Os primeiros planos surgem: a vida
na ilha, as crianças brincando, o mar. Construído
principalmente em cima de planos gerais, o filme nos
dá antes a percepção daquele ambiente,
da vida naquele lugar, a câmera como lápis
exato para um tratado de etologia. Ela analisa com dedicação
o comportamento de dois grupos de crianças que
brigam entre si, sem apoiar-se inicialmente em nenhum
personagem-guia: Respiro começa como se
o filme se tratasse mais de "ilha" do que
de "Grazia", a protagonista interpretada por
Valeria Golino. A doce sensação de perder-se
no relato de uma história sem personagens vai
se fechando aos poucos, quando apenas uma das famílias
daquela ilha passa a ser tratada com mais ênfase.
Aos poucos o filme vai deixando o geral e entra no particular,
como se a ficção fosse se fazendo sozinha,
por escolha doss acontecimentos e não de uma
história pré-formatada e pronta para ser
digerida.
Se o começo do filme é puramente físico
e descritivo mostra corpos e os comportamentos
desses corpos em movimentos , a continuação
manterá suas propriedades, aplicando-as não
mais ao conjunto da cidade, mas à família
retratada. O documentário etnográfico
se transforma em A Woman Under The Influence,
de Cassavetes. Grazia é uma mulher, mãe
de dois filhos e uma filha já adolescente, casada,
aparentemente vivendo o dolce far niente de uma pequena
ilha paradisíaca no Mediterrâneo. Ela sofre,
contudo, surtos de grande raiva e felicidade, procedimentos
anti-sociais, perigosos para a convivência numa
comunidade tão pequena e regulada pelo respeito
à moralidade. Respiro mostrará
como uma mulher passará de musa da cidade a puta
da vila, e de lá a santa. Poucas vezes houve
tema mais italiano.
Falou-se em Cassavates, e não é sem sentido.
Tal como o diretor de Faces realizou com sua esposa
Gena Rowlands, Emanuele Crialese prefere trabalhar com
Valeria Golino (numa atuação de tirar
o fôlego) os gestos físicos, os reflexos,
os momentos bruscos. A perturbação de
Grazia é tomada mais em seu dado físico
do que em sua psicologia: ela vai tomar banho de mar
numa da barrriga para cima na hora em que o barco pesqueiro
de seu marido passa (com todos os tripulantes observando
o espetáculo), ela se oferece para sair num passeio
de barco com dois turistas desconhecidos, ela vai dar
banho nos cachorros e acaba molhando a casa inteira
e banhando-se à maneira de uma criancinha, ela
abre o canil da ilha procurando um de seus cachorros
e cria uma celeuma insustentável...
Se Emanuele Crialese preferiu a fisicalidade ao invés
da psicologia, é menos por preferir as ações
aos pensamentos do que por querer mostrar um retrato
de uma personagem que perturba um sistema vivo ontologicamente,
como pura expressão de si mesma. Se a psicologia
se ajuntasse ao filme, Grazia seria tomada ou como a
perseguida injusta que uma cidade covarde e omissa proscreve,
ou como a doente irreconciliável que deve ser
expulsa daquela comunidade antes que consiga destruir
mais do que destruiu. Grazia é ao mesmo tempo
uma e outra, a potência ingênua de vida
e a potência autodestruidora do instinto, nem
só um nem só outro. Outra beleza de A
Ilha de Grazia é saber aproveitar o tipo de comunidade
que existe numa ilha pequena. Nem exatamente uma sociedade,
nem propriamente uma família, o povo dessa ilha
permeia-se de ambos. Quando um novo policial chega à
ilha, decide parar a mobilete de Grazia com mais dois
filhos, ao que ela logo pergunta: "Você é
novo aqui, não?" Um juízo de sociedade
como aquele ("Ela oferece perigo público
ao carregar mais de uma pessoa em sua mobilete")
só poderia ser feito por alguém que acaba
de chegar naquele lugar e é alheio aos códigos.
Assim, a decisão final devemos ou não
queimar Grazia? também será decidida
por essa ambigüidade: como familiares, salvamos
sua vida e a vida de seus próximos ou, como sociedade,
proscrevemos seus atos em nome de um ideal de sociabilidade
ao qual devemos nos ater? No balanço entre os
dois, Respiro consegue extrair uma beleza rara,
bruta, poesia instantânea como cada gesto reflexo
de sua protagonista.
Ruy Gardnier
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