de algo que se fez mito justamente por ser sempre fantasia
no cinema.
O que limita Tróia àquela reencenação
de que se falava linhas atrás. De todos os Harryhausens
que construíram Tróia, Petersen
foi o que menos deu essência troiana a ela. Seu
filme é, como queria Menelau, a própria
operação de apagamento de Tróia.
Porque para ele o mito não pode ser mito, ele
tem que ter acontecido, na forma de um mito, mas na
história. Por isso Aquiles morre sem magia. Em
seu conto homérico, o guerreiro nunca fora imortal
de fato, simplesmente não morria porque sua combatividade
era perfeita. A flecha de Paris encontrou-o não
em seu ponto fraco físico, o calcanhar, mas em
seu ponto fraco histórico, a queda do antigo
regime de que ele é essência ambulante.
Com Tróia de pé, Aquiles seria impossível.
É também o que torna curiosa a posição
do filme como produção em si: perfeitamente
palatável, eficiente como filme de aventura (como
poucos filmes recentes têm sido capazes), Tróia
traz em si o Apolo e o Dionísio de uma impossibilidade.
Para ser assim, nega-se a si mesmo como estrutura. Para
ter grandes barcos singrando os mares e aportando na
praia qual numa versão milenar do desembarque
da Normandia de O Resgate do Soldado Ryan, de
Spielberg, o filme acerta no calcanhar da único
sistema de pensamento que o justifica. Nesse sentido,
ele se irmana ao único grande senão de
A Paixão de Cristo, a incoerência
com sua própria radiação de fundo.
É que não se abre a Caixa de Pandora do
mito Homérico sem pagar o tributo de que aquela
história é toda simbologia. E não
se dá forma a um símbolo sem que seus
referentes sejam estabelecidos. Por isso mesmo, acaba
por valer a derradeira contradição do
discurso de celebridade do filme: morto (por si mesmo,
em certo sentido) para permanecer célebre, Aquiles
é relembrado como queria, mas não como
era. Revivido, Aquiles é um Aquiles outro, uma
celebridade bem ao estilo das atuais, uma celebração
da pura forma, sem que seus feitos a justifiquem.
Alexandre Werneck
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