RITHY PANH; AGENTE CATALISADOR DA HISTÓRIA
Sobre S21 – A Máquina de Morte do Khmer Vermelho (2003)

Há momentos raros na história de alguns países que pedem um mergulho no passado recente em busca de um questionamento tão simples quanto profundo: "o que aconteceu?" São momentos definidos, que geralmente ocorrem na ressaca de regimes impositivos com supressão de liberdade de expressão, regimes em que muito do pensamento e da arte – das formas de reflexão sobre o mundo, em suma – foi tornado impossível por censura oficial ou pelas agruras da guerra. Às vezes esse questionamento acaba se transubstanciando em obras artísticas decisivas para um país ou um conjunto de países. Podemos pensar nos livros de Primo Levi, sobre o Holocausto, ou no renascimento do cinema de Taiwan nos anos 80, que retrabalha toda a história do país no século XX (principalmente os filmes de Hou Hsiao-hsien). No Brasil, talvez apenas um filme tenha feito essa pergunta: Cabra Marcado Para Morrer de Eduardo Coutinho. Mas o que nos importa aqui e agora é o fato do surgimento de dois filmes maiores de Rithy Panh, realizador cambojano radicado na França, que tenta em seu trabalho como documentarista colher os traços de uma civilização fraturada por guerras de poder durante todo um século, e especialmente o regime assassino do Partido Comunista do Camboja nos anos 80, que matou quase um terço da população do país (2 milhões de 7).

Nesses dois filmes – S21 e As Pessoas de Angkor, que pudemos ver respectivamente no Festival do Rio 2003 e no festival É Tudo Verdade –, o presente convive com o passado para evocar as lembranças e construir uma memória. É um cinema do depois, um cinema de reconstrução: o que importa a Rithy Panh é muito menos fazer a partilha da culpa pelos crimes passados do que tentar entender como se dá o processo de fechamento de um determinado ciclo histórico e o que o ciclo seguinte acaba herdando (como memória viva). Um cinema da História, sem dúvida, na dupla acepção do genitivo: um cinema sobre a História do país, mas também um cinema para essa História, para articular essa História.

S21, a sigla que dá nome ao filme, é o prédio para onde eram encaminhados os prisioneiros do regime. Lá, eles eram vigiados por carcereiros adolescentes, torturados até a delação sistemática e, via de regra, assassinados. Só que S21 é tudo menos um documentário descritivo sobre um local: é antes de tudo a possibilidade de reabrir um debate, de mostrar na carne viva dos habitantes do Camboja o quanto do regime de Pol Pot ainda permanece talhado como cicatriz na vivência daqueles que presenciaram e sobreviveram ao período. É, portanto, de imbricação que se trata aqui: em que medida dois tempos se refletem e se espelham.

É importante notar que o filme faz uso constante de documentos. Em diversas ocasiões, imagens de arquivo, fotografias, listas de prisioneiros, cartas e relatórios são postos à frente do espectador ou diretamente aos personagens do filme, sejam eles os carcereiros ou os prisioneiros sobreviventes. Mas o filme está longe de utilizar esses dados como construção de objetividade jornalística ou como registro histórico que "normaliza" o que vemos na tela (estratégias estéticas disseminadas na produção de documentário, sejam os "anônimos" exibidos na GNT, sejam filmes como os de Sílvio Tendler e Errol Morris). S21 atém-se aos documentos que apresenta como enigmas: o que eles querem dizer de nossa vivência antiga? será que com eles conseguimos reconstruir algo do que foi esse terror? o que essas coisas significam hoje? Vejamos como o filme começa: (1) Cartela informa sumariamente que antes da guerra o Camboja era um país neutro de 7,7 milhões de habitantes; (2) Uma panorâmica de cidade, com uma legenda informando que 1970 é o Golpe de Estado que derruba Sihanouk; (3) Segue-se, com trilha sonora de hinos patrióticos, uma série de registros cinematográficos do golpe de estado e da manutenção do regime de Pol Pot; por fim, a seqüência mostra registros de camponeses cambojanos arando o solo (uma das características do regime foi fazer o povo sair das cidades para o campo); e (4) com os mesmos sons da seqüência anterior, imagens atuais de camponeses capinando, filmadas por Panh. Passagem radiante, que curto-circuita e coloca juntas imagens que têm para o espectador estatutos históricos absolutamente diferentes. S21, ao apresentar dessa forma os documentos – e é importante dizer que depois dessa breve aparição os registros de arquivos audiovisuais serão imediatamente esquecidos –, escapa da utilização parasitária dos arquivos (Tendler) para nos dizer que tanto as cenas do "passado" quanto as cenas de hoje pertencem a um presente mais profundo, imemorial, que vem a chamar o questionamento.

A câmera de Rithy Panh em S21 é um grande catalisador. O dispositivo é simples, mas impressionante: reunir os sobreviventes da S21, carcereiros-torturadores e prisioneiros-torturados. O que importa, voltamos a frisar, não são as atribuições de culpa. A esse respeito, é importante notar que no filme não há nenhuma voz de autoridade, nenhum líder de regime ou chefe de resistência. São antes elementos do "povo", anônimos executores de ordens ou pessoas que sobreviveram a elas. Juntos, essas pessoas são convidadas a refletir sobre seu próprio papel dentro da história que viveram. A responsabilidade pelos atos, naturalmente, emerge diversas vezes no filme – os torturados perguntando aos carcereiros sobre a desumanidade de seus atos, os carcereiros respondendo que à época aquilo tudo parecia certo de acordo com a lógica do regime –, mas o interesse do Rithy Panh não é instaurar tribunal. Ao contrário da lógica do cinema investigativo, que resolve cedo demais que é preciso encontrar os responsáveis – cacoete do cinema político mais manipulador –, o filme sai em busca de um questionamento muito mais profundo, que não omite a responsabilidade pessoal mas sabe que a natureza do processo ultrapassa as decisões individuais e se ampara num estado de coisas muito mais delicado. O filme pergunta de forma muito simples: "como se pôde chegar a tudo isso?"

Questão de reconstituição, então? Sim, sem dúvida, mas uma reconstituição que sempre se quer como construção. Não temos o todo, mas apenas partes: quando o carcereiro reinterpreta para a câmera seu papel dentro da S21, são os prisioneiros que faltam: ele ameaça os prisioneiros imaginários, leva o balde para que um deles urine, ouve de um deles que está faminto, etc. O terror da máquina de matar do Khmer vermelho não aparece "como foi", mas como é possível mostrar: locais que hoje aparecem sem peso dramático, torturas sem local, registros de nome que não mais correspondem a coisa nenhuma... A esse respeito, é sintomático que o filme eleve à condição de protagonista a figura de Vann Nath, o pintor que sobreviveu à S21 graças a seus dotes artísticos. A partir da queda do regime, Vann Nath dedica sua vida a pintar quadros sobre suas lambranças dentro da prisão. Colocar sua própria história como um testemunho – uma voz – mais do que como uma "versão definitiva" – a voz –, essa é também a tarefa de Rithy Panh. Um passado nunca é nítido e claro, e as decisões tampouco: a memória criada por S21 é esburacada, cheia de lacunas, de desníveis que cabe juntar sem jamais dar a impressão de fechamento ou de discurso lapidar.

Logo no começo do filme, a primeira pessoa que vem dar seu testemunho é Houy, um dos torturadores da S21. Uma das grandezas de Rithy Panh, uma forma de fazer o filme escapar de todo e qualquer julgamento prévio, é o que ele faz antes de colocar esse homem para falar: imagens dele com a esposa e seus dois filhos, um deles recém-nascido que acaba de tomar banho, e depois corte para ele, que partilha o plano com sua mãe. Ao mesmo tempo a História passa (existem três gerações de uma mesma família), e ao mesmo tempo alguma coisa continua, inevitável – Houy foi um torturador. Impossível separar "Houy-torturador-ontem" de "Houy-pai de família-hoje": fazer trabalhar a memória desse país é manter o luto e ao mesmo tempo capinar a terra para fazer com que outros tempos surjam. O filme foge do perfil "heróico" da lógica da culpabilidade e aponta para algo talvez mais modesto, mas absolutamente mais rico, que é trabalhar o tempo histórico em seu próprio caldo de construção, fazer o político emergir da vida das gentes, e não o contrário. Como se pôde chegar a tudo isso? Pergunta de impossível resposta, ou de resposta sempre insuficiente, e que no entanto é a única que importa. Persegui-la é a humildade e a grandeza de Rithy Panh com S21.

Ruy Gardnier

 

 





O pintor Vann Nath em S21 de Rithy Panh